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Processo n.º 408/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Évora, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 414/2011, da qual consta a seguinte fundamentação:
“2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 121) com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Em primeiro lugar, importa constatar que, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabia ao recorrente suscitar, de modo processualmente adequado, a questão de inconstitucionalidade que pretende agora ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, conforme lhe impunha o n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Porém, da análise das alegações de recurso perante o tribunal recorrido, verifica-se que o mesmo não suscitou, de modo processualmente adequado, qualquer questão de constitucionalidade especificamente dirigida a uma norma jurídica, limitando-se a reputar de inconstitucional “a interpretação que é feita pelo tribunal, do douto despacho recorrido” [cfr. § J) das conclusões, a fls. 74]. Ora, daqui decorre que o recorrente nem individualizou qual a concreta norma jurídica que foi alvo de interpretação (alegadamente) inconstitucional, nem tão pouco explicitou o conteúdo e a extensão da referida interpretação.
Por conseguinte, pode, desde já, concluir-se pela impossibilidade legal de conhecimento do objecto do presente recurso, em função da preterição do ónus fixado pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC.
4. Acresce ainda que as normas jurídicas eleitas pelo recorrente como objecto do presente recurso – isto é, as que decorreriam dos artigos 814º, n.º 2, e 816º do CPC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008 – nem sequer constituíram a “ratio decidendi” da decisão recorrida. Pelo contrário, o fundamento decisivo assentou antes na norma transitória – a saber, a que decorre dos artigos 22º, n.º 1 e 23º do Decreto-Lei n.º 226/2008 – que determina a aplicação do novo regime fixado por aquele diploma legal.
Senão vejamos:
“O exequente com esse título executivo intentou a respectiva execução, a qual deu entrada no Tribunal recorrido em 24/5/2010, data em que se iniciou a instância executiva.
Quando a acção executiva é instaurada, já tinha entrado em vigor o Dec. Lei nº 226/2008, de 20/11 (entrou em vigor em 31/3/2009.
(…)
A oposição à execução tem de se reger pelo disposto no art.º 814º nº 2 do CPC, na redacção actual dada pelo Dec. Lei nº 226/2008, pois os artºs 22º, nº 1 e 23º do referido diploma limitaram a sua aplicação, no que às alterações introduzidas ao CPC diz respeito, às normas que regulam os títulos executivos e o processo de execução, tendo em conta assegurar, a cobrança de dívidas de forma célere. (…)
O processo executivo é distinto e autónomo do processo de injução, este é um processo declarativo, que não sofreu alterações com o Dec. Lei nº 226/2008.
Assim, e dado que a acção executiva foi instaurada em 24/5/2010, já se aplicam as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 226/2008, de 20/11.” (fls. 105 e 106)
Decorre, portanto, da análise da decisão recorrida que aquela elegeu as normas daquele diploma legal que regulam a aplicação no tempo daquele novo regime como fundamento determinante do respectivo juízo de não provimento do recurso ordinário interposto pelo recorrente. Ora, em sede de requerimento de interposição de recurso, foi o próprio recorrente quem, livremente, optou por não fixar como objecto do presente recurso a questão da eventual inconstitucionalidade de uma determinada interpretação normativa extraída dos artigos 22º, n.º 1, e 23º do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro.
Assim sendo, também por este motivo há que concluir pela impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso (artigo 79º-C da LTC).
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, e pelos fundamentos expostos decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.”
2. O recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da LTC, extraindo-se as seguintes conclusões:
“A) O Reclamante é parte legítima.
B) O Recorrente invocou de modo processualmente adequado a questão da inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, em termos de estar obrigado a dela conhecer.
C) Não há nem pode haver qualquer dúvida que o Recurso interposto para este tribunal trata de uma questão de aplicação da lei no tempo, mais concretamente, da aplicação do regime transitório do DL 22612008 (artigos 22° e 23°) em conjugação com a nova redacção do artigo 814°/2.
D) Sendo certo que é contra o despacho recorrido, que mandou aplicar de forma literal e imediata a nova redacção do artigo 814°/2 à oposição à execução fundada em requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória anteriormente à entrada em vigor do referido Decreto-Lei que o que o Recorrente se insurge.
E) Embora o Recorrente no seu Requerimento de interposição não cite os artigos 22° e 23° do DL 226/2008, decorre daquele Requerimento que o pedido de inconstitucionalidade é dirigido ao bloco normativo constituído pelos artigos 814°/2 do CPC, na nova redacção, e o regime transitório daquele Decreto Lei.
F) Em primeiro lugar, o Recorrente, quer nas suas alegações, quer nas conclusões de recurso, invocou a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo tribunal recorrido no seu despacho de indeferimento liminar, ou seja, a interpretação que o Recorrente nas suas alegações de Recurso de forma sumária enunciou: «que já se aplica ao presente execução a opção legislativa introduzida pelo DL n°226/2008 que procedeu à equiparação dos fundamentos de oposição fundada em sentença quando o título executivo apresentado se reconduza a requerimento injuntivo ao qual foi aposta fórmula executória».
G) Ou seja, que a presente «oposição à execução tem de se reger pelo disposto no artigo 814°/2 do CPC, na redacção actual dada pelo Dec. Lei 226/2008 (...) (Vide despacho recorrido, Fls. 105 e 106).
H) Sendo certo que ressalta quer das alegações de recurso do Recorrente («É certo que o DL 226/08, de 20/11, veio alterar a redacção do referido artigo 814° do CPC. (...) No entanto, a presente alteração só se aplica aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, ou seja, dia 31 de Março de 2009, nos termos do n°1 do artigo 22° do referido diploma»), quer da fundamentação do despacho recorrido que a aplicação ao caso da redacção actual do artigo 814°/2 do CPC resulta do disposto nos artigos 22°/1 e 23° do DL 226/2008 (regime transitório).
I) Em segundo lugar, ao invocar a inconstitucionalidade da aludida interpretação nas suas alegações e conclusões de recurso, o Recorrente obrigou o tribunal recorrido a conhecer dessa inconstitucionalidade, o que o tribunal recorrido, de resto, fez, não obstante não ter dado (e mal) razão ao Recorrente.
J) Na verdade, não pode haver a menor dúvida de que os direitos de defesa do Recorrente foram limitados com tal interpretação e que se frustraram as suas legítimas expectativas, em clara violação do disposto nos artigos 2° e 20º da CRP, o que, de resto, está bem explícito nas alegações do Recurso perante o tribunal recorrido.
K) Conforme se extrai das sua alegações, na redacção dos artigos 814° e 816° do CPC anterior ao DL 226/2008, «era entendimento maioritário da jurisprudência e da doutrina que o facto de não ser deduzida oposição à injunção não era impeditivo de o Recorrente se opor à execução com os mesmo fundamentos que pudesse utilizar na oposição à injunção», pelo que «estava assegurada a defesa do opoente, bastando para tal aguardar pela execução para deduzir oposição à execução com os mesmos fundamentos» (página 4 das alegações de recurso perante o tribunal recorrido).
L) Ora, com a alteração introduzida pelo DL 226/2008 e a interpretação e aplicação imediata e literal da redacção actual do artigo 814°/2, às injunções a que foi conferida fórmula executória anteriormente à data da entrada em vigor do DL 226/2008, fica precludido o direito de defesa do Recorrente e frustradas as suas legítimas expectativas e a confiança que se sedimentara em face da lei antiga.
M) Por outro lado, também não é verdade que, por um lado, a ratio decidendi da decisão recorrida assente exclusivamente nas normas transitórias supra referidas, nem, por outro lado, que as normas eleitas pelo recorrente como objecto do presente recurso assentem apenas nas normas dos artigos 814°/2 e 816° do CPC.
N) Na verdade, quer a decisão recorrida, quer o objecto do presente recurso, assentam ambos no bloco normativo constituído pelos preceitos dos artigos 814°/2 e 816° do CPC, na sua redacção actual e na redacção anterior ao DL 226/2008, conjugado com o regime transitório deste diploma (artigos 22°/1 e 23°).
O) Com efeito, no que consta ao despacho recorrido, o tribunal não fundamentou o mesmo apenas nas normas transitórias, o que, de resto, seria muito estranho e ininteligível.
P) Pelo contrário, o tribunal recorrido aplicou, literal e imediatamente, a nova redacção do artigo 814°/2 do CPC à oposição à execução apresentada pelo Recorrente, cujo título executivo se formara à luz da redacção anterior, tendo em conta as normas transitárias extraídas dos artigos 22° e 23 do DL226/2008, o que não é a mesma coisa que aplicar apenas o regime transitário.
Q) Por sua vez, o Recorrente no recurso interposto perante este tribunal não fixou o objecto do seu recurso apenas nas normas que resultam dos artigos 814°/2 e 816° do CPC, mas no bloco normativo constituído por aquelas, na sua redacção anterior e actual, conjugadas com o regime transitório do DL 226/2008: (NORMAS CUJA INCONSTITUCIONALIDADE PRETENDE VER APRECIADAS - O artigo 814°, n°2, e 816° do CPC, na redacção dada pelo DL n°226/2008, de 20/11 (que procedeu à equiparação dos fundamentos de oposição fundada em sentença quando o título executivo apresentado se reconduza a requerimento injuntivo ao qual foi aposta fórmula executória, desde que o processo de formação de tal título permita a oposição do requerido), na interpretação de que a nova redacção deste artigo também se aplica a requerimentos injuntivos aos quais foi aposta fórmula executória antes da sua entrada em vigor.».
R) É certo que o Recorrente não fez expressa menção aos artigos 22°/1 e 23 do DL 226/2008 (normas transitárias), no sentido que não enunciou tais artigos no requerimento de interposição de recurso, mas, ao aludir à “interpretação de que nova redacção deste artigo também se aplica a requerimentos injuntivos aos quais foi aposta fórmula executória antes da sua entrada em vigor”, está claramente a referir-se ao regime transitório que decorre daqueles artigos e à redacção anterior do artigo 814° e 816° do CPC.
S) Ou seja, o Recorrente dirige o pedido de inconstitucionalidade ao bloco normativo constituído pelos artigos 814°, n°2, e 816° do CPC, na nova redacção, e o regime transitório do Decreto-Lei 226/2008.
T) Com efeito, ao invocar a “inconstitucionalidade da nova redacção dos artigos 814°/2 e 816° do CPC, na interpretação do tribunal recorrido de que a mesma se aplica de forma literal e imediata aos requerimentos injuntivos aos quais foi aposta fórmula executória antes da sua entrada em vigor, o reclamante reporta-se também às normas que constituíram a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, às normas transitárias (artigos 21°, n.° 1, e 23° do referido Decreto-Lei).
U) Só assim faz, de resto, sentido a parte final da declaração que invoca a inconstitucionalidade e que tem a ver, sem qualquer sombra de dúvida, com a interpretação que o tribunal fez sobre a aplicação da lei - normas transitárias - no tempo.
V) Finalmente o não conhecimento do presente recurso é tanto ou mais injusto quando é certo que não existe nenhuma dúvida quanto à inconstitucionalidade, por violação dos artigos 2° e 20° da CRP, do bloco normativo constituído pelos preceitos dos n.º 1 e 2 do artigo 814° do CPC, na redacção precedente do DL 226/2008, conjugado com o regime transitório deste diploma.
W) Foi esta, de resto, a conclusão do recente acórdão n. °283/2011, de 7/06/2011, deste Tribunal, proferido no processo 900/10.
X) Devia, por isso, o recurso interposto a fls. ter sido admitido.
Y) Não o fazendo, foi violado, designadamente, o artigo 70°/1 al. b), 72°/2 e 78°-A da LTC.” (fls. 160 a 165)
3. Notificado para o efeito, o recorrido deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos responder.
Resta, portanto, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Ao contrário do alegado pelo reclamante – e conforme já amplamente demonstrado pela decisão sumária reclamada – nenhuma das passagens das suas alegações, agora citadas na reclamação, permitem concluir pelo cumprimento do ónus processual de prévia suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Ao invés, as citadas alegações [cfr. §§ F) a H) das conclusões, já supra transcritas] limitam-se a manifestar a discordância do ora reclamante com a aplicação, pelo tribunal recorrido, da nova redacção do artigo 814º do CPC, por força dos artigos 22º, n.º 1, e 23º do Decreto-Lei n.º 226/2008.
A título de exemplo, reitera-se a transcrição da seguinte passagem das suas alegações:
«É certo que o DL 226/08, de 20/11, veio alterar a redacção do referido artigo 814° do CPC. (...) No entanto, a presente alteração só se aplica aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, ou seja, dia 31 de Março de 2009, nos termos do n°1 do artigo 22° do referido diploma»), quer da fundamentação do despacho recorrido que a aplicação ao caso da redacção actual do artigo 814°/2 do CPC resulta do disposto nos artigos 22°/1 e 23° do DL 22612008 (regime transitório).
Daqui decorre que o ora reclamante nunca estabeleceu uma relação directa de antinomia entre a interpretação normativa aplicada e qualquer norma ou princípio constitucional, pelo que é evidente a falta de suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade (artigo 72º, n.º 2, da LTC).
Além disso, a presente reclamação vem ainda reforçar a fundamentação da decisão reclamada, pois admite que o requerimento de interposição de recurso nunca fixou como objecto do presente recurso as normas extraídas dos artigos 22º, n.º 1, e 23º do Decreto-Lei n.º 226/2008 [cfr. §§ E) e R) das conclusões]. Ora, não é admissível que a mera referência à questão da sucessão de lei no tempo permita ultrapassar essa omissão evidente. A sustentação, pelo reclamante, que a referência aos artigos 814º, n.º 2, e 816º abrangia, implicitamente, as normas daquele outro diploma legal não pode proceder, nem procede.
O requerimento de interposição de recurso constitui o momento próprio para a fixação do objecto dos recursos de constitucionalidade, cabendo aos recorrentes nele delimitá-lo. Não o tendo feito, adequadamente, naquela sede, não pode agora vir o reclamante corrigir esse lapso.
Quanto à existência de jurisprudência alegadamente favorável à sua tese, impõe-se apenas frisar que o Acórdão n.º 283/2011 versou sobre objecto diferente do actual, uma vez que incluía o regime transitório.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo reclamante em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 11 de Outubro de 2011. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.