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Processo n.º 313/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório1. A., condenado, por acórdão de 2 de Setembro de 2008 da 6.ª Vara Criminal de Lisboa, como co-autor material, e em concurso real de sete crimes de peculato, numa pena global e única de 12 anos de prisão, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Aí, e embora se tenha decidido conceder parcial provimento ao recurso, na parte dos factos provados, a pena de prisão foi mantida. Inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O então Relator rejeitou o recurso, através de decisão sumária, “por inadmissibilidade legal quanto aos crimes por que foi condenado e por manifesta falta de fundamento quanto ao estabelecimento da pena única.” No que se refere à pena única, lê-se o seguinte na decisão: [o STJ tem] “adoptado o critério de que é recorrível essa operação [formulação da pena única] (mas só ela) se a pena única aplicada for superior a 8 anos de prisão. Seria o caso dos autos, se não se verificasse que se trata de ‘questão nova’, isto é, de questão que não foi tratada pela decisão recorrida, pois no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa o ora recorrente não a suscitou. (…) [C]omo a Relação não teve qualquer pronúncia sobre a medida da pena única do ora recorrente, não pode o STJ verificar se a mesma se mostra ajustada, pois teria de verificar os fundamentos da 1.ª instância, o que está fora de questão, já que não é o acórdão da Vara Criminal que agora está sujeito a escrutínio.”
2. Novamente inconformado, A. reclamou para a conferência, tendo visto a sua pretensão negada pelos fundamentos anteriormente expostos na decisão sumária.
3. Interpôs depois recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações subsequentes (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), tendo como objecto o artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, “quando interpretado com o sentido dado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, ao considerar que, para efeitos de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não é a pena única, concreta, aplicada que releva, mas cada uma das penas parcelares consideradas no cúmulo, de per si.” Sustentava o Recorrente que uma tal interpretação constituiria um “agravamento sensível e ainda evitável” da situação processual do arguido e ofenderia o disposto nos artigos 20.º, 29.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 1 e 9 da Constituição.
Foi proferida decisão sumária, em 24 de Maio de 2011, no sentido de o Tribunal Constitucional não tomar conhecimento do recurso pelo facto de, tendo o recurso sido interposto da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, a interpretação que vinha contestada do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP corresponder à que havia sido adoptada pela Relação e não à daquele Tribunal. Transcrevendo-se o trecho relevante da decisão sumária ora reclamada:
“(…) a interpretação da norma que vem contestada, não corresponde à que foi feita pela decisão recorrida – o recurso é interposto da decisão sobre a reclamação proferida pela conferência do STJ e o que aí se decidiu quanto à questão de constitucionalidade foi que, face ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, no caso em concreto só caberia recurso quanto à medida da pena única e não quanto a cada um dos crimes que integraram o concurso (cfr. fls. 6034).
O que o Recorrente contesta, no entanto, é a interpretação feita pela Relação de Lisboa, ‘ao considerar que, para efeitos de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não é a pena única, concreta, aplicada que releva, mas cada uma das penas parcelares consideradas no cúmulo, de per si.’ No entanto, interpõe recurso da decisão do Supremo. E o que este Tribunal decidiu foi que, em concreto, caberia recurso quanto à pena concreta efectivamente aplicada ao arguido. Tal recurso, no entanto, foi julgado como padecendo de manifesta falta de fundamento uma vez que, na óptica daquele Tribunal, abrangeria “questão nova”, não suscitada previamente perante a Relação.”
4. Vem agora A. deduzir reclamação desta decisão sumária, em requerimento que apresenta o seguinte teor:
“1. O rte. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa;
2. E interpôs esse recurso porque a pena concreta que lhe foi aplicada era superior a 8 anos (a pena única de 12 anos, somatório de várias penas parcelares);
3. E, sendo assim, apresentava-se com menor relevância a questão da sucessão da lei no tempo, em matéria de recurso (ainda que seja incoerente que o ordenamento jurídico aceite por exemplo que em matéria de custas processuais se aplique a lei vigente à data do início do processo mas que em matéria de recursos penais se aplique a lei nova, ainda que comporte um regime menos favorável para o arguido, subalternizando-se assim as garantias de defesa face às garantias patrimoniais), já que, em qualquer dos regimes, a pena concreta era superior a 8 anos;
4. E diga-se que a pena concreta é a pena efectiva aplicada, a que resulta das operações de cúmulo feitas a partir das penas parcelares;
5. O Tribunal da Relação de Lisboa admitiu o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e daí que não tivesse sido suscitada até esse momento a questão da (in)constitucionalidade invocada a propósito da Decisão do Supremo Tribunal de Justiça – antes disso a questão não se colocava;
6. E essa decisão sumária proferida, sufraga a tese de que, para efeitos de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o que releva nos limites impostos pelo art. 400°, n.º 1, f) do CPP, não é a pena única aplicada, mas cada uma das penas parcelares consideradas no cúmulo.
7. Ora, no plano das garantias de defesa do arguido, uma tal interpretação constitui um ‘agravamento sensível e ainda evitável’ da sua situação processual e ofende o disposto nos arts. 20°, 29.º-4 e 32°-1 e 9 da C. Rep. P.
8. Na verdade, a al. f) do n. 1 do art. 400.º do CPP, evoluiu de uma consideração abstracta de uma pena aplicável não superior a 8 anos de prisão, mesmo em casos de concurso de infracções, para uma consideração concreta da pena efectivamente aplicada, por isso abandonando a referência ao concurso de infracções.
9. Entende-se pois que não é a consideração de cada uma das penas parcelares que deve presidir na avaliação da recorribilidade para o STJ, mas a pena concreta aplicada — e que, por ser superior a 8 anos e nessa medida concreta traduzindo o agravamento do período de privação da liberdade do arguido, justifica um renovado e mais avisado escrutínio judicial. Porque aquilo que o arguido vai cumprir, não são penas parcelares, mas uma pena concreta, e é essa que se deve atender no plano dos direitos e garantias de defesa.
10. De resto, foi esse o espírito do legislador e que se acha plasmado na motivação da proposta de lei 109/X, ao aludir à pena concreta como critério de avaliação da recorribilidade das decisões proferidas pelas relações.
11. O Acórdão uniformizador a que se alude nos autos não se detém sobre a divergência de critérios entre a consideração das penas parcelares e a da pena efectiva, que é o que subjaz na decisão sumária proferida.
12. Mas sempre se dirá que a Lei n.º 48/2007, de 29/8, que alterou diversas disposições do CPP, nomeadamente a alínea f), do n. 1 do art. 400.º, manteve incólume a redacção do art. 5.º do CPP (o mesmo sucedendo com a Lei n. 59/98, de 25/8), assim inculcando que em matéria de sucessão da lei processual no tempo continuava a prevalecer o princípio da irretroactividade da lei menos favorável.
13.A matéria da recorribilidade aqui em avaliação encerra disposições materiais de natureza processual, e desse modo protegidas pelo disposto nos arts. 1803, 200, 290 4, 32°-1 e 9 da CRepP.
14. Dispõe o art. 18°, n. 3 do texto constitucional que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, como é o caso, não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
15. As citadas disposições constitucionais deveriam conduzir a uma interpretação não retroactiva do disposto no art. 400.º, n.º 1, f) do CPP, quando da sua aplicabilidade resulte, como no caso vertente, um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, e nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa (ut art. 5.º, n. 2 do CPP).
16.A questão suscitada vai no sentido da declaração da inconstitucionalidade da alínea f), do n. 1 do art. 400.º do CPP, pelo menos quando interpretada com o sentido resultante da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, no sentido de que o que está em causa, com a nova redacção da aludida alínea, não é a pena única, concreta, efectiva, aplicada ao arguido, mas as penas parcelares de per si para efeitos de avaliação da recorribilidade das decisões das relações, por violação do disposto nos arts. 18°-3, 20°, 29°-4, 32°-1 e 9 da CRepP.
17. Essa inconstitucionalidade foi suscitada perante a decisão sumária tomada pelo Senhor Relator do Supremo Tribunal de Justiça, e que foi indeferida em Conferência do mesmo tribunal;
18. E do que se trata, salvo o devido respeito, não é de apreciar a operação que conduziu à fixação da pena única, mas a de avaliar a pena concreta aplicada e a sua repercussão no direito à liberdade do rcte e nas suas garantias de defesa.”
5. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento. O conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, como sucede nos autos, depende da prévia verificação de vários requisitos, nomeadamente a suscitação, pelo recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo, constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem como o prévio esgotamento dos recursos ordinários. Para além disso, é imprescindível a utilidade de qualquer juízo que o Tribunal Constitucional venha a proferir.
Como se salientou na decisão sumária reclamada, o recurso de constitucionalidade foi interposto da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça. No entanto, o Recorrente pretendeu integrar no objecto deste recurso a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, na interpretação que lhe foi conferida pelo Tribunal da Relação. Mas, se pretendia interpor recurso da decisão da Relação, deveria tê-lo dirigido a esse mesmo Tribunal pois só ele poderia admitir ou recusar a admissão de recursos sobre as suas decisões. Processualmente, ao decidir interpor recurso da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, em requerimento dirigido a esse tribunal, limitou o objecto do recurso de constitucionalidade às questões apreciadas e decididas em tal decisão, afastando a hipótese de ver apreciada a questão que, verdadeiramente, pretendia integrar em recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Reitera-se, pois, o já decidido na decisão sumária.
III – Decisão
7. Face ao exposto acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Setembro de 2011. – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.