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Processo n.º 164/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
1. A Santa Casa da Misericórdia de Sintra pediu, em acção administrativa comum, a condenação do Estado a reconhecer-lhe o direito à transferência da verba correspondente a 25% da receita das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena (em Sintra), com efeitos a partir de Julho de 2000, data em que os pagamentos foram unilateralmente interrompidos. Fundou o pedido numa Lei do Congresso da República, de 24 de Junho de 1912, ao abrigo da qual auferiu dessa receita até Dezembro de 1999.
Por sentença de 22 de Novembro de 2010, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, recusando aplicação ao artigo 9.º da referida Lei por inconstitucionalidade superveniente decorrente da ofensa dos princípios constitucionais da não consignação, da universalidade, da especificação e da não compensação que considerou consagrados no artigo 105.º da Constituição, absolveu o Estado do pedido.
2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório desta sentença, ao abrigo das disposições conjugadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e da alínea a) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC).
Tendo o recurso sido admitido e prosseguido, foram apresentadas pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso foi interposto, pelo Ministério Público, “nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs. 70º n.º 1- a) 72º nº 1-a) e nº 3 e 75º - A nº 1” da LOFTC, como recurso obrigatório.
2. Vem impugnada a douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, de 22 de Novembro de 2010, proferida nos autos de acção administrativa comum, na forma ordinária, com o n.º 530/07.3BESNT, em que é A. a Santa Casa da Misericórdia de Sintra, IPSS, e R. o Estado português.
3. É um recurso por inconstitucionalidade (decisão positiva), decorrente da “recusa[…] [de] aplicação do art. 9.º da Lei do Congresso da República de 24 de Junho de 1912, por inconstitucionalidade superveniente, decorrente da ofensa dos princípios constitucionais da não consignação, da universalidade, da especificação e da não compensação, consagrados no art. 105º da Constituição da República Portuguesa (…)”.
4. A norma do art. 9.º da cit. Lei do Congresso, não dispõe de modo a impedir que a fonte de receita e respectiva afectação, nela previstas, sejam inscritas na lei do orçamento do Estado (OE), não propiciará portanto qualquer “desorçamentação”, pelo que não viola a regra constitucional da universalidade.
5. A referida norma também não impedirá que essas verbas, mormente aquelas decorrentes da aplicação da receita em causa, sejam inscritas no OE “segundo a respectiva classificação orgânica e funcional”, em ordem à consecução do propósito de prevenir a “existência de dotações e fundos secretos”, pelo que não viola a regra constitucional da especificação das despesas.
6. A norma em apreço é omissa quanto ao modo de inscrever esta receita e sua aplicação, como verba bruta ou líquida, não obstando a que as mesmas sejam inscritas no OE sem qualquer compensação ou desconto, pelo que não viola a regra constitucional da não compensação.
7. A regra da não consignação não tem assento constitucional, mas apenas na Lei de Enquadramento Constitucional (LEO), pelo que quanto à mesma não se configura uma “questão de inconstitucionalidade superveniente” no sentido do art. 290.º, n.º 2, da CRP, o qual apenas prevê a contrariedade à “Constituição ou aos princípios nela consignados.
8. O objecto do recurso não poderá ser convolado para incidir sobre a “questão de ilegalidade”, por eventual violação de lei com valor reforçado, sem embargo deste caso poder configurar umas das excepções expressamente previstas na LEO à regra legal da não consignação do produto de quaisquer receitas à cobertura de certas despesas.”
Alegou também a Santa Casa da Misericórdia de Sintra, no sentido da não inconstitucionalidade da norma em causa, com as seguintes conclusões:
“1.ª) A norma do artigo 9.º da Lei do Congresso da República não viola o princípio da universalidade, uma vez que não visa a exclusão de receitas ou despesas da necessária previsão orçamental, estabelecendo apenas um comando dirigido à afectação das respectivas receitas.
2.ª) Do mesmo modo, não se verifica a violação do princípio da especificidade, não colhendo a interpretação actualista da norma, nada obstando a que a receita em causa seja enquadrada, actualmente, segundo a respectiva classificação orgânica e funcional, em ordem a prevenir a existência de dotações e fundos secretos.
3.ª) Sendo omissa a norma do artigo 9.º da Lei do Congresso da República sobre o modo de inscrição das respectivas receitas no Orçamento do Estado, não é admissível concluir que esta seria feita mediante a dedução do valor atribuído à ora recorrida, não se verificando, desta forma, a violação do princípio da não compensação.
4.ª) Mesmo ignorando o facto de o princípio da não consignação não ter assento constitucional, mas apenas legal, excluindo-se portanto do objecto presente recurso, importa referir que a situação concreta se enquadra no âmbito das excepções ao referido princípio, expressamente consagradas na alínea f) do n.º 2 do artigo 7.º da LEO.
5.ª) Pelo que se conclui pela não inconstitucionalidade superveniente da norma do artigo 9.º da Lei do Congresso da República ao abrigo do artigo 290.º da CRP, em virtude de não violar os princípios constitucionais decorrentes do artigo 105.º do texto constitucional, designadamente o princípio da universalidade, o princípio da especificidade, o princípio da não compensação e o princípio da não consignação.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, determinando-se a reforma da douta sentença ora recorrida, em conformidade com a decisão sobre a questão de constitucionalidade aqui invocada.”
Fundamentos
3. A sentença recorrida recusou aplicação ao artigo 9º da Lei do Congresso da República, de 24 de Junho de 1912, por inconstitucionalidade superveniente, decorrente da ofensa dos princípios orçamentais da universalidade, da especificação, da não compensação e da não consignação, que considerou ínsitos no artigo 105.º da Constituição da República Portuguesa e, em consequência, absolveu o Estado do pedido.
Embora seja teoricamente discutível a qualificação dogmática da cessação de vigência do direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição por ser contrário a esta ou aos princípios nela consignados (n.º 2 do artigo 290.º da CRP), não se suscitam hoje dúvidas quanto à configuração dos litígios emergentes como questão de constitucionalidade para efeito da competência do Tribunal Constitucional e do uso dos meios processuais correspondentes.
4. Importa precisar o objecto do recurso. Apesar de na sentença recorrida se afirmar, sem mais, quem é recusada aplicação do artigo 9.º da referida Lei de 24 de Junho de 1912, do Congresso da República, a recusa efectiva (ou declaração de cessação de vigência, nos termos do n.º 2 do artigo 290.º da Constituição), não abrange o inteiro teor do citado artigo 9.º, mas somente o último travessão do respectivo § único que dispõe que “do rendimento da taxa cobrada nas propriedades do Estado, em Cintra, 25 por cento serão destinados à Misericórdia de Cintra”. Segmento este cujo exacto alcance não cabe ao Tribunal determinar, tomando-a, para efeitos do confronto com a Constituição no âmbito do presente processo, com o sentido que a decisão recorrida lhe atribuiu, designadamente, na parte em que identifica a receita de que uma parte caberia à Misericórdia como respeitando aos proventos resultantes da venda de bilhetes de entrada nos Palácios Nacionais de Sintra e da Pena.
5. Pela Lei de 24 de Junho de 1912, publicada no Diário do Governo, n.º 150, de 28 de Junho de 1912, o Congresso da República extinguiu a “Superintendência dos Paços” e transferiu para o Ministério das Finanças a guarda e administração dos móveis e imóveis dos extintos paços reais, tendo disposto, além do mais, o seguinte:
“Art.º 1.º A guarda, conservação e administração dos móveis e imóveis dos extintos paços reais, ficam a cargo do Ministério das Finanças, por intermédio da Direcção Geral da Fazenda Pública;
(...)
Art.º 6.º. Ficam pertencendo à Fazenda Nacional, e, portanto, abrangidos nas disposições do artigo 1.º os Palácios da Ajuda, de Belém, de Cintra, de Mafra, das Necessidades, da Pena e de Queluz.
(...)
Art.º 9.º Os demais palácios, quintas, jardins, tapadas e cercas, a esta data sem aplicação especial ou enquanto não a tiverem, serão destinados à visita do público mediante taxas e condições a regulamentar.
§ único. A taxa a cobrar nunca será inferior a 100 réis, excepto aos domingos e dias feriados, em que a entrada será gratuita.
O Governo determinará, em regulamentos adequados, as taxas a cobrar por quaisquer distracções que dentro das propriedades do Estado se estabeleçam ou já estejam estabelecidas. Do rendimento da taxa cobrada nas propriedades do Estado, em Cintra, 25 por cento serão destinados à Misericórdia de Cintra.
Art. 10.º A receita desta proveniência, bem como a de quaisquer arrendamentos de imóveis não compreendidos na aplicação fixada nos artigos anteriores, a da venda de frutos ou ainda outras de qualquer proveniência, constituirão receitas do Estado”
A Santa Casa da Misericórdia de Sintra considera que a norma da parte final do § único do artigo 9.º da referida Lei continua em vigor e pretende que lhe seja judicialmente reconhecido o direito correspondente, que afirma ter sido desde sempre respeitado, antes e depois da entrada em vigor da Constituição de 1976, até que em 2000 a Administração decidiu interromper os pagamentos. A sentença recorrida não lhe reconheceu este direito por entender que a invocada norma cessou vigência nos termos do n.º 2 do artigo 290.º da Constituição por ser contrária aos princípios constitucionais da não consignação, da universalidade, da especificação e da não compensação, que considerou ínsitos no artigo 105.º da Constituição.
Tendo presente que a decisão recorrida deixou de apreciar quaisquer outras questões face à resposta que, com o exclusivo fundamento em desconformidade com o artigo 105.º da Constituição, encontrou para a questão de saber se o título atributivo da receita reclamada pela Autora se mantém vigente e que o recurso é interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas compete decidir se a norma em causa viola qualquer dos princípios constitucionais que a sentença recorrida considerou ínsitos no artigo 105.º da Constituição, designadamente, dos princípios (i) da universalidade, (ii) da especificação, (iii) da não compensação e (iv) da não consignação. Aliás, é também esta a posição sustentada nas alegações do Ministério Público.
6. Dispõe o artigo 105.º da Constituição o seguinte:
“Artigo 105.º
(Orçamento)
1. O Orçamento do Estado contém:
a) A discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e serviços autónomos;
b) O orçamento da segurança social.
2. O Orçamento é elaborado de harmonia com as grandes opções em matéria de planeamento e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato.
3. O Orçamento é unitário e especifica as despesas segundo a respectiva classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos, podendo ainda ser estruturado por programas.
4. O Orçamento prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas, definindo a lei as regras da sua execução, as condições a que deverá obedecer o recurso ao crédito público e os critérios que deverão presidir às alterações que, durante a execução, poderão ser introduzidas pelo Governo nas rubricas de classificação orgânica no âmbito de cada programa orçamental aprovado pela Assembleia da República, tendo em vista a sua plena realização.”
O quadro primário de conteúdo, elaboração, aprovação e execução do Orçamento constante deste preceito é completado pelo artigo 106.º da Constituição, conjunto normativo relativamente parco que é desenvolvido pela Lei de Enquadramento Orçamental. Relembra-se que o âmbito do presente recurso é restrito à desconformidade da solução normativa em causa – na parte em que institui uma despesa para o Estado – com as regras e princípios orçamentais constantes do artigo 105.º da Constituição, a que o Tribunal vai limitar-se.
Como se diz nas alegações apresentadas pelo Ministério Público, o artigo 105.º da Constituição tem uma dupla dimensão, interna e externa. Directamente dispõe (dimensão interna) sobre o modo como deve ser organizado o Orçamento do Estado. Mas também impede (dimensão externa) que leis ordinárias com incidência orçamental contenham disposições atentatórias das regras e princípios nele consagrados.
No caso, é esta última dimensão que interessa.
7. Dos n.ºs 1 e 3 do artigo 105.º da Constituição extrai-se o princípio da plenitude do Orçamento do Estado que comporta dois aspectos ou subprincípios intimamente relacionados: o princípio da unidade – o orçamento deve ser apenas um (i.e., único) e o princípio da universalidade – todas as receitas e todas as despesas para determinado período financeiro devem ser inscritas nesse orçamento. O Orçamento do Estado compreende todas as receitas e despesas do Estado, em termos globais, incluindo a discriminação das receitas e das despesas dos fundos e serviços autónomos e do sistema de segurança social (“um só orçamento, tudo no orçamento”). A regra da universalidade visa evitar a exclusão de receitas e despesas da previsão orçamental, assegurando a racionalidade e a transparência financeira e o controlo político da actividade governativa de que o Orçamento é instrumento primordial (Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol. I, 4ª ed., p.149.
Ora, a instituição de uma participação na receita proveniente da gestão de determinados bens públicos a favor de uma qualquer entidade (seja ela pública, privada do sector social ou cooperativo) não é susceptível, por si, de violar o princípio da universalidade do orçamento assim entendido. Efectivamente, nada numa disposição legal deste tipo e, desde logo, na disposição legal do artigo 9.º da Lei do Congresso de República acima transcrita, indicia a “desorçamentação” das receitas aí previstas. A atribuição dessa receita à Misericórdia de Sintra – que, na lógica financeira, é uma despesa para o Estado – não aponta, directa ou indirectamente, para a exclusão de receitas ou despesas da apropriada previsão e inscrição orçamental. Esse é um problema posterior que a norma em causa não preordena nem prejudica.
A sentença recorrida parece supor que, com esse princípio, a Constituição proíbe a imposição de taxas ou a atribuição de receitas por via de leis ordinárias avulsas, o que não é exacto. Com efeito, a génese extra-orçamental dessa imposição ou fonte de despesa não a coloca fora do Orçamento. Este é que deve ser elaborado “tendo em conta as obrigações decorrentes da lei ou de contrato”, conforme determina o n.º 2 do artigo 105.º da Constituição, pelo que se a despesa correspondente não for adequadamente inscrita tal será obra da Lei do Orçamento e não do acto normativo que institui a receita ou a despesa.
Consequentemente, quando a este fundamento o julgamento de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida não pode manter-se.
8. Seguidamente, a sentença considera violado o princípio da especificação, princípio este que exige que as despesas sejam individualizadas segundo a respectiva classificação orgânica (pelos diversos departamentos da Administração financeira, organismos serviços, artigos, números e alíneas) e funcional (segundo a natureza das funções exercidas pelo Estado), de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos (n.º 3 do artigo 105.º da CRP)
Também aqui é evidente que a norma em causa não está em contradição nem sequer comporta qualquer possibilidade de pôr em risco este princípio. Uma norma que se limita a estabelecer o direito de uma entidade perfeitamente identificada a quinhoar numa certa receita do Estado não comporta violação ou risco de violação de tal princípio. O Orçamento é que tem, depois, de prever a despesa correspondente apresentando-a em conformidade com os critérios orgânicos e funcionais legalmente estabelecidos de modo a garantir, não só a transparência mas também os objectivos de racionalidade financeira e controlo político visados pela instituição orçamental (cfr. Rui Guerra da Fonseca, Comentário à Constituição Portuguesa, coordenação de Paulo Otero, Vol. II, pag. 944. Mas isso não exige, contrariamente ao que parece pressupor a sentença recorrida, que seja a lei que institui a despesa a proceder ela mesma a essa arrumação ou classificação.
É, pois, manifesto que também este fundamento de inconstitucionalidade não pode ser confirmado.
9. Foi ainda considerado na sentença revidenda que a norma em causa entrou em colisão com o princípio da não compensação orçamental. Com este princípio (rectius, subprincipio do princípio da descriminação das receitas e despesas – artigo 105.º, n.º1, alínea a), da CRP) pretende significar-se que as receitas e despesas devem ser inscritas no orçamento de forma bruta e não líquida. Dito de outro modo, não devem ser deduzidas às receitas as importâncias dispendidas para a sua cobrança ou quaisquer outras, nem às despesas se descontam receitas que tenham sido originadas na sua realização.
A sentença recorrida parece ter entendido que, da norma em apreciação resultava a eventual inscrição no Orçamento do Estado das receitas provenientes da gestão dos monumentos em causa, deduzidas do valor correspondente a 25% das mesmas, atribuído à ora recorrida. A receita seria orçamentada pelo montante previsto das cobranças, abatido desta transferência. Mas sem razão, como se sustenta nas alegações do Ministério Público e da recorrida. A norma do artigo 9.º da Lei do Congresso da República nada dispõe quanto ao modo de inscrição da receita cobrada pelas entradas nos palácios de Sintra de que a Misericórdia pretende caber-lhe parte, não obstando a que a mesma seja inscrita no Orçamento do Estado sem qualquer compensação ou desconto. Haverá, de um lado, a previsão de receita; e do outro, como despesa, a verba correspondente à percentagem a transferir para a Misericórdia.
Assim sendo, não é admissível imputar-se à norma em causa eventual inscrição das referidas receitas no Orçamento do Estado mediante a dedução do valor correspondente a 25% das mesmas, ou seja, do valor atribuído à ora recorrida, pelo que este fundamento do juízo de inconstitucionalidade também não pode manter-se.
10. Finalmente, a sentença recorrida entendeu que a norma em causa era contrária ao princípio orçamental da não consignação que também filiou no artigo 105.º da Constituição, considerando-a, também por isso, supervenientemente inconstitucional.
A consignação de receitas consiste, segundo a doutrina corrente e como se disse no acórdão n.º 452/87, www.tribunalconstitucional.pt “na afectação de determinada receita a uma determinada despesa, por tal forma que esta apenas poderá ser satisfeita se e na medida em que o montante (cobrado) dessa receita o possibilite (duplo cabimento). E, por outro lado, aquela receita não pode ser destinada a outras despesas, a menos que se verifique um excesso dela sobre a despesa a que foi afectada (cf. J. J. Teixeira Ribeiro, Lições..., cit., pp. 49 e segs., Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1987, p. 324, e Sabino Teixeira, «Consignação de Receita», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, II, Coimbra, 1972, p. 659)”. A razão desta regra é não só a de “evitar a existência de uma Administração Pública fragmentária, desprovida de uma gestão de conjunto, coerente e racional” (Guilherme D’Oliveira Martins, Constituição Financeira, 2.º Vol. 2.º, ed. AFDL, p. 289), mas também, como causa próxima, a de que, correspondendo a fixação das despesas ao montante dos gastos que se prevê necessário suportar, é conveniente que as receitas se destinem indistintamente à cobertura de todas as despesas porque, se assim não for e se a realização da receita previsionalmente afecta a determinada despesa vier a revelar-se inferior ao previsto, a despesa ficaria na contingência de ter de ser menor do que o necessário à satisfação da necessidade pública que a justifica. Nesta perspectiva, é duvidoso que a circunstância de uma despesa que se traduz num subsídio a favor de uma entidade estranha à Administração, fixado de modo a corresponder a um percentual de determinada receita, contenda com a razão de ser da regra da não consignação. É a própria transferência para a entidade beneficiária e, portanto, a despesa do Estado, que se torna congenitamente eventual, apenas existindo se a na medida da cobrança da receita em função da qual é calculada. Não há o risco de que essa destinação possa comprometer a satisfação de uma necessidade pública ou o cumprimento de um dever legal ou contratual a cargo da Administração
Todavia, no caso não interessa averiguar se estamos perante uma verdadeira e própria consignação de receitas. Com efeito, nos termos da definição do seu âmbito, que resulta da conjugação do conteúdo da decisão recorrida com a previsão de recorribilidade que abriu o acesso ao Tribunal Constitucional, no presente recurso apenas cabe confrontar a norma em causa com parâmetros de constitucionalidade. Ora, como bem se argumenta nas alegações do Ministério Público e da recorrida, o princípio da não consignação de receitas, apesar de ser uma das “regras clássicas” da organização do orçamento (Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5ª ed., p 59), não tem consagração a nível constitucional. O Tribunal já o reconheceu, designadamente, nos acórdãos n.º 452/87 e n.º 361/91, sendo que as revisões constitucionais posteriores a esses arestos não modificaram a base deste entendimento. Como se disse neste último acórdão “a regra da não-consignação – regra que postula que «todas as receitas devem servir para cobrir todas as despesas» – não tem consagração constitucional, tendo conhecido «múltiplas excepções, que derivam da existência de situações de autonomia financeira, em que as receitas de determinados organismos são afectadas à cobertura das suas despesas no âmbito da sua administração própria, e, também, de expressas determinações da lei, no sentido de que certas despesas só podem ser efectuadas se forem cobradas receitas que as cubram (consignação de receitas, em sentido estrito: exige-se então duplo cabimento da despesa, na verba da despesa e na verba da receita que a financia)» (A. Sousa Franco, ob. cit., p. 325; no sentido de que a regra orçamental da não-consignação não tem consagração constitucional, vejam-se, além deste autor, a pp. 327 e segs., J. J. Teixeira Ribeiro, «Os Poderes Orçamentais da Assembleia da República», in Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, vol. xxx, 1987, p. 181, e Lições de Finanças Públicas, 3.ª ed., Coimbra, 1990, p. 83, e, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, embora incidentalmente, o Acórdão n.º 452/87, já atrás citado, que versa uma questão da afectação ou consignação em sentido amplo de receitas municipais a despesas municipais determinada pelo Estado, a qual apenas foi tida por inconstitucional por constar de diploma do Governo, sem dispor de autorização legislativa)”.
Em conclusão e mantendo-se este entendimento, a regra da não-consignação está prevista, comportando significativas excepções, na lei do enquadramento do Orçamento do Estado (artigo 7.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, alterada pelas Leis n.ºs 2/2002, de 28 de Agosto, 23/2003, de 2 de Julho, 48/2004, de 24 de Agosto e 22/2011, de 20 de Maio), mas não decorre, como tal, do artigo 105.º da Constituição (salvo, porventura, se a consignação fosse levada a extremos de generalização em que o próprio princípio da unidade entraria em crise). Consequentemente, também quanto a este fundamento não pode manter-se o juízo de inconstitucionalidade que levou a considerar cessada a vigência da norma objecto de apreciação no presente recurso, sem necessidade de averiguar se dela resulta uma autêntica consignação de receitas e se, neste caso, caberia em alguma das excepções que esta regra infra-constitucional de organização do Orçamento comporta.
Nestes termos, não pode confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade que levou a sentença recorrida a recusar aplicação (ou a considerar cessada a vigência nos termos do n.º 2 do artigo 290.º da CRP) à norma da última parte do § único do artigo 9.º da Lei de 24 de Junho de 1912, do Congresso da República, no segmento que atribuiu à Santa Casa da Misericórdia de Sintra 25% do valor proveniente da entradas nos Palácios Nacionais de Sintra e da Pena.
Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Setembro de 2011. – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.