Imprimir acórdão
Processo n.º 20/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., juiz de direito no Tribunal Judicial do Funchal, foi punido pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), com a pena de transferência, pela autoria de uma infracção disciplinar prevista no artigo 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho. Entre os factos imputados ao magistrado recorrente como incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções figuravam duas altercações em lugar público, uma por iniciativa da mulher outra por iniciativa da filha do recorrente, quando o surpreenderam na companhia de outra mulher com quem mantinha uma relação extra-conjugal.
O recorrente impugnou contenciosamente esta decisão do CSM, mas o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Novembro de 2010, negou-lhe provimento.
O recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, visando a apreciação de questões de inconstitucionalidade enunciadas do seguinte modo:
“1. A norma conjugada dos art.º 131.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e 85.º, n.º 5 e 88.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Dec.-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, interpretada e aplicada, como o foi pelo Conselho Superior da Magistratura, no sentido de que permite ao referido CSM mandar instaurar averiguações sumárias e discretas, sem nenhuma correspondência com a real existência de um verdadeiro processo disciplinar, ainda que de investigação sumária, é materialmente inconstitucional, por violação do n.º 1 do art.º 217.º da CRP;
2. A norma do n.º 5 do art.º 85.º do ED aprovado pelo Dec.-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, interpretada e aplicada no sentido com que o Plenário Extraordinário de 15.05.2007 do CSM a interpretou e aplicou – ou seja, no sentido em que o processo de meras averiguações também pode ser utilizado para a investigação da conduta pessoal dos juízes, fora do funcionamento dos respectivos serviços – é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do art.º 127.º, da CRP, já que não se trata do exercício da acção disciplinar nos termos da lei;
3. As normas dos n.º 1, 2 e 3 do artº 114.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, quando entendidas e aplicadas, como o foram pelo CSM e pelo instrutor do processo disciplinar, no sentido de que a violação dos deveres por essas normas impostos, designadamente a não observância, sem justificação, do prazo máximo de trinta dias para ultimar o processo disciplinar e a não comunicação ao arguido da data em que foi iniciado o processo, são meras irregularidades, porque então tal entendimento, na medida em que não garante todos os direitos processuais do juiz arguido e pode conduzir à aplicação de uma pena deslocativa do magistrado, como efectivamente conduziu, representa uma inconstitucionalidade material, por violação do disposto no n.º 1 do art.º 216.º da CRP;
4. A norma do n.º 1 do art.º 117.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, quando interpretada e aplicada no sentido, em que o foi, de que a acusação não precisa de individualizar em concreto as diversas infracções que imputa ao arguido, nem de indicar o conteúdo concreto do desvalor ético-disciplinar associado a essas infracções, porque então está ferida de inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos art.ºs 13.º, 18.º, 26.º, n.º 1 e 32.º, n.º 10, da CRP.
5. O último segmento normativo do art.º 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, interpretado e aplicado no sentido e com o alcance com que a interpretaram e aplicaram a acusação e o acórdão recorrido, ou seja, no sentido de que os actos ou omissões da vida privada, familiar, conjugal e íntima de um juiz podem repercutir-se na sua vida pública em termos que possam ser considerado incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções, sem concretizar quais possam ser tais actos ou omissões, o modo como possam repercutir-se e o conteúdo do que deva considerar-se indispensável à dignidade do exercício das funções, porque então tal segmento normativo é materialmente inconstitucional, por violar o disposto nos art.º 13.º, 18.º, 26.º, n.º 1 e 216.º n.º 1, da CRP.”
Admitido o recurso e recebido o processo no Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho do seguinte teor (artigo 75.º-A da LTC):
“1. A fiscalização concreta de constitucionalidade exerce-se por via de recurso de decisões judiciais (artigo 280.º da Constituição e artigo 70.º da LTC). O recurso tem por objecto necessário (em sentido material) normas tal como foram aplicadas ou a que seja recusada aplicação com fundamento em inconstitucionalidade pela decisão judicial recorrida (objecto em sentido processual). Ainda que haja uma decisão administrativa ou uma decisão materialmente administrativa prévia, só a aplicação ou desaplicação da norma por parte de um órgão qualificável como “tribunal” pode abrir a via de recurso de constitucionalidade.
Sucede que nos n.ºs 1, 2 e 3 do requerimento de interposição do presente recurso se identificam formalmente como objecto do pedido de apreciação de constitucionalidade determinadas normas com o sentido com que foram aplicadas pelo Conselho Superior da Magistratura. Não sendo este órgão qualificável como tribunal, nem sendo as suas decisões passíveis de impugnação perante o Tribunal Constitucional, o recurso não pode prosseguir nesta parte.
2. Notifique para alegações quanto às normas identificadas nos n.ºs 4 e 5 do requerimento de interposição do recurso.”
O recorrente apresentou alegações, em que sustenta, em síntese:
A) Como questão prévia, que deve conhecer-se das questões que o despacho liminar do relator considerou não serem passíveis de apreciação pelo Tribunal Constitucional;
B) Que a norma do n.º 1 do artigo 117.º do EMJ, interpretada no sentido de que a acusação não tem de individualizar as diversas infracções que imputa ao arguido nem de indicar o conteúdo concreto do desvalor ético-disciplinar associado a essas infracções, é inconstitucional por violação dos artigos 13.º, 18.º, 26.º, n.º1 e 32.º, n.º 10, da Constituição;
C) Que a norma do ultimo segmento normativo do artigo 82.º do EMJ, interpretado no sentido de que os actos ou omissões da vida privada, familiar, conjugal e íntima de um juiz podem repercutir-se na sua vida pública em termos que possam ser considerados incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções, sem concretizar quais possam ser tais actos ou omissões, o modo como podem repercutir-se e o conteúdo do que possa considerar-se indispensável à dignidade do exercício das funções, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º, 26.º, n.º 1, e 261.º, n.º 1, da Constituição.
II – Fundamentos
3. Nas alegações, o recorrente questiona o despacho liminar de delimitação do objecto do recurso acima transcrito (fls. 306) na parte em que nele foi decidido que o recurso não podia prosseguir quanto às questões identificadas nos n.ºs 1, 2 e 3 do requerimento de interposição do recurso.
Porém, tal decisão é agora imodificável, por não ter sido atacada, pela via própria, dentro do prazo legal respectivo. Esse meio é a reclamação para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A, aplicável por força do n.º 2 do artigo 78.º-B da LTC, que deve ser deduzida no prazo geral de 10 dias (artigo 153.º do CPC, ex vi artigo 69.º da LTC).
Com efeito, contrariamente ao que o recorrente parece supor, esse despacho assumiu conteúdo decisório relativamente à questão do conhecimento das referidas questões e não de mera suscitação da questão para debate e ulterior apreciação. Essa decisão, por falta de impugnação no prazo legal, adquiriu força de caso julgado formal, não podendo agora ser posta em causa (artigo 672.º do CPC). Se o recorrente entendia que o despacho errara na interpretação do requerimento de interposição do recurso ou na apreciação dos pressupostos e requisitos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade ou que consubstanciava omissão de qualquer formalidade processual, teria de suscitar tal questão perante a conferência ou arguir a nulidade no prazo geral. Guardando-se para as alegações, deixou que a situação processual, definida pelo referido despacho se tornasse definitiva.
Consequentemente, não pode apreciar-se a “questão prévia” suscitada pelo recorrente, pelo que só se conhecerá das questões relativamente às quais o despacho liminar determinou a apresentação de alegações.
4. A primeira questão cuja apreciação o recorrente pretende respeita à norma do n.º 1 do artigo 117.º do EMJ, quando interpretado no sentido de que a acusação não precisa de individualizar em concreto as diversas infracções que imputa ao arguido, nem de indicar o conteúdo concreto do desvalor ético-disciplinar associado a essas infracções, que o recorrente considera ferida de inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º, 26.º, n.º 1 e 32.º, n.º 10, da CRP.
Impõe-se uma primeira delimitação do objecto do recurso.
O acórdão recorrido não perfilhou o entendimento de que a acusação (o acto acusatório, a nota de culpa) não tem de individualizar as diversas infracções que imputa ao arguido. O que entendeu foi que a acusação se reporta, claramente, a uma única infracção disciplinar constituída por todos os factos nela descritos, não havendo que individualizar quaisquer actos ou grupos de actos para efeitos de subsunção autónoma e consequente cúmulo. Este entendimento, que não cabe censurar no que concerne à interpretação da nota de culpa e à aplicação do direito ordinário que lhe subjaz, não corresponde, nem cabe (por redução) na definição do objecto do recurso a que o recorrente procede, pelo que, relativamente à norma do n.º 1 do artigo 117.º do EMJ, só pode conhecer-se do que incide sobre a desnecessidade de indicação na acusação do conteúdo concreto do desvalor ético disciplinar associado aos factos nela descritos.
O n.º 1 do artigo 117.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais dispõe:
“Artigo 117.º
(Acusação)
1. Concluída a instrução e junto o registo disciplinar do arguido, o instrutor deduz a acusação no prazo de dez dias, articulando discriminadamente os factos constitutivos da infracção disciplinar e os que integram circunstâncias agravantes ou atenuantes, que repute indiciados, indicando os preceitos legais no caso aplicáveis.
2. (…).”
Entende o recorrente que esta norma é inconstitucional quando interpretada com o sentido de que a acusação não tem de indicar o conteúdo concreto do desvalor ético disciplinar associado às infracções imputadas, isto é, na hipótese de a infracção se reportar a actos ou omissões da vida pública dos magistrados ou que nela se repercutam, não tem de proceder à explicitação do conceito de “dignidade indispensável ao exercício das funções do magistrado judicial”. Argumenta que, não tendo o instrutor do processo, nem qualquer outro órgão do Conselho Superior da Magistratura, indicado o conteúdo concreto do pretenso valor ético-jurídico disciplinar cuja violação estaria associada à sua conduta, a norma em causa, interpretada como o foi, viola o disposto nos artigos 13.º, 18.º, 26.º, n.º 1 e 32.º, n.º 10, da Constituição.
O acórdão recorrido interpretou a referida norma no sentido de que não compete à acusação densificar o conceito de incompatibilidade com a dignidade indispensável ao exercício das funções de juiz, que é conceito transposto da própria lei. Compete-lhe descrever os factos e proceder à respectiva subsunção ou qualificação jurídica. É à entidade que aprecia a acusação que incumbe, a partir do entendimento que tenha do conceito, verificar se os factos o integram ou não.
A primeira nota é a de que, estando em causa uma norma respeitante à fase de acusação, apenas há que considerar a não exigência dessa especificação no acto acusatório e não em quaisquer outro acto do procedimento disciplinar, designadamente no acto punitivo primário (decisão da formação permanente do CSM) ou no acto que aprecia a impugnação administrativa contra ele dirigido (decisão da formação plenária do CSM). Têm funcionalidades diferentes e têm diferente base legal a exigência de discriminação e de qualificação dos factos na acusação e a exigência de fundamentação de facto e de direito da decisão administrativa ou em matéria administrativa. O artigo 117.º do EMJ só respeita aos requisitos do acto acusatório, não aos requisitos do acto decisório.
E, por essa mesma razão, é manifestamente destituída de fundamento a invocação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) e da reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), normas constitucionais que a inclusão ou não de certa especificação num acto preparatório deste tipo é insusceptível de vulnerar. Só o acto punitivo, e não o prenúncio dele pela imputação de factos susceptíveis de o justificar, é susceptível de repercutir-se sobre os direitos pessoais do arguido ou sobre o princípio da inamovibilidade dos juízes. Assim, o único parâmetro constitucional pertinente, perante uma norma desta natureza ou com este conteúdo e finalidade, é o do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição. O que pode estar em causa perante um tal acto é saber se um procedimento disciplinar assim concebido na fase de acusação assegura ao arguido os direitos de audiência e defesa em processo de tipo sancionatório. Não se a medida cuja aplicação prenuncia pode lesar outros direitos ou valores constitucionais.
Vejamos, então.
Recorde-se que o processo disciplinar contra magistrados judiciais se encontra regulado nos artigos 110.º a 124.º do EMJ. Dispõe o artigo 117.º do EMJ que, concluída a instrução, o instrutor deduz acusação, articulando discriminadamente os factos constitutivos da infracção disciplinar e os que integram circunstâncias agravantes ou atenuantes, que repute indiciados, indicando os preceitos legais no caso aplicáveis. O arguido é notificado da acusação, fixando-se-lhe prazo entre 10 a 20 dias para apresentar a defesa (artigo 118.º). Durante o prazo de apresentação de defesa o arguido, por si ou através do defensor nomeado ou do mandatário constituído, pode examinar o processo (artigo 120.º). Com a defesa, o arguido pode indicar testemunhas, juntar documentos ou requerer diligências (artigo 121.º). A falta de audiência do arguido com possibilidade de defesa constitui nulidade insuprível (n.º 1 do artigo 124.º)
A participação do arguido em processo disciplinar de direito público assume a modalidade qualificada de direito de audiência e defesa. Esta garantia, que consta do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição para os processos sancionatórios em geral e que no texto constitucional é especificamente replicada a propósito dos trabalhadores da Administração Pública (no n.º 3 do artigo 269.º da Constituição), deve ser entendida como expressando um princípio geral de audiência prévia dos interessados e de reconhecimento do seu direito de defesa efectiva relativamente a quaisquer decisões que comportem um efeito punitivo. Trata-se de princípio intimamente conexionado com a ideia de “Estado de direito democrático” [artigos 2.º e 9.º alínea b) da Constituição] e que não pode deixar de ser entendido como o assegurar de possibilidades reais, face a todo e qualquer procedimento com fim punitivo, de o interessado ser ouvido de modo a poder demonstrar a própria inocência ou reduzir a responsabilidade a termos justos, enfim, o “right to be heard” caracterizador do “due process”. Trata-se de uma participação com fins garantísticos, que se materializa através da técnica de atribuição de um direito fundamental (de audiência e defesa), cuja substancialidade exige que o regime do processo disciplinar proporcione ao arguido a possibilidade efectiva de se pronunciar sobre todos os factos, sobre todas as provas e sobre todas as questões jurídicas a ponderar na decisão final.
Ora, esta finalidade cumpre-se suficientemente com a descrição dos factos e com a respectiva referenciação às normas em que se entende subsumir a conduta relativamente à previsão e punição (os “preceitos legais aplicáveis”. O interessado fica a saber, em termos de facto e de qualificação jurídica, que actos ou omissões se lhe imputam e que consequências punitivas se pretende daí extrair, de modo a poder eficazmente defender-se, seja negando total ou parcialmente os factos ou as suas circunstâncias, seja invocando contra eles outros que lhes retirem ou modifiquem a significação jurídica ou se repercutam no exercício do poder disciplinar, seja contestando a qualificação jurídica que é proposta para os factos descritos. Para tanto – para que a acusação satisfaça as exigências constitucionais de audiência e defesa do arguido – não é necessária uma explicitação, na nota de culpa, do conceito de dignidade indispensável ao exercício das funções”. Para que o interessado possa defender-se da pretensão punitiva basta-lhe conhecer a materialidade fáctica que lhe é imputada, com as suas circunstâncias de modo, lugar e tempo, e saber que é nesse conceito relativamente indeterminado que se pretende subsumir a conduta descrita (previsão) e que efeitos (pena) se pretende isso implicar. Com isso o arguido, fica em condições de discorrer sobre a possibilidade de enquadramento ou não dessa acção ou omissão no referido conceito legal, sem que para tanto seja indispensável um discurso autónomo – a explicitação da premissa intermédia através da qual o conceito indeterminado se concretiza – na peça acusatória sobre o que se entende por dignidade indispensável ao exercício das respectivas funções ou sobre o modo como se entende que a acção ou omissão imputada nela se repercute. Coisa diversa, mas que respeita já à suficiência da enunciação da norma que prevê a infracção – a uma questão de validade de outra norma, da norma disciplinar substantiva e não da norma disciplinar procedimental – e que seguidamente se abordará, é a de saber se a norma que prevê a infracção satisfaz as exigências de determinabilidade constitucionalmente exigíveis.
Em conclusão, a norma do n.º 1 do artigo 117.º do EMJ, interpretada no sentido de que a acusação não tem de explicitar o conceito de “dignidade indispensável ao exercício das suas funções”, não ofende a garantia de que o processo disciplinar assegure ao arguido os direitos de audiência em defesa.
5. O recorrente pretende que o último segmento normativo do artigo 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, interpretado e aplicado no sentido de que os actos ou omissões da vida privada, familiar, conjugal e íntima de um juiz podem repercutir-se na sua vida pública em termos que possam ser considerados incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções, sem concretizar quais possam ser tais actos ou omissões, o modo como possam repercutir-se e o conteúdo do que deva considerar-se indispensável à dignidade do exercício das funções, é materialmente inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 13.º, 18.º, 26.º, n.º 1 e 216.º n.º 1, da CRP. Coloca a propósito desta norma problemas de duas ordens. O primeiro consiste em saber se a norma da parte final do artigo 82.º do EMJ é suficientemente determinada. O segundo diz respeito ao próprio conteúdo da infracção, à possibilidade de punir magistrados judiciais por factos da sua vida privada que se repercutam na sua imagem pública.
5.1. Sustenta o recorrente que a previsão da infracção disciplinar do último segmento do artigo 82.º do EMJ é feita de tal modo que lesa, desde logo, os princípios constitucionais de determinabilidade e precisão das leis punitivas. É esta uma questão a que o Tribunal já respondeu negativamente, em arestos que incidiram directamente sobre esta norma (Acórdão n.º 383/10, disponível, como os demais citados, em www.tribunalconstituconal.pt) ou sobre normas de teor semelhante respeitante a estatuto especial paralelo (Acórdão n.º 351/11).
O recorrente acrescenta que a norma em causa conduz à afectação negativa de uma garantia fundamental do estatuto dos juízes, que é a inamovibilidade (n.º 1 do artigo 216.º da CRP). Não podendo os juízes ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei, será censuravelmente aberta a previsão de uma infracção disciplinar que pode conduzir à aplicação de uma pena de transferência (foi essa a pena aplicada ao recorrente) por “actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções”. Entende o recorrente que com o segmento normativo em apreço, pela falta de tipificação das condutas qualificáveis como infracção disciplinar, se corre o risco de interpretações com tal liberdade que o conteúdo do princípio da inamovibilidade fica à mercê das opiniões maioritárias que venham a fazer vencimento em cada reunião do Conselho Superior da Magistratura.
5.2. Deve começar por notar-se que o confronto a que o recorrente procede da norma em causa com o princípio da inamovibilidade dos juízes excede o conteúdo da norma sujeita a fiscalização. Vistas as coisas por outro ângulo, um tal confronto reclamaria que estivesse em causa não, ou não apenas, a norma que define o que é infracção disciplinar, mas também a norma relativa à pena a aplicar. Efectivamente, será desta (no caso, do artigo 93.º do EMJ) que imediatamente poderá resultar um efeito contrário à inamovibilidade. Da norma que em geral define o que constitui infracção disciplinar não resulta necessariamente, ou não resulta por si só, um efeito que colida com o princípio da inamovibilidade dos juízes, porque bem pode suceder que seja aplicável uma das penas que não tem qualquer dos efeitos a que o n.º 1 do artigo 216.º da Constituição se refere (transferência, suspensão, aposentação ou demissão).
Deste modo, sendo do recorrente o ónus de definição do objecto do recurso e não decorrendo inevitavelmente da norma em causa o efeito que refere como contrário ao princípio da inamovibilidade, só podendo resultar da sua combinação com outra ou outras normas (relativas ao âmbito de aplicação de cada uma das penas disciplinares) é improcedente a alegação de violação do princípio da inamovibilidade, pelo que basta recordar o que o Tribunal tem afirmado a propósito da determinabilidade ou tipicidade das normas que prevêem ilícitos disciplinares.
5.3. O artigo 82.º define a infracção disciplinar, dizendo que nela se incluem “os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções”.
Tendo em conta que não nos situamos no domínio do direito penal mas no domínio de um dos ramos do direito público sancionatório (no domínio do direito disciplinar), vale aqui a jurisprudência do Tribunal que se tem pronunciado sobre a questão de saber qual a densidade normativa que é constitucionalmente exigida para a tipificação legal de infracções disciplinares (Acórdãos n.ºs 282/86, 666/94 e 481/01 e 383/10),
Fundamentalmente, tem sido dito, a este propósito, que as exigências de tipicidade se fazem sentir em menor grau no âmbito do direito disciplinar público do que no âmbito do direito penal; e que, de todo o modo, se devem ter em conta exigências acrescidas de densificação normativa sempre que se prevejam penas disciplinares expulsivas, i.e, penas cuja aplicação se traduza na afectação do direito ao exercício de uma profissão ou cargo público (garantidos pelo artigo 47.º, nºs 1 e 2 da Constituição) ou na afectação do direito à segurança no emprego (artigo 53.º). Tal significa que a protecção constitucional conferida quanto ao grau exigível de densidade normativa no direito disciplinar, ainda que não decorra de nenhum preceito que a ela especificamente se dirija, há-de resultar sempre do disposto no artigo 18.º, nº 2, da CRP. Visto que a afectação de direitos fundamentais só é constitucionalmente admissível se for justificada – sendo que, face ao artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, só o é se for necessária, adequada e proporcional – não pode deixar de ser exigível uma caracterização minimamente precisa das condutas a que a pena disciplinar é aplicável. Assim, e sintetizando, pode dizer-se que a protecção constitucional no domínio do direito disciplinar se formula do seguinte modo: quanto maior for a gravidade da pena aplicável (da perspectiva da afectação de direitos fundamentais do arguido), tanto maior deve ser a caracterização dos comportamentos puníveis (cfr. Acórdão n.º 351/11).
Dito isto, não se ignoram os riscos que comporta, para as garantias individuais dos magistrados e para os princípios constitucionais do seu estatuto, o uso de conceitos relativamente indeterminados para definição do que é infracção disciplinar.
Mas, por um lado, a utilização de tal técnica legislativa impõe-se ao legislador, em termos práticos, como inevitável face à impossibilidade de prever todos os comportamentos que, não consistindo na violação de estritos deveres de ofício, possam lesar a confiança da comunidade nas instituições judiciárias, que é indispensável, numa sociedade democrática, para que os tribunais possam desempenhar as funções que constitucionalmente lhes estão adstritas (artigos 202.º e 203.º da CRP). As previsões normativas relativas aos deveres cuja violação consubstancia ilícito disciplinar não podem deixar de ter ou comportar definições com um espectro genérico uma vez que uma enunciação taxativa ou de tipicidade fechada tornaria legítimos comportamentos não previstos mas igualmente reprovados na consciência social. Em princípio, todas as acções ou omissões do agente que consistam em violação dos deveres do cargo ou que se repercutam negativamente na imagem do serviço relevam disciplinarmente. E, como se disse no Acórdão n.º 384/03, que teve por objecto (além do mais) a segunda parte do artigo 82.º do EMJ, “o artigo 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais só considera relevantes os actos e omissões da vida pública ou que se repercutam na vida pública do magistrado (de fora ficando, portanto, tudo o que não extravase a vida privada do magistrado) e que, ao mesmo tempo, afectem a imagem digna que a magistratura deve ter. Certamente que o preceito em causa apela a conceitos indeterminados. Mas isso não significa ausência de critérios de decisão ou insindicabilidade judicial desses critérios. Significa apenas que a lei confere ao aplicador do direito uma certa margem de manobra no preenchimento desses critérios, precisamente porque reconhece que é impossível elencar exaustivamente os comportamentos públicos susceptíveis de afrontar a dignidade da magistratura. […] Nesta medida, existem claros parâmetros a respeitar aquando da aplicação de uma pena disciplinar e é notória a sua objectividade. Ainda que, como se disse, seja necessário preencher conceitos indeterminados como “vida pública” ou “dignidade indispensável ao exercício da função de magistrado”, a verdade é que são esses e não outros quaisquer conceitos indeterminados a preencher.”
Por outro lado, não pode deixar de ter-se em conta, na avaliação do sistema de responsabilização disciplinar dos juízes, que a margem de avaliação administrativa proporcionada pelo uso de conceitos indeterminados está aqui confiada a um órgão, o Conselho Superior da Magistratura que, pela sua estrutura e composição e pela independência de que gozam os seus membros, está em posição de assegurar o respeito pelos valores envolvidos, designadamente, o princípio da inamovibilidade. A confiança e consideração de que os magistrados devem gozar, para assegurar o prestígio dos tribunais indispensável à prossecução das tarefas de que estão constitucionalmente incumbidos, são conceitos a cujo preenchimento há-de proceder-se no quadro de valores constitucionais, devendo o órgão competente em cada caso concreto estabelecer se os comportamentos sob censura são reprovados pela consciência social em termos de lesar os interesses do bom desempenho da actividade jurisdicional (cfr., no mesmo sentido e perante semelhante questão de legitimidade constitucional, sentença n.º 100. de 8/6/1981, do Tribunal Constitucional Italiano, apud Pasquale Gianniti, Principi di Deontologia Giudiziaria, ed. CEDAM, 2002, p. 24).
Além disso, parafraseando o que se disse no Acórdão n.º 351/11, não pode deixar de ser considerada a natureza especial dos deveres cujo incumprimento constitui infracção disciplinar. Não estamos perante um qualquer ilícito disciplinar público, mas perante o estatuto disciplinar dos magistrados judiciais que não pode deixar de pressupor, por parte dos agentes, consciência aguda do conteúdo dos deveres profissionais cujo incumprimento determina a aplicação da sanção; e, por parte da autoridade “administrativa” que julga, consciência aguda dos limites do julgamento.
Em conclusão, a norma em causa não viola o n.º 1 do artigo 216.º, nem as exigências de determinabilidade das normas sancionatórias inerente ao princípio do Estado de direito.
5.4. Seguidamente, importa passar à outra questão que o recurso coloca, respeitando agora ao conteúdo material desta norma. Com efeito, o recorrente põe em causa a constitucionalidade do último segmento do artigo 82.º do EMJ não apenas quanto à sua estrutura como “norma aberta”, mas também quanto às ingerências do Conselho Superior da Magistratura na vida particular do magistrado judicial que a qualificação como ilícito disciplinar consubstancia. Está agora em apreciação a norma do referido segmento normativo interpretada no sentido de que actos ou omissões da vida familiar e conjugal de um juiz podem repercutir-se na sua vida pública em termos que posam ser considerados incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das sua funções. Sustenta o recorrente que, no entendimento adoptado pela decisão recorrida, não há nenhum acto da vida privada do cidadão-juiz que não tenha repercussão na sua vida pública, pelo que seria violado o artigo 26.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º da Constituição. E que a diversidade de tratamento a que necessariamente conduz esse entendimento, variando a relevância da vida privada do magistrado consoante o lugar onde são exercidas as funções, viola o princípio da igualdade, consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição
No direito da função pública em geral – e, para este efeito, a responsabilidade disciplinar dos magistrados, além da diversa fonte normativa estatutária e da solução expressa (cfr. artigo 82.º do EMJ e o paralelo artigo 163.º do Estatuto do Ministério Público), comportará seguramente acentuadas diferenças de grau, mas os conflitos ou a contraposição de interesses que convergem no problema e nas suas alternativas de solução são essencialmente da mesma natureza – é discutida a relevância disciplinar de condutas da vida particular do agente. A jurisprudência tem admitido que as condutas da vida particular de um servidor público, i.e., actos e omissões que decorrem fora do exercício das suas funções e não respeitam aos deveres comuns ou especiais do cargo (os deveres profissionais, em sentido estrito), possam constituir infracção disciplinar quando afectem a dignidade e o prestígio da função (vid., com historial e estado actual da questão, Parecer da Procuradoria Geral da República n.º 113/2005, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Julho de 2006).
Relativamente aos juízes, no acto punitivo e no acórdão recorrido foi considerado que o Estatuto consagra a relevância disciplinar de condutas da vida particular do magistrado, designadamente da sua vida familiar, com repercussão na vida pública. Porém, a norma não foi interpretada no sentido de que as opções da vida privada do juiz, designadamente no plano conjugal ou de relacionamento sexual extra-extratrimonial, sejam relevantes qua tale. Isso torna-se evidente na seguinte passagem da decisão do CSM sobre que recaiu o acórdão recorrido e que, embora não esteja em causa no recurso de constitucionalidade, ilumina o sentido normativo com que a norma foi aplicada. Disse-se aí:
“O que está em causa não é o Sr. Juiz manter ou ter mantido uma relação extra matrimonial. O que sobressai negativamente é tê-la exibido em termos que atingiram notoriedade tal que, para além de serem do conhecimento de outros juízes, magistrados do MºPº, funcionários judiciais e advogados, deram origem aos actos de reacção da sua mulher e da sua filha, nos dias 25/2/2006 e em Junho de 2006, na presença de público diverso e motivando a reacção de terceiros, no primeiro caso um agente da PSP e no segundo um porteiro de uma discoteca que, passados, meses, ainda recordava o evento.
Não está em causa o Sr. Juiz manter ou ter mantido uma relação extra-matrimonial e a sua esposa ter denunciado o facto, apelando a uma competência do Conselho Superior da Magistratura para intervir e reparar esse facto, denunciado como um mal. Isso seria absolutamente inaceitável. Cabe indagar é a forma como a comunidade tem a percepção e conhecimento daquela realidade e se isso prejudica a dignidade funcional do Sr. Juiz, isto é, se atinge o leque de mais valias axiológicas que a comunidade exige na personalidade de quem administra a Justiça, em seu nome: a rectidão, a sensatez, a independência, o aprumo, a honestidade exigíveis a um juiz.
Acresce que, não obstante a argumentação expendida na reclamação, tal reacção não pode deixar de aferir-se em função da concreta comunidade em que a actividade do Juiz se insere, e cujas características não podem a este ser indiferentes. Assim, uma acção que não faz mossa naqueles valores e, por isso, é insusceptível de preencher o tipo objectivo do art. 82° do EMJ, numa determinada comunidade, pode agredi-los no seio de uma outra, sendo aqui a mesma atitude disciplinarmente relevante. O Sr. Juiz não pode deixar de considerar esses elementos e de os ter presentes quando age publicamente, resultando inapelavelmente condicionado por eles. Tal constitui uma limitação à sua liberdade- Admite-se que sim, tal como o dever de reserva, ou a obrigação de residência expressamente previstas no EMJ. Porém, tais limitações são intrínsecas à sua função.
A questão que cabe resolver é, no entanto, tão só a de subsumir as concretas condutas apuradas ao regime prescrito pelo art. 82° do E.M.J., decidindo-se se os episódios devidamente caracterizados nos termos supra descritos constituem factos da vida privada do Sr. Juiz que, repercutindo-se na sua vida pública, são incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício da sua função.
O primeiro deles é constituído pelo envolvimento do Sr. Juiz, numa situação em que estava acompanhado pela mulher com quem mantinha um relacionamento extra-conjugal desde há anos, numa discussão iniciada pela sua própria mulher, no âmbito da qual esta o atingiu à bofetada, bem como á pessoa que o acompanhava. Um agente da PSP interveio, o Sr. Juiz afastou-se e a conversa prosseguiu entre as duas senhoras. Tudo isto na presença de várias pessoas, na rua, numa noite de Sábado de Carnaval, após o cortejo carnavalesco e em frente à Câmara Municipal.
Numa comunidade pequena, como é aquela em que o Sr. Juiz exerce funções, onde é generalizado o conhecimento da identidade dos intervenientes, em especial e quanto ao que nos interesse do Sr. Juiz, e facilmente publicitada a cena, não pode deixar de constatar-se o abalo que a mesma provoca na consideração que os membros dessa mesma comunidade têm para com aquele, em razão da manutenção paralela dos dois relacionamentos, da falta de resguardo e, pelo contrário, da exibição daquele que, pelo menos aos olhos da comunidade, aparece associado a um desvalor moral, em razão da falta de serenidade e sensatez reconhecida a quem actua de forma que dá azo a que, em público, ocorra uma cena daquelas.
Tal como refere o acórdão do Permanente, “O Ex.° Juiz (...) expõe desse modo uma vertente do seu comportamento que não se coaduna com a imagem de rectidão e aprumo que se exige de um juiz.” Pelo menos, ou mais exactamente, que aquela comunidade exige a um Juiz., pois é patente em diversos comportamentos essa reacção desfavorável: desde logo aquela que na reclamação se critica – que é a dos comentários de outros Magistrados sobre esse relacionamento mas que não serve para mais do que para revelar esse desconforto e desconfiança públicos perante a questão.
Tudo o que acaba de se referir é também aplicável à segunda das situações descritas, na qual a reacção não foi do cônjuge do Sr. Juiz, mas sim da sua filha, igualmente em público, igualmente a exigir intervenção de terceiros, igualmente a gerar a afectação daqueles caracteres que a comunidade pretende reconhecer na personalidade de um juiz.
Tais valores surgem atingidos, note-se, não pela circunstância de o Sr. Juiz manter um outro relacionamento para além do relacionamento matrimonial, mas pela forma como aquele é exibido e revelado publicamente, em termos que conduzem a uma percepção, pelos mais diversos membros da comunidade em que ambos os relacionamentos convivem, das circunstâncias dessa convivência, que subsequentemente os induzem a essa conclusão, por as identificarem com a negação desses mesmos valores.
Em face do exposto, não se nos afiguram dúvidas de que tais circunstâncias preenchem o tipo objectivo do art. 82º citado, do EMJ”.
Foi este sentido normativo que o acórdão recorrido acolheu, julgando improcedentes os vícios invocados, incluindo as questões de constitucionalidade, e negando provimento ao recurso. De modo que, sem caber ao Tribunal apreciar o caso, é relativamente ao sentido do segmento normativo em causa assim concretizado que há-de fazer-se o confronto com os preceitos constitucionais invocados: o n.º 1 do artigo 26.º, o artigo 18.º e o n.º 1 do artigo 13.º da Constituição
5.5. O n.º 1 do artigo 26.º da Constituição consagra vários “outros direitos pessoais” que têm em comum integrarem um “círculo nuclear da pessoa” que corresponde genericamente a direitos de personalidade (Paulo Mota Pinto, A Protecção da Vida Privada e a Constituição, 155). Conjugando a argumentação do recorrente perante o Tribunal Constitucional com os termos, a este respeito mais desenvolvidos em que apresentou a questão perante o Supremo Tribunal de Justiça, infere-se que o direito `fundamental que entende violado pela solução normativa em apreciação é o direito à reserva da intimidade da vida privada.
Não parece que seja este o direito fundamental enunciado no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição que a norma em apreciação pode agredir. O âmbito de protecção do direito à intimidade da vida privada é relativo ao controlo da informação sobre a vida privada (informational right of privacy) e não ao direito à liberdade da vida privada (substantive right of privacy) (cfr. neste sentido Paulo Mota Pinto, loc. cit., p. 159). Com efeito, porque só estão em causa condutas da vida particular do juiz que assumam publicidade e porque a assumam, a norma em causa não contende com esse espaço de autodeterminação informacional. Não é o poder público que se imiscui no círculo de reserva; é a acção ou omissão do magistrado que projecta a sua vida privada e familiar para o espaço público.
A opção não é, porém, de decisiva relevância para resposta à questão colocada no presente recurso, não permitindo dá-la como arrumada, porquanto no n.º 1 do artigo 26.º não se consagra apenas essa reserva. A própria liberdade da vida privada, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais a esfera da sua vida pessoal, a liberdade geral de acção da pessoa, cabe igualmente no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição, como integrante do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.
Todavia, como qualquer direito fundamental este direito não pode ser entendido com um alcance absoluto. Sempre que um direito conflitue com outro direito ou bens constitucionalmente protegidos, esse conflito deve ser resolvido através da recíproca e proporcional limitação de ambos, em ordem a optimizar a solução (princípio da concordância prática) de modo a garantir uma relação de convivência equilibrada e harmónica em toda a medida possível. E, mais do que a generalidade dos direitos, nesta vertente de liberdade geral de acção, a liberdade da vida privada sofre limitações de diversa índole que constituem limites intrínsecos determináveis a posteriori do seu larguíssimo espectro prima facie.
Em primeiro lugar, há que considerar as limitações à acção posterior do titular decorrentes dos vínculos em que ele voluntariamente ingressa e que, afinal, correspondem ou são consequência (de algum modo, são custos) do seu próprio exercício. Os deveres do casamento, os deveres resultantes do ingresso numa situação profissional estatutária, são exemplos de exercício desta autonomia individual e de autodeterminação de cada um para traçar o seu próprio plano de vida que implicam limitações desta ordem (no exercício posterior) à liberdade da vida privada.
Em segundo lugar, a liberdade de acção na esfera de vida pessoal tem de ser harmonizada com a prossecução de outros valores constitucionais, designadamente daqueles em que o titular esteja individualmente comprometido. Um desses valores é o da confiança e prestígio dos tribunais como órgãos de soberania, sendo em função disso legítimo impor aos juízes, titulares individuais do órgão de soberania tribunais e gozando de um estatuto constitucional próprio, deveres de decoro e reserva que impliquem limitações na sua esfera de acção pessoal que, sem atingir o núcleo essencial desse direito de liberdade pessoal, sejam, segundo as circunstâncias de cada momento histórico, razoáveis e adequadas para evitar risco de erosão da imagem pública dos tribunais e da confiança que a comunidade neles tem de poder depositar. Sobre os agentes que exercem poderes públicos relativamente aos quais não podem funcionar ou só de modo muito remoto e indirecto podem funcionar, os mecanismos da responsabilidade política e do julgamento eleitoral, é legítimo que, numa sociedade democrática, recaia um especial dever de contenção nos comportamentos da vida pública ou da vida particular que transpareçam para o espaço público e de preservação da imagem das instituições que servem.
Ora, não pode dizer-se que se traduza numa valoração contrária à ordem jurídica constitucional a atribuição de relevância, neste contexto, às repercussões públicas da vida familiar dos magistrados judiciais. Como diz Paulo Mota Pinto, “O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade”, in Portugal-Brasil Ano 2000, Stvdia Ivridica, n.º 40, p. 222, “ a “ordem constitucional” incorporará uma remissão geral para o conjunto da ordem jurídica que não se apresente desconforme com a Constituição – isto é, para “o conjunto das normas que são formal e materialmente constitucionais”, representando a formulação de uma reserva de lei ou do Direito”. Com efeito, na constância do casamento, apesar da evolução dos costumes e dos seus reflexos jurídicos na instituição matrimonial, designadamente em matéria de regime do divórcio, os cônjuges estão reciprocamente vinculados, além do mais, pelos deveres de respeito e de fidelidade (artigo 1672.º do Código Civil).
Deste modo, prevendo a norma do último segmento do artigo 82.º do EMJ a qualificação como ilícito disciplinar de condutas da vida privada dos magistrados judiciais que se repercutam na vida pública em termos de afectar a dignidade exigida ao exercício das respectivas funções e não condutas da esfera íntima ou que se circunscrevam ao espaço privado ou familiar (i.e., que não se exteriorizem, que não passam para o espaço público ou que só são publicamente conhecidas por indiscrição proibida de terceiro), não pode considerar-se, em si mesmo, tal norma como violadora do n.º 1 do artigo 26.º da Constituição.
Poderia contra-argumentar-se que, num sistema em que as decisões judiciais são necessariamente fundadas na lei e no direito e expressamente motivadas, a conduta do juiz na sua vida particular deve ser funcionalmente indiferente porque, desde que o juiz cumpra os específicos deveres do cargo, a prestação à comunidade do serviço que lhe é cometido fica realizada. A capacidade do juiz para se desincumbir da tarefa de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados seria indiferente às virtudes do juiz na sua vida privada. Não é, porém, assim que as coisas devem ser vistas. As razões que se invocam na generalidade dos sistemas do nosso espaço civilizacional – e com não menor respeito pela pricacy de quem desempenha funções públicas – para proibir aos juízes condutas que seriam irrelevantes na relação de trabalho ou funcional da generalidade dos cidadãos devem-se a que tais condutas diminuem, de um ponto de vista social, o respeito para com os órgãos de justiça que, em qualquer sociedade organizada e seja qual for o regime político ou a organização judicial adoptada, a população deve professar no conjunto dos tribunais. Com efeito, no que respeita aos tribunais, a sociedade tende a identificar a parte com o todo, generalizando para toda a magistratura a partir da percepção de casos particulares, pelo que o prestígio dos tribunais, necessário a que as suas decisões sejam correntemente acatadas, e a estabilidade do sistema jurídico-político justifica a imposição aos juízes de deveres funcionais que vão para lá dos estritos deveres profissionais e podem ser de molde a comprimir a sua esfera de liberdade pessoal. No sistema de justiça a aparência joga um papel fundamental, tendo a descrença da população no aparelho judicial um efeito desestabilizador de incalculáveis consequências negativas para o regime político e jurídico vigente. (cfr. Jorge F. Malem Sena, “Pueden las malas personas ser buenos jueces-”, DOXA, Cuadernos de Filosofia del Derecho, n.º 24, disponível em www.lluisvives.com/servlet/SirveObras/doxa/.../doxa24/doxa24_15.pdf ).
Questão diversa, que adiante se versará, é a de saber se o concreto sentido aplicativo conferido à norma pelo acórdão recorrido observa as máximas da proporcionalidade.
6. O recorrente considera, ainda, que a norma em causa viola o princípio da igualdade, consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, por ficar dependente, na sua aplicação prática, das valorações dominantes em cada comunidade e das condições de percepção da conduta do magistrado decorrentes da dimensão e das características (populacional, cultural e social) da circunscrição em que as funções são exercidas.
É manifesta a falta de razão do recorrente quanto a este fundamento.
Como se disse no acórdão recorrido, a colocação de um juiz numa comarca determinada, onde é reconhecido pela maioria da população, pode trazer-lhe exigências de comportamento que não existam noutra circunscrição judicial, designadamente por ser um grande meio urbano. Tal como, p. ex., pode encontrar, em comarcas distintas, diferentes pendências de processos. E daí não resulta ofensa ao princípio constitucional da igualdade, porque a diferença de intensidade da limitação da acção e das obrigações de decoro que surgem entre magistrados e a consequente relevância disciplinar das correspondentes infracções são objectivamente fundadas nas características da circunscrição onde cada um administra justiça “em nome do povo”. Obviamente, que não é uma particular idiossincrasia que pode condicionar a conduta exigível ao juiz, mas o que possa ser compatível com a diversidade de valores sociais e de práticas de vida numa sociedade aberta. Como é jurisprudência constante, o princípio da igualdade não proíbe distinções de tratamento, apenas proíbe as diferenciações arbitrárias, o que desta não pode predicar-se. Aliás, em contrapartida – objectivamente, porque mesmo isso não será necessariamente um bem para personalidades mais reservadas – é também maior o reconhecimento e prestígio social de que goza o juiz colocado em meios onde facilmente é reconhecido pelo público.
Para os aspectos positivos e negativos, a cognoscibilidade dos seus actos pela comunidade é um dos factores ou condicionantes que é exigível que o juiz pondere quando actua no espaço público.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
7. Resta considerar a alegada violação do princípio da proporcionalidade.
Além de preservar o núcleo essencial à auto-conformação da identidade do indivíduo, qualquer limitação por via legislativa à liberdade geral de acção nesse domínio deve respeitar o princípio da proporcionalidade. Tem que ser necessária, adequada e não deve alhear-se da justa medida na relação com o fim prosseguido, tendo a intervenção legislativa de justificar-se na relação entre o sacrifício da liberdade de acção do indivíduo e os valores ou interesses em função dos quais tal limitação é imposta, i.e., há-de satisfazer as três máximas em que se analisa o princípio da proporcionalidade.
Ora, o que, em último termo, justifica o sancionamento disciplinar de condutas da vida privada com repercussão na vida pública é o seu reflexo na percepção pela comunidade da disposição ou capacidade do juiz para o exercício do cargo com independência e imparcialidade. Um juiz que é visto pelo público como comportando-se nas suas relações da vida privada em desconformidade com as imposições da ordem jurídica traz para o exercício de funções o risco de os seus julgamentos, quando tenha de apreciar desvios semelhantes nos feitos que lhe são submetidos, serem olhados com desconfiança. Mesmo que essa apreciação possa ser preconceituosa ou injusta, essa realidade social é suficiente para que se considere que, em si mesma e independentemente de ponderações concretas, a norma que qualifica como disciplinarmente relevante a exteriorização de comportamentos da vida familiar do magistrado desconformes à ordem jurídica, tendo em consideração a necessidade de confiança do público nos seus julgamentos quando houver de julgar casos semelhantes, não constitui uma ingerência excessiva na sua esfera de liberdade pessoal.
8. Há, todavia, uma última dúvida que emerge da dimensão aplicativa concreta, da específica área de violação dos deveres da vida familiar cuja exteriorização pública foi considerada conduta imprópria disciplinarmente punível.
Em primeiro lugar, pode argumentar-se que a alteração das práticas e das representações dos portugueses relativamente à forma de viver o casamento e a família, que culminou na irrelevância do ilícito culposo conjugal como causa do divórcio na reforma resultante da Lei n.º 68/2008, de 31 de Outubro, torna desnecessária essa ingerência do Estado na liberdade da vida do juiz. O risco de os cidadãos descrerem numa justiça aplicada por quem assume o mesmo tipo de condutas cujo desvalor pode ser chamado a apreciar atenua-se drasticamente perante a aceitação ou a resignação social e alteração prática do significado anti-jurídico de tal tipo de condutas.
Porém, mesmo admitindo que seja possível tal afinamento do objecto do recurso, o certo é que, os deveres de respeito e fidelidade conjugais continuam vigentes na ordem jurídica, não sendo a determinação da culpa no divórcio o seu domínio exclusivo de relevância na sociedade conjugal, pelo que ainda poderá afirmar-se que a repercussão pública de uma situação contrária ao ordenamento será susceptível de abalar a confiança do público na aptidão do sistema judicial para fazer respeitar esse ordenamento quando houver de valorar condutas semelhantes.
Em segundo lugar, poderia considerar-se desproporcionado que o juiz responda disciplinarmente pela repercussão na vida pública de actos da sua privada quando essa publicitação seja dominantemente obra da acção de terceiros (no caso, a mulher e a filha), que tenham reagido por forma a criar em público uma situação embaraçosa ou exacerbar-lhe os efeitos. Parece, porém, que esta perspectiva respeita já à aplicação da norma aos factos provados, ao juízo de imputação, e não à conformidade da norma à Constituição. Pelo menos, a questão assim apresentada não cabe na definição do objecto do 0recurso que é dado pelo sentido normativo indicado pelo recorrente. Neste – que se recorda é ónus do recorrente enunciar e que vem a constituir uma das balizas da pronúncia do Tribunal – ainda pode caber a particularização do sentido normativo relativo ao específico domínio da vida privada que assume relevância pública (o das relações familiares e extra-conjugais), mas já não ao modo como surgiu essa transposição para a esfera da vida pública.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas com 20 (vinte) UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 28 de Setembro de 2011. – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.