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Processo n.º 366/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, A., Lda., veio apresentar vários recursos de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
Proferida Decisão Sumária de não conhecimento, relativamente a algumas das questões suscitadas, posteriormente confirmada por Acórdão, em conferência, a 14 de Julho de 2011, foi determinado o prosseguimento dos autos e consequente produção de alegações, no tocante a duas questões, enunciadas pela recorrente, nos seguintes termos:
1. “A inconstitucionalidade normativa que resulta da interpretação conjugada dos artigos l7.º, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido de obrigar o Arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos à Autoridade da Concorrência.”
Tal inconstitucionalidade resulta, na perspectiva da recorrente, da violação dos artigos 1.º, 2.°, 20.°, n.° 4, e 32.°, n.ºs 1, 2, 8 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa.
2. “(…) a inconstitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 51.°, n.° 1 da Lei n.° 18/2003, bem como a inconstitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 311.°, n.° 1 e 312.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 41.° do Regime Geral das Contra-Ordenações e artigo 51.°, n.° 1 da Lei n.° 18/2003, segundo a qual o arguido em processo de contra-ordenação não tem de ser notificado das contra-alegações da Autoridade da Concorrência e não pode responder a essas mesmas contra-alegações.
(…) Tal inconstitucionalidade resulta da violação dos princípios do contraditório e da igualdade de armas e dos direitos de audiência e defesa, consagrados nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.°, n.° 1, 2, 5 e 10,” ambos da Constituição da República Portuguesa.
2. A presente acção teve início em processo contra-ordenacional, que redundou na condenação da recorrente, por decisão do Conselho da Autoridade da Concorrência.
Inconformada, a recorrente apresentou recurso de impugnação judicial.
Por despacho de 8 de Abril de 2008, o Tribunal do Comércio de Lisboa decidiu várias questões prévias, relegando para final o conhecimento de “todas as questões referentes ao mérito do processo”, nomeadamente as questões “relativas à aplicação das coimas.” Simultaneamente, designou data para realização do julgamento.
A recorrente reagiu, de várias formas, nomeadamente arguindo a nulidade do despacho de 8 de Abril de 2008, por ter sido proferido sem que a recorrente tenha sido notificada das alegações da Autoridade da Concorrência para que, querendo, exercesse o seu direito ao contraditório.
O Tribunal do Comércio de Lisboa, por despacho de 1 de Julho de 2008, julgou improcedente a arguição de nulidade apresentada pela recorrente.
O processo prosseguiu para julgamento, tendo sido proferido acórdão, pela Relação de Lisboa, em 15 de Dezembro de 2010 e, posteriormente, novo acórdão, em 30 de Março de 2011, em virtude da arguição de vícios relativamente àquele primeiro aresto.
3. As decisões recorridas correspondem ao despacho de 8 de Abril de 2008, no tocante à primeira questão, e ao despacho de 1 de Julho do mesmo ano, relativamente à segunda.
O despacho de 8 de Abril de 2008 pronuncia-se, quanto à questão de constitucionalidade colocada pela recorrente, nos seguintes termos:
“(…) Violação do direito ao silêncio das arguidas: o direito ao silencio consignado no Processo Penal não tem a amplitude pretendida pela arguida, mas tão só a constante do art° 61°, n° 1, al. c), ou seja, o arguido goza do direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe são imputados, pelo que a notificação para juntar documentos não colide com tal direito ao silêncio. Acresce que a prova obtida mediante notificação da arguida para juntar documento, sob pena de contra-ordenação e subsequente coima, é legalmente admissível, por tal constar expressamente dos artigos 17°, n° 1, al. a), 18° e 43°, n° 3, da Lei 18/2003, daí que também não se possa considerar como nula; resta referir, finalmente, que inexiste qualquer inconstitucionalidade - artigos 1º, 2°, 20º, n° 4 e 32°, da CRP - nas normas aplicadas pela AdC, porque (i) a menor ressonância ética do ilícito de mera ordenação social subtrai-o às mais “rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal” — Fernanda Palma e Paulo Otero, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Vol. XXXVII 2, pg. 564 — sem prejuízo da necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal (acórdão do TC n° 469/97, publicado no DR II Série, de 16.10.1997), (ii) porque as normas em crise não afastam a efectividade do direito de defesa, bem como os princípios do contraditório e da igualdade processual, tendo em atenção que esta última não é absolutamente incompatível com a atribuição ao Estado ou aos poderes públicos de um tratamento processual diferenciado relativamente às partes processuais em geral, desde que essa diferenciação não seja arbitrária, irrazoável ou infundada e não envolva um compressão excessiva do princípio da igualdade de armas (acórdãos do TC n°s. 516/94, 616/98 e 153/02), e (iii) porque as normas referidas da lei da concorrência, por si só, não são violadoras do princípio da presunção da inocência, dos meios de obtenção de prova ou dos direitos específicos, nos termos consagrados no n° 10, do art° 32°, da CRP; Improcedem estas questões.”
É do seguinte teor o despacho de 1 de Julho de 2008:
“Requerimento de fls. 15412 a 15424:
Dispõe o artigo 311.º, nº 1, do Código do Processo Penal — aplicável ex vi artigo 41°, do RGCO — que recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
E foi isso que este Tribunal fez. Nada Mais.
O despacho proferido a fls. 15402 a 15406 é o previsto no artigo 311º, do Código do Processo Penal. E, assim sendo, o Tribunal conheceu das questões prévias suscitadas pelas arguidas que obstavam à apreciação do mérito da causa.
Não se vislumbra qualquer violação do contraditório, nem nulidade.
Tais questões foram invocadas pelas arguidas na motivação do recurso, o contraditório foi oferecido pela Autoridade da Concorrência em sede de alegações, e o Tribunal decidiu.
Não houve nem violação do contraditório, nem excesso de pronúncia.
O Tribunal limitou-se a proferir o primeiro despacho legalmente previsto neste tipo de recurso jurisdicional, não tendo conhecido qualquer questão sem que as partes — arguidas e AdC — se pronunciassem sobre as mesmas.
Improcede assim na íntegra, e sem mais considerações, o requerimento de fls. 15412 a 15424.”
4. A recorrente apresentou alegações, onde conclui, nos termos seguintes:
“I - A (in)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 17.°, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003
1) A interpretação conjugada dos artigos 17.°, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido de obrigar o Arguido em processo contra-ordenacional a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos à autoridade da concorrência no âmbito de um processo de contra-ordenação, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito Democrático, da proporcionalidade, do processo equitativo e das garantias fundamentais do Arguido em processo sancionatório, previstos nos artigo 1.º, 2.°, 18.°, n.° 2, 20.°, n.° 4, e 32.°, n.os 2, 8, e 10 da Lei Fundamental.
2) A mesma norma, interpretada nos termos expostos, viola o direito (ou a garantia) fundamental à não auto-incriminação ou nemo tenetur se ipsum accusare, enquanto direito que se pode definir como o direito do arguido a não ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação.
3) O direito à não auto-incriminação encontra amplo fundamento constitucional, seja por via do desenvolvimento dos conceitos do Estado de Direito democrático ou da dignidade da pessoa humana, seja por incluir o núcleo das garantias essenciais do processo equitativo ou, em especial, o núcleo das garantias de defesa do arguido em processo penal.
4) A norma do artigo 32.°, n.° 10, da Constituição, ao atribuir direitos de defesa ao arguido em processo contra-ordenacional, confere por si só dignidade constitucional, no âmbito do processo de contra-ordenação, a um conjunto de princípios fundamentais, como sejam as garantias basilares do processo justo e equitativo (cfr. artigo 20.°, n.° 4, da Constituição, artigo 6.° da CEDH e 14.° do PIDCP), a garantia da presunção da inocência, o direito ao silêncio e à não auto-incriminação.
5) Mesmo que se entenda que a norma ínsita no artigo 32.°, n.° 10, da CRP não inclui ou pressupõe o assegurar das garantias fundamentais do processo penal, sempre as mesmas devem ser consideradas no âmbito do direito e processo contra-ordenacional, tendo em conta, designadamente, a equiparação entre os dois ordenamentos, ao abrigo de outras normas constitucionais, designadamente as que constam dos artigos 1., 2.°, 20.°, n.os 1 e 4, 32.°, n.os 1 e 5, da Constituição.
6) A aproximação entre o Direito Penal e Processual Penal e o Direito contra-ordenacional é inquestionável, constatando-se uma tendencial equiparação entre ambos no que concerne aos respectivos regimes adjectivos, ao seu carácter sancionatório e à sua dimensão retributiva, pelo que deve fazer-se uma interpretação ampla dos princípios e direitos fundamentais relativos ao direito e processo penal - da designada constituição penal - estendendo-os ao processo contra-ordenacional em todas as suas fases.
7) A Constituição (material) não tolera, não pode tolerar, a concessão ao legislador ordinário de um poder de conformação tão amplo que implique, de facto, que paulatinamente se desenvolva um processo de cariz sancionatório tão ou mais agressivo (rectius, tão ou mais restritivo de direitos fundamentais) que o processo penal, sem que o mesmo seja acompanhado das garantias essenciais daquele processo.
8) Nesta medida, o direito à não auto-incriminação, enquanto direito fundamental integrante das garantias essenciais do processo penal, tem aplicação no âmbito do direito e processo contra-ordenacional.
9) O direito ao silêncio é o âmago da prerrogativa do direito à não auto- incriminação.
10) Contudo, o direito à não auto-incriminação — right against self incrimination — não se esgota, nem sequer se confunde, com aquele outro direito (como resulta da doutrina e da jurisprudência do Tribunal Constitucional e do TEDH, analisada nas presentes alegações).
11) Ou seja, sem prejuízo de não constituir um princípio absoluto e que, por isso, comporta, a par dos demais, restrições justificadas, o direito à não auto- incriminação não se limita às declarações do arguido — interrogatório judicial ou não judicial — antes respeitando a quaisquer contribuições do arguido de conteúdo directamente incriminatório, designadamente prestação de informações e à entrega de (certos) documentos.
12) À semelhança do que acontece com a Constituição da República Portuguesa, a CEDH e o TEDH reconhecem o direito à não auto-incriminação, sendo certo que bastaria o reconhecimento deste direito fundamental por parte da CEDH para o mesmo ser incorporado na Constituição portuguesa, à luz do disposto no respectivo artigo 16.°, n.° 1.
13) À luz da jurisprudência do TEDH (por exemplo, caso “Engel e outros c. Países Baixos”, de 8 de Junho de 1979, Série A n.° 73, pp. 34 e 35) a norma aqui sindicada tem uma natureza materialmente penal, para efeitos do artigo 6.° da Convenção, o qual assegura, sem margem para ambiguidades, o direito ao silêncio e à não auto-incriminação, independentemente das qualificações do direito interno
14) O próprio Tribunal de Justiça da União Europeia já teve oportunidade de reconhecer a aplicabilidade do artigo 6.° da CEDH em processos jusconcorrenciais, tal como resulta do Acórdão “Montecatini SpA c. Comissão Europeia”, processo C-235/92P.
15) A norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 17.°, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido de obrigar o Arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos, constitui uma restrição do direito à não auto-incriminação.
16) A restrição em causa decorre, indiscutivelmente, de, sob ameaça de sanção relevante, se obrigar o arguido — coercivamente — a carrear para os autos elementos que, em si mesmo considerados, ou pelo menos em conjugação com outros elementos já constantes dos autos, ou que possam a vir a constar dos mesmos, podem permitir suportar a sua própria acusação e condenação.
17) Esta restrição deste direito fundamental não respeita os requisitos previstos no artigo 18.°, n.° 2, da Constituição, pelo que, mesmo não sendo um direito absoluto, o direito à não auto-incriminação sai violado pela interpretação normativa aqui sindicada também por este motivo.
18) Em primeiro lugar, esta restrição não se mostra necessária para salvaguardar direitos ou interesses de valor superior ou, sequer, idêntico ao direito fundamental restringido.
19) Com efeito, trata-se de uma ponderação realizada entre uma tarefa fundamental do Estado consagrada constitucionalmente no artigo 81.°, n.° 1, alínea f), da CRP e um direito ou garantia de natureza fundamental consagrado nos artigos 20.°, n.° 4, e 32.°, n.°s 2, 8 e 10 da CRP (o nemo tenetur).
20) O direito ou garantia fundamental em causa sempre terá valor superior à tarefa fundamental do Estado (ou, pelo menos, nunca terá valor inferior), pelo que, em nenhum caso, será admissível afectar o núcleo essencial daquele.
21) O segmento normativo em crise, ou seja, a norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 17.°, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido anteriormente referido, elimina o núcleo essencial daquele direito fundamental.
22) Com efeito, tal norma permite que, na fase de recolha de prova, a autoridade administrativa ordene ao arguido a entrega de qualquer documento e a prestação de qualquer informação, independentemente do seu conteúdo ou natureza, não resultando daquela norma nenhum critério que delimite o dever de colaboração do arguido.
23) Do mesmo modo, a norma em crise permite igualmente que qualquer ordem de entrega de documentos ou prestação de informações — cujos critérios e limites inexistem — possa ser suportada coercivamente por uma ameaça de sanção pecuniária que pode ir até 1% do volume anual de negócios da empresa no ano transacto.
24) Em segundo lugar, a interpretação normativa aqui sindicada significa uma ausência de pré-fixação normativa de critérios e limites da actuação restritiva do direito fundamental à não auto-incriminação, podendo a autoridade administrativa, ao abrigo daquela interpretação, solicitar qualquer tipo de elemento, informação ou documento à Arguida (como, aliás, veio a suceder), que podem equivaler materialmente a verdadeiras declarações confessórias.
25) De onde resulta, também por aqui, uma restrição constitucionalmente ilegítima daquele direito fundamental.
26) Em terceiro lugar, a norma cuja (in)constitucionalidade se pretende agora sindicar, restringe um direito fundamental (o direito à não auto-incriminação), de forma desproporcionada. E isto por dois motivos.
27) Por um lado, no que se refere à necessidade (exigibilidade) da restrição em causa, a mesma não se verifica pois a Autoridade da Concorrência tem à sua disposição outros mecanismos para garantir a defesa da concorrência, sem necessitar de instrumentalizar o arguido, restringindo o seu direito a não se auto-incriminar.
28) Em particular, a Autoridade da Concorrência dispõe de poderosos instrumentos para garantir a defesa da concorrência, através da colaboração voluntária das empresas na investigação de infracções às normas da concorrência, que é constituído pelo regime da clemência, instituído pela Lei n.° 39/2006, bem como através do exercício de poderes de, designadamente, efectuar buscas, exames, recolha e apreensão de cópias ou extractos da escrita e demais documentação, quer se encontre ou não em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, sempre que tais diligências se mostrem necessárias à obtenção de prova, conforme resulta do artigo 17.°, n.° 1, alíneas c) e d), da Lei n.° 18/2003.
29) Por outro lado, no que se refere à proporcionalidade em sentido estrito da restrição em causa, a mesma também não se verifica, na medida em que existe uma coacção directa, intensa e imediata sobre o arguido para que a informação seja prestada, ou a documentação seja entregue, através da ameaça de aplicação de uma sanção pecuniária de valor especialmente elevado.
30) A proporcionalidade em sentido estrito não se verifica, também, porque ainda que exista, no âmbito do processo contra-ordenacional, o direito ao contraditório e o direito à impugnação judicial, os mesmos ficam vazios de conteúdo a partir do momento em que o arguido foi obrigado a revelar, de forma completa, as informações e documentação de que dispunha.
31) Ou seja, a garantia de uma defesa efectiva, e com respeito pela dignidade do arguido, pode ficar precludida na sua génese, não podendo o respeito formal pelo contraditório obviar a esta evidência.
32) A proporcionalidade em sentido estrito não se verifica, por fim, porque a Autoridade da Concorrência requer estas informações e documentação, exactamente, para instruir a acusação sancionatória contra o arguido e formar a sua convicção na decisão condenatória.
33) Portanto, a máxima da proporcionalidade em sentido estrito fica prejudicada na medida em que a lesão em causa não se cinge à imediata violação do nemo tenetur, mas afecta o complexo de garantias de que o arguido goza ao longo de todo o processo de contra-ordenacional.
34) Assim, e em suma, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende agora sindicar traduz uma violação do princípio da presunção de inocência do Arguido, uma vez que o obriga, de forma desnecessária e desproporcionada, sob ameaça de coima, a contribuir para a sua auto-incriminação.
35) Pelos mesmos motivos, ou seja, por se obrigar o Arguido a contribuir para a sua própria incriminação, sob ameaça de uma sanção, aquela norma traduz, igualmente, uma forma ilegítima de degradação da dignidade do arguido, promovendo uma abusiva restrição da sua liberdade e assim violando o disposto no artigo 18.°, n.° 2, da Constituição, violando, em qualquer caso, as exigências do princípio da proporcionalidade enquanto emanação do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.° da Constituição.
36) Decorre ainda que aquela norma traduz uma violação do direito a um processo equitativo, em que o Arguido é tratado com dignidade e lealdade processual e tem acesso às garantias de defesa, de forma útil e efectiva, sendo sujeito processual e não mero objecto do processo.
37) Assim, deverá este Venerando Tribunal Constitucional julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação das disposições conjugadas dos artigos 17.°, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido de obrigar o Arguido [em processo contra-ordenacional] a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos à autoridade da concorrência no âmbito de um processo de contra-ordenação.
II - A (in)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação das disposições conjugadas dos artigo 51.°, n.° 1 da Lei n.° 18/2003, 41.°, n.° 1, do RGCOC e 311.°, n.° 1, e 312.°, n.° 1, do CPP
38) A interpretação das disposições conjugadas dos artigos 51.°, n.° 1 da Lei n.° 18/2003, 41.°, n.° 1, do RGCOC e 311.°, n.° 1, e 312.°, n.° 1, do CPP, no sentido de, no âmbito de um processo contra-ordenacional, o arguido não ter de ser notificado das contra-alegações apresentadas pela autoridade administrativa em resposta à impugnação judicial da decisão condenatória, e de não ter a possibilidade de responder a essas mesmas contra-alegações, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do contraditório e da igualdade de armas e dos direitos de audiência e de defesa dos arguidos, consagrados nos artigos 20.°, n.° 4, e 32.°, n.os 1, 2, 5 e 10 da Constituição da República Portuguesa.
39) O princípio do contraditório, que tem no moderno processo penal e contra-ordenacional o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars e nemo potest inauditu damnari, determina que o arguido pode pronunciar-se sobre todos os actos ou todas as questões que possam colidir com a sua defesa, e que pode fazê-lo em último lugar.
40) Este princípio, que deve ter conteúdo e sentido autónomos, impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, nomeadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.
41) A interpretação dos referidos preceitos legais no sentido normativo ora sindicado nega ao arguido, antes do mais, a possibilidade de ter conhecimento sobre uma tomada de posição que pode virtualmente vir a conformar a decisão final do Tribunal, o que, em última instância, poderá gerar uma decisão surpresa.
42) Nega também ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre todos os actos processuais que possam colidir com a sua defesa e que possam influir na decisão final do tribunal, bem como a oportunidade de o fazer em último lugar.
43) Por sua vez, da interpretação normativa em causa resulta também que o arguido, no âmbito de um processo contra-ordenacional, dispõe de menos armas para se defender do que a autoridade administrativa para acusar.
44) A doutrina e a jurisprudência maioritárias, destacando-se aqui a jurisprudência do Tribunal Constitucional, perfilham do entendimento de que, num processo de cariz sancionatório, o arguido deve ter a possibilidade de se pronunciar sobre qualquer questão que tenha a virtualidade de afectar a sua defesa e que possa influir na decisão do juiz da causa, bem como que deve ter a possibilidade de se pronunciar em último lugar — o chamado direito à última palavra.
45) Estes entendimentos sustentam-se, precisamente, nos princípios do contraditório e da igualdade de armas, que saem violados pela interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se pretende ver reconhecida, na medida em que, ao não ser notificado das contra-alegações da autoridade administrativa apresentadas como resposta à impugnação judicial da decisão condenatória, o arguido não tem a possibilidade de se pronunciar sobre as mesmas, nem tão-pouco de se pronunciar em último lugar sobre as questões abordadas na impugnação judicial e nas respectivas contra-alegações.
46) Este corolário do princípio do contraditório e da igualdade de armas, assente nesta estrutura dialéctica em que ao arguido é sempre conferida a possibilidade de se pronunciar em último lugar sobre os actos processuais que possam colidir com a sua defesa, aplica-se com a mesma amplitude a todas as fases do processo penal e contra-ordenacional, e não apenas à fase de julgamento.
47) O direito à última palavra dos arguidos encontra consagração expressa na legislação processual-penal, entre o mais, nos artigos 61.°, n.° 1, alínea g), 98.°, n.° 1, 327.°, n.° 2, 360.°, n.° 1, 361.°, n.° 1, todos do CPP, os quais se aplicam ao processo contra-ordenacional, sobretudo na sua fase judicial, por força do disposto, quer no artigo 32.°, n.° 10, da Constituição, quer do artigo 41.°, n.° 1, do RGCOC.
48) Assim, este direito dos arguidos, cuja existência é inequívoca, como se demonstrou, implica que os arguidos devam ser notificados das contra-alegações da autoridade administrativa apresentadas como resposta à sua impugnação judicial, mesmo não estando expressamente previsto legalmente um meio de reacção por parte dos arguidos a essas contra-alegações, uma vez que os aludidos princípios determinam que, caso o arguido entenda pronunciar-se sobre as mesmas, tenha oportunidade processual de o fazer, o que, obviamente, apenas é possível se o arguido tiver conhecimento (rectius, for notificado) dessas Contra-Alegações,
49) Pelo que deverá este Venerando Tribunal Constitucional julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação dos artigos 51.°, n.° 1, da Lei n.° 18/2003, 41.°, n.° 1, do RGCOC e 311.°, n.° 1, e 312.°, n.° 1, do CPP no sentido de, no âmbito de um processo contra-ordenacional, o arguido não ter de ser notificado das contra-alegações apresentadas pela autoridade administrativa em resposta à impugnação judicial da decisão condenatória, e de não ter a possibilidade de responder a essas mesmas contra-alegações, por violação dos princípios do contraditório e da igualdade de armas e dos direitos de audiência e de defesa, consagrados nos artigos 20.°, n.° 4, e 32.°, n.os 1, 2, 5 e 10 da Constituição da República Portuguesa.
50) Acresce que esta norma, nesta interpretação, além de ser inconstitucional, viola também o disposto no artigo 6.° da CEDH, aplicável ao processo jusconcorrencial contra-ordenacional nos termos já supra expostos e que aqui se dão por reproduzidos.
51) O direito a um processo contraditório, justo e equitativo, no sentido que lhe é dado pelo n.° 1 do artigo 6.° da CEDH, conforme interpretado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, integra o direito de ser comunicada ao arguido qualquer peça ou observação apresentada a juízo com vista a influenciar a decisão judicial.
52) As contra-alegações apresentadas por uma autoridade administrativa em resposta a uma impugnação judicial da decisão condenatória visam influenciar, e podem efectivamente influenciar, a decisão do tribunal.
53) Assim, a interpretação dos artigos 51.°, n.° 1, da Lei n.° 18/2003, 41.°, n.° 1, do RGCOC e 311.°, n.° 1, e 312.°, n.° 1, do CPP no sentido de, no âmbito de um processo contra-ordenacional, o arguido não ter de ser notificado das contra-alegações apresentadas pela autoridade administrativa em resposta à impugnação judicial da decisão condenatória, e de não ter a possibilidade de responder a essas mesmas contra-alegações, além de redundar em norma materialmente inconstitucional, constitui ainda uma violação do artigo 6.°, n.° 1, da CEDH, o que se alega para os devidos efeitos. “
O Ministério Público igualmente apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:
“ 1º
O reconhecimento dos direitos do arguido ao silêncio e à não auto-
-incriminação (“nemo tenetur se ipsem accusare” ou “nemo tenetur se detegere”), emana da tutela jurídica de direitos fundamentais como a dignidade humana, a liberdade individual e a presunção de inocência.
2º
Tais direitos não são absolutos verificando-se no ordenamento jurídico português, que expressamente reconhece o direito ao silêncio no artigo 61.º, n.º 1, al. d), do CPP, algumas limitações (impostas em nome da protecção e salvaguarda de interesses constitucionalmente protegidos e em obediência ao princípio da proporcionalidade), mesmo em matéria criminal (cfr. art. 61, n.º 3, al. b), do CPP, bem como a obrigatoriedade de realizar determinados exames, como os de alcoolemia e os previstos na Lei n.º 45/2004, de 29 de Agosto, e ainda os deveres de cooperação perante a administração tributária previstos no RGIT)
3º
No âmbito das contra-ordenações encontram-se limitações a esses mesmos direitos, nomeadamente, em relação aos deveres de cooperação perante a CMVM, previstos no CdVM) e perante a AdC, previstos na Lei n.º 18/2003.
4º
Efectivamente, existem razões que se prendem com a evolução da sociedade e do Estado, que de liberal passou a intervencionista e regulador, que justificam essas limitações no próprio processo penal, e, por maioria de razão, no âmbito de um direito sancionatório de menor gravidade como é o processo contra-ordenacional, onde o alcance do princípio “nemo tenetur” é, necessariamente, diferente do alcance que se encontra no âmbito do direito penal clássico.
5º
Por outro lado, no domínio contra-ordenacional, o poder sancionatório das autoridades administrativas apenas se exerce quando se confronta alguém com uma infracção que terá cometido.
Antes da imputação de uma contra-ordenação ao agente, este não é considerado arguido (art.º 50.º do RGCO), pelo que, não poderá fazer valer o seu direito ao silêncio no âmbito da supervisão e da fiscalização.
6.º
Assim, só a partir do momento em que se verifica a imputação de uma infracção, o já arguido tem, de acordo com o disposto no n.º 10 do art.º 32.º da Lei Fundamental, assegurados os direitos de audiência e de defesa, onde se inclui o direito ao silêncio.
7.º
Aplicar o direito ao silêncio na fase de supervisão e de fiscalização constitui um obstáculo ao exercício das prerrogativas previstas no art.º 17.º da Lei n.º 18/2003 e restringe, sem base legal, o dever de informar a autoridade administrativa e de lhe fornecer os elementos solicitados aludidos no art.º 18.º dessa mesma Lei.
Pelo contrário, tendo em conta os princípios e os procedimentos de supervisão, existe uma clara limitação ou restrição (imposta através do cumprimento de determinadas obrigações legais, necessárias à cabal realização das funções de vigilância e de supervisão), ao direito ao silêncio, que deve ceder perante o regime previsto, no caso concreto, na Lei n.º 18/2003, sem que tal constitua uma afronta à Lei Fundamental.
8.º
De todo o modo, a obrigação legal de colaborar e de prestar informações no âmbito de um processo de fiscalização e de supervisão, que recai sobre os agentes que exerçam uma actividade económica, nos termos do n.º 1 do art.º 1.º da Lei n.º 18/2003, e que estão, por isso, sujeitas a um acompanhamento regular da Autoridade da Concorrência, não prejudica o direito ao silêncio que lhes assistirá na qualidade de arguidos no âmbito de um eventual processo sancionatório posterior.
9.º
Pelo que, a interpretação conjugada dos artigos 17.º, n.º 1, alínea a), 18.º e 43.º, n.º 3, da Lei n.º 18/2003, questionada pela recorrente, no sentido de obrigar o “arguido”, em “processo contra-ordenacional”, a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos à Autoridade da Concorrência no âmbito de um “processo de contra-ordenação”, não afronta a Lei Fundamental, nomeadamente, os seus artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2, 8 e 10 da CRP.
10.º
A menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o, também, às mais rigorosas exigências de aplicação das garantias do processo criminal, como se extrai da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, que apenas assegura, no âmbito do processo contra-ordenacional, os direitos de audiência e de defesa do arguido.
11.º
Assim, no que respeita ao princípio do contraditório, a sua violação só ocorre quando as partes ficarem impossibilitadas de controlar, de responder, às questões colocadas ou suscitadas no processo.
12.º
Na audiência de julgamento, estritamente ligada à garantia dos direitos de defesa, em especial ao direito do contraditório, o arguido pode discutir todos os factos e questões colocadas no processo, contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos.
13.º
Efectivamente, é na fase final de formação da decisão, na fase de julgamento, que deve ser muito especialmente acatado o princípio do contraditório.
14.º
Por isso, compreende-se a preocupação do CPP em estipular, em relação à fase de julgamento, que seja o defensor do arguido o último a usar da palavra (n.ºs 1 e 2 do art.º 360.º), e que seja dada oportunidade ao arguido para prestar as últimas declarações, antes do encerramento da discussão (art.º 361.º).
15.º
Mas, isso não significa, nem se compreenderia, que por exigências dos mesmos princípios constitucionais, de defesa dos arguidos, do contraditório, do processo equitativo e justo, ou da igualdade de armas, o arguido deva ser sempre notificado das contra-alegações da AdC, ou que tenha o direito a pronunciar-se, sempre, em último lugar, como pretende a recorrente.
16.º
Assim, muito embora do despacho recorrido não resulte claramente a interpretação normativa questionada pela recorrente, de que em processo contra-ordenacional o arguido não tem de ser notificado das alegações da AdC, nem pode responder às mesmas (o despacho considera que, no caso concreto, não havia necessidade de se cumprir essa notificação para realização do contraditório), tal interpretação também não viola a Constituição, designadamente, os seu artigos 32.º, n.ºs 1, 5 e 10, e 20.º, n.º 4.
17.º
Nestes termos, deve integralmente ser negado provimento ao recurso.”
A recorrida Autoridade da Concorrência também alegou, apresentando as conclusões que se transcrevem:
“1. Carece de fundamento a tese da Recorrente quanto à pretensa inconstitucionalidade da norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 17.°, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, “no sentido de obrigar o arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos”, não enfermando as elencadas normas, nem a sua interpretação conjugada, de qualquer inconstitucionalidade face ao disposto nos artigos 1.°, 2.°, 20.°, n.° 4, e 32.°, n.os 2, 8 e 10, da CRP.
II. Se é certo que em processo penal o princípio da não auto-incriminação e o direito ao silêncio são aplicáveis em toda a sua plenitude, o mesmo não se pode dizer no âmbito dos procedimentos contra-ordenacionais, designadamente nos procedimentos sancionatórios de direito da concorrência.
III. Os artigos 17.°, n.° 1, e 18.°, conjugados com o artigo 43.° da Lei n.° 18/2003, consagram expressamente a regra segundo a qual quaisquer pessoas e empresas, envolvidas ou não envolvidas, questionadas pela AdC ao abrigo de poderes sancionatórios ou de supervisão, devem responder de forma completa e com verdade aos pedidos de informação e de elementos que por aquela lhes são dirigidos.
IV. Este dever de colaboração, em abstracto, não conflitua com qualquer corolário do princípio da não auto-incriminação (e.g., direito ao silêncio), tendo um campo de aplicação muito mais vasto do que o universo a que se aplica o princípio da não auto-incriminação, que só abrange os processos sancionatórios (criminais, contra-ordenacionais ou outros), abertos ou a instaurar contra quem fornece a informação pedida.
V. In casu, os pedidos realizados pela AdC eram objectivos e respeitavam a elementos documentais, pelo que ficou salvaguardado o aspecto essencial da prerrogativa de não auto-incriminação, a saber: a empresa, ou pessoa, sob investigação tem o direito de não fornecer respostas através das quais seja levada a admitir a existência da infracção em causa, cuja prova cabe à AdC, pois só foram dirigidos à Recorrente pedidos de elementos não conflituantes com o princípio da não auto-incriminação.
VI. É inequívoca a inexistência de qualquer inconstitucionalidade da norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 17.°, n.° 1, alínea a), l8.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido de obrigar o arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos, por violação dos artigos l.°, 2.°, 20.°, n.° 4 e 32.°, n.os 2, 8 e 10 da CRP, carecendo de fundamento a alegação da Recorrente.
VII. Não tem fundamento o alegado pela Recorrente quanto à pretensa “interpretação dos artigos 51.°, n.° 1, da Lei n.° 18/2003, 41.°, n.° 1, do RGCOC e 311.°, n.° 1, e 312.°, n.° 1, do CPP no sentido de, no âmbito de um processo contra-ordenacional, o arguido não ter de ser notificado das contra-alegações apresentadas pela autoridade administrativa em resposta a impugnação judicial da decisão condenatória, e de não ter a possibilidade de responder a essas mesmas contra-alegações [...]“, não se verificando, pois, qualquer violação dos princípios do contraditório e da igualdade de armas e dos direitos de audiência e defesa dos arguidos, consagrados nos artigos 20.°, n.° 4, e 32.°, n.os 1, 2, 5 e 10 da CRP.
VIII. Esta interpretação normativa apenas resulta da leitura da Recorrente, não tendo qualquer base ou fundamento no Despacho recorrido.
IX. A Recorrente faz uma errada interpretação do regime processual relativo ao saneamento do processo, previsto no artigo 311.º do CPP — aplicado subsidiariamente — quando pretende conjugá-lo com um direito do arguido de ser sempre notificado das contra-alegações da AdC, porque tem o direito a pronunciar-se em último lugar.
X. Não tem razão a Recorrente quando apela para diferentes situações na tramitação do processo em que é conferida “[...] ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação”. As situações cobertas pelos artigos 360.°, n.° 1, e 361.°, n.° 1, do CPP, dizem respeito ao direito de pronúncia do arguido em último lugar sobre as acusações que lhe são dirigidas, ao passo que, no caso concreto, ao abrigo do regime previsto no artigo 311.º, n.° 1, do CPP, o Juiz se pronunciou apenas sobre as questões prévias e nulidades trazidas pela Recorrente e não sobre quaisquer questões de mérito ou relativas à matéria pela qual a Recorrente vinha acusada.
XI. Tendo sido a Recorrente condenada no âmbito de um processo contraditório de natureza contra-ordenacional, no decurso do qual a mesma teve oportunidade de submeter à apreciação do Tribunal todos os argumentos que considerava úteis à sua defesa, o que fez, nas suas alegações de recurso, na audiência de julgamento e nas suas alegações finais orais e, ainda, nos vários recursos interpostos, não poderá concluir-se que a interpretação normativa vertida no Despacho em apreço enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio do contraditório, do processo justo e equitativo e do princípio da igualdade de armas, igualmente consagrado no artigo 6.°, n.° 1, da CEDH.
XII. Não se verifica qualquer inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 51.° da Lei n.° 18/2003 e 311.º, n.° 1, e 312.°, n.° 1, do CPP, atribuída ao Despacho de fls. 15402 a 15406, por não ter a Arguida, ora Recorrente, sido notificada e chamada a pronunciar-se sobre as contra-alegações da AdC.”
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Comecemos por abordar a primeira questão, que a recorrente enuncia nos seguintes termos:
“A inconstitucionalidade normativa que resulta da interpretação conjugada dos artigos l7.º, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido de obrigar o Arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos à Autoridade da Concorrência.”
Os preceitos, seleccionados como suporte da interpretação normativa em análise, são extraídos do diploma legal que define o regime jurídico da concorrência e contêm as seguintes estatuições:
Artigo 17.º, n.º 1, alínea a)
Poderes de inquérito e inspecção
“No exercício dos poderes sancionatórios e de supervisão, a Autoridade, através dos seus órgãos ou funcionários, goza dos mesmos direitos e faculdades e está submetida aos mesmos deveres dos órgãos de polícia criminal, podendo, designadamente:
(…) Inquirir os representantes legais das empresas ou das associações de empresas envolvidas, bem como solicitar-lhes documentos e outros elementos de informação que entenda convenientes ou necessários para o esclarecimento dos factos;”
Artigo 18.º
Prestação de informações
“1 - Sempre que a Autoridade, no exercício dos poderes sancionatórios e de supervisão que lhe são atribuídos por lei, solicitar às empresas, associações de empresas ou a quaisquer outras pessoas ou entidades documentos e outras informações que se revelem necessários, esse pedido deve ser instruído com os seguintes elementos:
a) a base jurídica e o objectivo do pedido;
b) o prazo para a comunicação das informações ou o fornecimento dos documentos;
c) as sanções a aplicar na hipótese de incumprimento do requerido;
d) a informação de que as empresas deverão identificar, de maneira fundamentada, as informações que consideram confidenciais, juntando, sendo caso disso, uma cópia não confidencial dos documentos em que se contenham tais informações.
2 – As informações e documentos solicitados pela Autoridade ao abrigo da presente lei devem ser fornecidos no prazo de trinta dias, salvo se, por decisão fundamentada, for por esta fixado um prazo diferente.”
Artigo 43.º, n.º 3
Coimas
“ Constitui contra-ordenação punível com coima (…)
(…)
a não prestação ou a prestação de informações falsas, inexactas ou incompletas, em resposta a pedido de Autoridade, no uso dos seus poderes sancionatórios ou de supervisão;”
6. Antes de entrarmos na análise da concreta interpretação normativa identificada, torna-se necessário contextualizar a inserção sistemática dos preceitos em que a mesma assenta, no âmbito do regime jurídico da concorrência e das necessidades sociais que estiveram na génese de tal intervenção legislativa.
Afastada a possibilidade prática dum modelo de concorrência perfeita - assente numa organização do mercado enformada por uma total liberdade de oferta e de procura, com consequente estabilização dos preços a um nível óptimo para todos os intervenientes – e reconhecida a existência de assimetrias no funcionamento prático dos mercados, tornou-se premente a necessidade de uma intervenção do Estado.
Tal função foi assumida, na Europa Ocidental, no período posterior à segunda guerra mundial, sobretudo através da assunção, pelo Estado, da propriedade e gestão directa de actividades empresariais de produção de bens e serviços essenciais, como forma de assegurar a disponibilidade a todos os utilizadores, em condições de tendencial igualdade e com garantia de continuidade de fornecimento.
A falência progressiva do modelo de intervenção directa descrito implicou, porém, a evolução para outras formas de intervenção pública, assentes na protecção dos mercados por via indirecta, quer mediante o estabelecimento de condições imperativas prévias, tendencialmente padronizadas, de exercício de certas actividades económicas, quer pela criação de normas, destinadas a garantir que as condutas concretas dos operadores económicos respeitam os valores de mercado e a concorrência efectiva.
Em Portugal, a integração comunitária e a criação do mercado único europeu impulsionaram, de forma decisiva, a alteração do paradigma de intervenção do Estado na economia, concordantemente com a tendência europeia de desmantelamento de monopólios públicos e eliminação de direitos especiais em sectores económicos considerados essenciais.
Nesse contexto evolutivo, desenvolveu-se um novo corpo jurídico de regulação da economia, tendente a “abrir determinados sectores económicos à concorrência e criar condições duradouras para o efectivo funcionamento aberto desses novos mercados, assegurando, em paralelo, que tal funcionamento concorrencial dos mercados é compatível com a disponibilização de um conjunto essencial de serviços de interesse económico geral.” (cfr. E. Paz Ferreira e L. Silva Morais, “A regulação sectorial da economia. Introdução e perspectivas gerais”, in “Regulação em Portugal: Novos tempos, novo modelo-”, Almedina, Coimbra, 2007, p. 21.)
Em termos legislativos, o percurso de regulação jurídica da economia, no domínio da promoção e defesa da concorrência, contou com um primeiro passo decisivo com a publicação do Decreto-Lei n.º 422/83, de 3 de Dezembro, que fixava, como seu objecto, “ a defesa da concorrência no mercado nacional, a fim de salvaguardar os interesses dos consumidores, garantir a liberdade de acesso ao mercado, favorecer a realização dos objectivos gerais de desenvolvimento económico e social e reforçar a competitividade dos agentes económicos face à economia nacional”.
Seguiu-se, dentro da mesma linha de defesa da concorrência, o Decreto-Lei n.º 428/88, de 19 de Novembro, relativo a uma apreciação preventiva das concentrações de empresas, com potencialidade de risco para o normal funcionamento dos mercados.
Os dois referidos diplomas legislativos foram revogados pelo Decreto-Lei n.º 371/93, de 29 de Outubro, que veio redefinir aspectos gerais da política de concorrência, em moldes consentâneos com o avanço do processo de integração europeia e crescente internacionalização da economia. A par deste diploma, surgiu o Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, relativo à proibição de práticas individuais restritivas de comércio.
Volvidos quase dez anos, foi publicado o Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de Janeiro, que determinou a génese e definição estatutária da Autoridade da Concorrência, a quem compete “assegurar o respeito pelas regras de concorrência, tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a repartição eficaz dos recursos e os interesses dos consumidores.”
A natureza e o regime jurídico desta entidade - qualificada como pessoa colectiva de direito público de carácter institucional, dotada de órgãos, serviços, pessoal e património próprios e de autonomia administrativa e financeira – caracterizam o seu estatuto especial, importante para consolidar a legitimação acrescida da sua intervenção reguladora e da posição de garante, por excelência, da observância das regras de concorrência, nos termos definidos na Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, diploma em que se inserem os preceitos envolvidos na questão de constitucionalidade em análise.
7. Da articulação entre o Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de Janeiro, e a Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, resulta clara a importância da Autoridade da Concorrência no âmbito da regulação jurídica da economia, entendido este conceito como o conjunto de “processos jurídicos de intervenção indirecta na actividade económica produtiva – indirecta, porque se exclui a participação pública directa na actividade empresarial – incorporando algum tipo de condicionamento ou coordenação daquela actividade e das condições do seu exercício, visando garantir o funcionamento equilibrado da mesma actividade em função de determinados objectivos públicos.” (E. Paz Ferreira e L. Silva Morais, op. cit., p. 22)
A assumida vocação global ou generalizante de intervenção, no âmbito do regime da concorrência, assegurada pela Lei n.º 18/2003, caracterizando-se por uma extensão de abrangência que tende a abarcar, objectivamente, todas as actividades económicas produtivas e, subjectivamente, todas as entidades com capacidade produtiva ou de disponibilização de bens ou serviços - sem prejuízo da salvaguarda relativa plasmada no n.º 2 do artigo 3.º - adequa-se à prossecução dos objectivos plasmados na alínea f) do artigo 81.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), optimizando as condições para “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolista e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”.
Na verdade, uma actuação reguladora transversal a todas as actividades e agentes económicos produtivos pode garantir a realização das incumbências económicas prioritárias cometidas ao Estado, conformadas pelo princípio estruturante da concorrência.
E este é um valor objectivo do modelo de organização económica que a Constituição desenha, nos seus traços fundamentais e, igualmente, de forma mais mediata, contribui para a realização de direitos económicos e sociais (nomeadamente os direitos dos consumidores), ao estimular “o progresso económico-social em benefício dos cidadãos” (J. Miranda e R. Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo II, Coimbra Editora, 2006, p. 20).
Face à importância da defesa da concorrência e às vastas incumbências da Autoridade da Concorrência, o legislador dotou tal entidade de poderes públicos, funcionalmente adstritos às competências de que a mesma dispõe, ao nível de regulamentação, supervisão e igualmente no âmbito sancionatório.
Centrar-nos-emos nestes dois últimos domínios – supervisão e regime sancionatório – para efeito de abordagem da questão de constitucionalidade colocada.
8. O conceito de supervisão abrange o controlo e fiscalização da actividade das empresas sujeitas ao regime da concorrência, nos termos da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho.
Corresponde a uma das dimensões mais importantes da regulação, assumindo uma dúplice vertente, preventiva – destinada a acautelar actuações contrárias à lei ou a regulamento - e repressiva – direccionada à repressão e sancionamento das infracções, com consequente ulterior organização de processos contra-ordenacionais, relativamente a ilícitos de mera ordenação social, e comunicação ao Ministério Público de condutas indiciariamente tipificadas como crimes (J. Figueiredo Dias e M. Costa Andrade - in “Supervisão, direito ao silêncio e legalidade da prova”, Almedina, Fevereiro de 2009, p. 25).
A competência sancionatória cometida à Autoridade da Concorrência funciona como condição de eficácia da própria função de supervisão, pelo que o legislador optou por ligar intimamente o âmbito dos dois domínios de actuação da referida entidade.
Demonstrativos da íntima ligação entre os poderes sancionatórios e de supervisão são os artigos 17.º e 18.º do diploma em referência, que associam os mesmos indiscriminadamente, quer quanto à equiparação do regime de direitos e deveres dos órgãos de polícia criminal, quer quanto à faculdade de obter informações e documentos.
9. A confluência dos poderes de supervisão e sancionamento contra-ordenacional, correspondendo a uma lógica de continuidade de actuação, com consequentes ganhos de eficiência, acarreta, porém, zonas de tensão ou conflito, cuja análise nos transporta para a questão de constitucionalidade colocada.
Argumenta a recorrente que é inconstitucional a obrigatoriedade de o arguido, no âmbito de um processo contra-ordenacional, ser instado a prestar informações, nomeadamente documentação, com verdade e de forma completa, sob cominação de coima, à Autoridade da Concorrência, com a possibilidade de tais elementos virem a ser utilizados como prova incriminatória, contribuindo para eventual condenação contra-ordenacional.
Fundamenta o seu juízo de desconformidade constitucional na violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito Democrático, da proporcionalidade, do processo equitativo e das garantias fundamentais do arguido em processo sancionatório, previstos nos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2, 8 e 10, todos da Lei Fundamental, centrando, directa e especificamente, a sua posição na alegada violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare - consubstanciado na não obrigatoriedade de contribuir para a sua própria incriminação - que erige à categoria de direito fundamental do arguido, no âmbito de processo contra-ordenacional.
10. O direito à não auto-incriminação pode ser entendido como uma dimensão negativa da liberdade de declaração, que assume preponderante relevo enquanto privilégio integrante do estatuto do arguido, no âmbito de processo criminal.
Na sua dimensão positiva, a liberdade de declaração garante ao arguido um amplo direito de intervenção e de audição, em abono da sua defesa, obrigando à criação de condições de oportunidade efectiva de pronúncia relativamente aos factos que lhe são imputados. Na dimensão negativa – ligada ao direito à não auto-incriminação – protege o arguido contra o exercício impróprio de poderes coercivos tendentes a obter a sua colaboração forçada na auto-incriminação, nomeadamente mediante a utilização de meios enganosos ou coacção (cfr. M. Costa Andrade, “Sobre as proibições de prova em processo penal”, Coimbra Editora, 1992, p. 120 e ss).
O princípio nemo tenetur se ipsum accusare abrange, no seu conteúdo potencial máximo, como corolários, o direito ao silêncio e o direito de não facultar meios de prova, nomeadamente documentos.
Ora, não obstante não existir expressa e directa consagração constitucional do referido princípio, é insofismável que o mesmo surge como refracção da tutela de valores ou direitos fundamentais, com directa consagração constitucional, que a doutrina vem referindo como correspondendo à dignidade humana, à liberdade de acção e à presunção de inocência.
A divisão doutrinária, quanto a este ponto, situa-se sobretudo ao nível da determinação do conteúdo do direito em referência (segue-se J. Figueiredo Dias e M. Costa Andrade - in “Supervisão, direito ao silêncio e legalidade da prova”, Almedina, Fevereiro de 2009, p. 40).
Para uma corrente de pendor substantivo, o fundamento constitucional do referido direito assentaria directamente na dignidade da pessoa humana, plasmada no artigo 1.º da CRP, ou seria o reflexo dos direitos à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados nos artigos 25.º e 26.º da mesma Lei Fundamental.
Em contrapartida, para uma corrente de matriz processualista, o fundamento constitucional do referido direito encontrar-se-ia nas garantias processuais inerentes ao estatuto do arguido, nomeadamente os princípios do processo equitativo e da presunção de inocência, consagrados nos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 2 e 8, ambos da CRP.
Na linha do que o Tribunal Constitucional já defendeu, nomeadamente no âmbito do Acórdão n.º 695/95 – disponível no sítio da internet www.tribunalconstitucional.pt – e tal como igualmente sustentam J. Figueiredo Dias e M. Costa Andrade, acima citados, p. 41 – considera-se que o direito à não auto-incriminação encontra o seu fundamento jurídico-constitucional imediato nas garantias processuais de defesa do arguido, destinadas a assegurar um processo equitativo, relacionando-se, de forma mediata ou reflexa, com os direitos fundamentais de matriz mais substantiva aludidos supra.
11. O direito à não auto-incriminação, nomeadamente na vertente de direito ao silêncio, tendo o seu campo de eleição no âmbito do direito criminal, estende-se a qualquer processo sancionatório de direito público.
Porém, o seu conteúdo é diferenciado, consoante o domínio do direito punitivo em que se situe a sua aplicação.
Ora, no âmbito contra-ordenacional – dada a diferente natureza do ilícito de mera ordenação e a sua menor ressonância ética, comparativamente com o ilícito criminal – o peso do regime garantístico é menor, conforme já defendido por este Tribunal, nomeadamente no Acórdão n.º 659/2006 (disponível no sítio da internet já referido).
Refere-se, neste aresto, a propósito da introdução do actual n.º 10 do artigo 32.º da CRP – efectuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios – que se pretendeu assegurar, nesses processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, expondo-se o alcance da referida norma e da aplicabilidade dos princípios da constituição processual criminal, nos termos seguintes:
“Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
É óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio. É o caso, desde logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa, direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da CRP. E, entrados esses processos na “fase jurisdicional”, na sequência da impugnação perante os tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas garantias constitucionais dos processos judiciais, quer directamente referidas naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP), (…)
(…) Dentre os processos sancionatórios é o processo contra-ordenacional um dos que mais se aproxima, atenta a natureza do ilícito em causa, do processo penal, embora a este não possa ser equiparado.
Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade directa e global aos processos contra-ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal (…)
(…) A diferença de “princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra-ordenações” reflecte-se “no regime processual próprio de cada um desses ilícitos”, não exigindo “um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal (…)”.
No entanto, este Tribunal também tem sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contra-ordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (Acórdãos n.º 469/97 e 278/99).”
12. Não obstante ser difícil traçar uma fronteira absoluta entre a natureza das infracções criminais e contra-ordenacionais, a ponto de apenas se poder afirmar, indubitavelmente, que “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima” (artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 433/82), tal não significa que o âmbito de liberdade do legislador ordinário, quanto à decisão de reprimir determinadas condutas com os mecanismos sancionatórios penais ou apenas intervir com sanções de carácter ordenativo, não seja constitucionalmente vinculado e dependente, no limite, duma distinção substantiva entre os dois ilícitos.
De acordo com Figueiredo Dias, “ a ordem axiológica jurídico-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo e delimitativo do âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva do Estado.”
Assim, só é legítima a intervenção do direito penal, quando se verifiquem os seguintes requisitos: estejam em causa condutas que “violem bens jurídicos claramente individualizáveis”; tais condutas não possam ser “suficientemente contrariadas ou controladas por meios não criminais”; exista uma reconhecível referência de tais bens jurídicos à ordem axiológica constitucional, quer por corresponderem a uma concretização de valores constitucionais ligados aos direitos, liberdades e garantias – como se verifica no âmbito do “direito penal clássico ou de justiça” – quer por se reportarem à concretização de valores constitucionais ligados aos direitos sociais e à organização económica – como se verifica, em regra, no caso do direito penal secundário.
Pelo direito penal já não deverão ser abrangidas “as condutas que, dada a sua neutralidade ético-social, não mais permitem uma referência à ordem axiológica constitucional; mas, se se entender que, apesar disso, elas devem ser contrariadas com sanções exclusivamente pecuniárias, de carácter ordenativo, é isso sinal seguro que estamos perante contra-ordenações, constitutivas de um ilícito de mera ordenação social.” (cfr. J. de Figueiredo Dias, “O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, “Jornadas de Direito Criminal”, C.E.J., 1983, p. 323.)
A autonomia do direito das contra-ordenações assentaria, desta forma, numa ideia de neutralidade ética da conduta que integra o ilícito, que apenas na associação com a proibição legal passaria a constituir um substrato idóneo de desvalor ético-social (J. Figueiredo Dias, op. cit. p. 327, 328).
Em certos casos, porém, o critério qualitativo de distinção é complementado por critérios quantitativos, reportados à gravidade da infracção, considerando-se que a ultrapassagem de determinado limiar de danosidade determinará a natureza da reacção do Estado: penal ou contra-ordenacional.
O conceito de culpa, no âmbito contra-ordenacional, também se distingue da censura ética “dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna” – característica do direito penal – consubstanciando-se antes numa “imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima.”
A sanção principal, no âmbito contra-ordenacional, – coima – assume um carácter patrimonial, representando uma mera “admonição” ou “especial advertência”, conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas e destinada a garantir a preservação da ordenação social estabelecida.
Em função destas diferenças de características, o direito de mera ordenação social corresponde, em primeira linha, a um domínio de actuação das autoridades administrativas, não sendo forçosa a intervenção judicial, reservada à fase – facultativa - de “recurso” ou de impugnação (J. Figueiredo Dias, op. cit. p. 331 a 335).
Ora, nos termos do artigo 42.º da Lei n.º 18/2003, as infracções às normas reguladoras da concorrência, definidas no aludido diploma, constituem contra-ordenação.
Tal opção legislativa, – cuja constitucionalidade não é colocada em causa, no presente recurso – determinando uma menor potencialidade lesiva da reacção estadual à infracção, legitima uma compreensão do estatuto garantístico da defesa menos exigente do que aquele que caracteriza o domínio criminal.
13. Neste contexto distintivo do direito de mera ordenação social, justifica-se que o conteúdo potencial máximo do direito à não auto-incriminação sofra significativa compressão, face à consagração de deveres de colaboração impendentes sobre as entidades sujeitas ao regime da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho.
Tais deveres funcionam como uma contrapartida pelo exercício de actividades económicas sujeitas a regulação.
Utilizando a síntese de P. Sousa Mendes, poderemos dizer que “se partirmos do princípio que as actividades económicas ligadas ao exercício do direito de iniciativa privada (artigo 61.º CRP) não são absolutamente livres, mas estão sujeitas a restrições e condicionamentos que resultam da necessidade de protecção do interesse público em geral e dos interesses de terceiros em particular, bem se compreende que o legislador possa exigir dos particulares que queiram desenvolver tais actividades a máxima lealdade para com o Estado, especialmente quando estiverem defronte das autoridades reguladoras competentes, o que implicará que tenham um dever geral de colaborar com essas autoridades, nos termos legalmente impostos.” (P. de Sousa Mendes, “O procedimento sancionatório especial por infracções às regras de concorrência”, in “Regulação em Portugal: Novos tempos, novo modelo-”, Almedina, Coimbra, 2007, p. 717).
14. A obrigação de prestar informações e entregar documentos, à Autoridade da Concorrência, como entidade reguladora – fortalecida pela cominação de coima - surge como condição de eficácia da efectiva salvaguarda do princípio da concorrência –constitucionalmente protegido, designadamente em decorrência da alínea f) do artigo 81.º da Lei Fundamental, como já vimos – num domínio em que a colaboração dos agentes económicos se torna fundamental para a fiscalização, verificação e sancionamento da existência de comportamentos infraccionais.
Numa fase inicial, ainda no procedimento administrativo de supervisão, nenhuma dúvida haverá quanto à possibilidade de utilização dos elementos coligidos pela Autoridade da Concorrência, no âmbito dos poderes de supervisão, em ulterior procedimento contra-ordenacional.
A proibição de tal utilização – como refere F. Lacerda da Costa Pinto, a propósito de outra entidade reguladora: a CMVM – “seria mesmo algo de iníquo e contraditório, porque acabaria por criar uma zona franca de responsabilidade: qualquer elemento entregue à supervisão que viesse mais tarde a ser relacionado com uma infracção não poderia ser usado como prova. Como não há processo sancionatório sem prova, as competências contra-ordenacionais das autoridades de supervisão ficariam inutilizadas através de uma espécie de imunidade antecipada conseguida na fase de supervisão. Ou seja, o cumprimento da lei (na fase de supervisão) acabaria por impedir o cumprimento da lei (na fase sancionatória). Nenhum sistema jurídico racional subsistiria com uma antinomia desta natureza.” (J. de Figueiredo Dias, M. da Costa Andrade e F. Lacerda da Costa Pinto, “Supervisão, direito ao silêncio e legalidade da prova”, Almedina, 2009, p. 106 e 107).
Não será procedente o argumento de que, sendo as informações e documentos recolhidos sob a justificação da utilização de poderes de supervisão, a entidade obrigada a prestá-las, que vê, posteriormente, utilizados tais elementos em ulterior processo contra-ordenacional, é induzida em erro.
De facto, encontrando-se a Autoridade da Concorrência vinculada, de acordo com um princípio de legalidade de promoção, a investigar as infracções cometidas no âmbito do regime da concorrência, não pode deixar de considerar-se expectável que qualquer informação que indicie a prática de uma infracção contra-ordenacional terá de desencadear investigação destinada a apurar do seu efectivo cometimento, circunstância conhecida ou cognoscível por qualquer agente económico sujeito à actividade reguladora (em sentido paralelo, J. de Figueiredo Dias, M. da Costa Andrade e F. Lacerda da Costa Pinto, ob.cit, p. 34).
Já importa realçar contudo que, sendo certa a existência, na fase do exercício de poderes de supervisão, de vinculação das entidades reguladas a amplos deveres de colaboração, numa lógica de transparência e de máxima lealdade para com o Estado, é igualmente indesmentível que, a partir do momento em que se dá início ao procedimento contra-ordenacional, confrontando-se o arguido com a infracção indiciada, o paradigma de relacionamento altera-se, assumindo presença o direito à não auto-incriminação, refracção do próprio estatuto de arguido. Ainda assim, a justificação de tal exigência mantém-se, pois – como desenvolveremos infra - tal direito, no âmbito contra-ordenacional sobre o qual nos debruçamos, apenas pode conter a vertente do direito ao silêncio, enquanto possibilidade de não prestar declarações ou responder a perguntas sobre os factos imputados.
A compressão do conteúdo potencial máximo do direito à não auto-incriminação, exercida pela protecção constitucional do princípio da concorrência, implica que o domínio de abrangência de tal direito não abarque, assim, a possibilidade de o arguido, em processo contra-ordenacional por práticas anticoncorrenciais, recusar a prestação de informações e a entrega de documentos, que estejam em seu poder e lhe sejam solicitados pela Autoridade da Concorrência, pressuposta a dimensão objectiva desses elementos, desprovidos de conteúdo conclusivo ou juízo valorativo, no sentido auto-incriminatório.
15. Impõe-se avaliar se a compressão do direito à não auto-incriminação, pressuposta na interpretação normativa cuja sindicância é solicitada, respeita todos os requisitos constitucionalmente impostos às restrições de direitos fundamentais.
Do ponto de vista formal, a restrição em análise obedece aos pressupostos de previsão prévia em diploma de carácter geral e abstracto, no caso, emitido pela Assembleia da República: a Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho.
A restrição é funcionalmente dirigida à salvaguarda da concorrência, como princípio constitucional estruturante do funcionamento dos mercados, cuja eficiência é cometida ao Estado, a título de incumbência económica prioritária, conforme já explanado no ponto 7.
Acresce que a restrição obedece ao princípio da proporcionalidade, sendo adequada – correspondendo a meio idóneo à prossecução do objectivo de protecção do interesse constitucional em análise – bem como necessária – por corresponder ao meio exigível, cuja gradação de compressão sobre o direito restringido ainda permite a satisfação da necessidade de eficiência da investigação e repressão de práticas anticoncorrenciais (objectivo que não seria alcançável mediante instrumentos alternativos que, por serem excessivamente onerosos para a entidade reguladora – em meios e tempo, face à extensão das actividades e entidades reguladas - trariam como consequência margens de ineficácia excessivas, na protecção do interesse de defesa da concorrência). Finalmente, a restrição em análise mostra-se ainda proporcional, em sentido estrito, apresentando-se como equilibrada e correspondente à justa medida, sendo esta resultante da ponderação do peso relativo de cada um dos concretos bens jurídicos constitucionais em confronto, ou seja, do direito que é objecto da restrição e do bem que justifica a lei restritiva.
De facto, os deveres de colaboração, plasmados na lei, em ordem a conferir protecção efectiva aos interesses, constitucionalmente valiosos, da concorrência e do funcionamento equilibrado dos mercados – estruturantes do Estado de direito democrático – comprimem o conteúdo potencial máximo do direito à não auto-incriminação, no âmbito contra-ordenacional em análise, mas deixam intocado o seu conteúdo útil essencial, funcionalmente operante, na vertente do direito a não prestar declarações sobre os factos imputados, atenta a sua virtualidade auto-incriminatória.
Relativamente à densidade normativa – que a recorrente problematiza – cumpre referir que, conforme amplamente desenvolvido no âmbito do Acórdão n.º 155/07 deste Tribunal Constitucional – o grau de precisão e determinabilidade da lei habilitante da restrição é variável.
A este propósito, citando Jorge Reis Novais - in “As restrições de direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição”, Coimbra, 2003 – refere o aresto (p. 851): “a densidade normativa exigível varia em função de diferentes parâmetros só definitivamente valoráveis nas circunstâncias do caso concreto”, pelo que o que sempre importa apreciar é se, nas circunstâncias do caso concreto, “é exigível, no sentido não apenas de ser objectiva e tecnicamente possível, mas, também, constitucionalmente adequado, que o legislador dote a lei restritiva de uma maior densificação ou determinação normativa.”
Refere o mesmo Autor que “ a norma habilitante procura, em última análise, propiciar a realização ulterior de um equilíbrio entre os bens ou interesses conflituantes, o que obriga o legislador a uma abertura – seja no lado dos pressupostos de facto, seja no lado da estatuição ou na conjugação de ambos – capaz de permitir, consoante as circunstâncias concretas da colisão, soluções que dêem prevalência ora a um bem ora a outro, o que, para além de um mínimo de previsibilidade da responsabilidade do legislador, acaba por ser tarefa que, expressa ou implicitamente, o legislador deixa essencialmente dependente dos juízos de valoração e ponderação do intérprete/aplicador da norma restritiva.
Assim, apesar de as questões competenciais constituírem uma dimensão importante do processo de racionalização do recurso à metodologia da ponderação de bens no domínio da restrição dos direitos fundamentais não se pode, sem mais e com mero apoio na concepção clássica da reserva da lei, concluir que, aqui, tudo quanto haja a ponderar é tarefa do legislador, restando à Administração a mera execução das restrições previstas na lei.” (op. cit, p. 845)
Ora, na situação em análise, atendendo ao âmbito – objectivo e subjectivo - global de abrangência do regime jurídico da concorrência, tendencialmente transversal a todo o domínio económico, a exequibilidade técnica de uma densificação exaustiva do espaço normativo da lei habilitante da restrição seria difícil e traria o inevitável risco de conduzir a uma cristalização excessivamente inflexível, num domínio em que o ritmo de evolução – imposto pelas exigências de competitividade dos operadores económicos - exige maleabilidade e agilização dos instrumentos de regulação do Estado, sob pena de se comprometer a protecção do núcleo essencial do princípio da concorrência.
Neste contexto, considera-se que o grau de densidade normativa da lei restritiva é suficiente para legitimar a compressão do direito à não auto-incriminação, no âmbito contra-ordenacional em que nos situamos.
O argumento da recorrente, baseado na possibilidade de a autoridade administrativa se aproveitar de alguma indeterminação nos conceitos de “documento” ou “informações” para formular solicitações que correspondem, substancialmente, a perguntas susceptíveis de suscitar verdadeiras declarações confessórias do arguido - compreendidas no núcleo essencial e irrefragável do direito ao silêncio - não procede, quanto ao resultado de ditar a desconformidade constitucional da norma em apreciação.
Definir se as concretas solicitações da autoridade administrativa, em cada caso, se inserem ainda no âmbito de “documentos” ou “informações” que deixam incólume o direito ao silêncio do arguido, em processo contra-ordenacional, enquanto direito a não prestar declarações sobre os factos imputados ou se, nas suas casuísticas circunstâncias, correspondem a formas encapotadas de contornar tal limite, constitucionalmente imposto, é tarefa caracteristicamente incluída nas operações subsuntivas que determinam a aplicação do direito ao caso concreto, e que, nessa dimensão não normativa, se encontram subtraídas ao âmbito da fiscalização deste Tribunal Constitucional.
16. Realça-se ainda, face às alegações da recorrente, que a compreensão das instâncias internacionais, sobre o âmbito de protecção do direito à não auto-incriminação, no domínio da defesa da concorrência, igualmente admite restrições.
A título de exemplo, refira-se a tese jurisprudencial defendida no caso Orkem/Comissão, relativo à solicitação de informações a empresas, no âmbito de investigação referente a prática anti-concorrencial (Acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 1989, citado por Miguel Moura e Silva, “Direito da Concorrência: Uma introdução jurisprudencial”, Almedina, Março de 2008, p. 87-90):
“(…) O Regulamento n.º 17 não reconhece à empresa que seja objecto de uma medida de investigação qualquer direito de se furtar à execução dessa medida em virtude de o seu resultado poder fornecer a prova de uma infracção que cometeu às normas da concorrência. Pelo contrário, impõe uma obrigação de colaboração activa, que implica que ponha à disposição da Comissão todos os elementos de informação relativos ao objecto do inquérito.
(…) Assim, se para preservar o efeito útil dos n.ºs 2 e 5 do artigo 11.º do Regulamento n.º 17, a Comissão tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas as informações necessárias relativas aos factos de que possa ter conhecimento e, se necessário, os documentos correlativos que estejam na sua posse, mesmo que estes possam servir, em relação a ela ou a outra empresa, para comprovar a existência de um comportamento anticoncorrencial, já no entanto não pode, através de uma decisão de pedido de informações, prejudicar os direitos de defesa reconhecidos à empresa.
(…) Deste modo, a Comissão não pode impor à empresa a obrigação de fornecer respostas através das quais seja levada a admitir a existência da infracção, cuja prova cabe à Comissão.”
No âmbito do caso Comissão/ SGL Carbon e o., o Tribunal de Justiça defendeu o seguinte, após relembrar o teor do acórdão Orkem/Comissão (Acórdão de 29 de Junho de 2006, citado por Miguel Moura e Silva, op. cit., p. 99-100):
“ (…) a seguir ao acórdão Orkem/Comissão, (…) a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que o tribunal comunitário deve ter em conta para a sua interpretação dos direitos fundamentais, conheceu novos desenvolvimentos. Todavia, o Tribunal de Justiça indicou a este respeito que estes desenvolvimentos não eram de natureza a pôr em causa os princípios enunciados no referido acórdão Orkem/Comissão.
(…) Não decorre desta jurisprudência que os poderes de inquérito da Comissão tenham sido limitados no que respeita à apresentação de documentos que se encontrem na posse de uma empresa objecto de um inquérito. A empresa em causa deve, portanto, se a Comissão o pedir, fornecer-lhe os referidos documentos relacionados com o objecto do inquérito, mesmo podendo estes elementos ser utilizados pela Comissão a fim de estabelecer a existência de uma infracção.
(…) Com efeito, este dever de cooperação não permite que a empresa se furte aos pedidos de apresentação de documentos, invocando que, se lhes anuísse, se veria coagida a testemunhar contra si própria.
(…) Além disso, e como correctamente salientou o advogado-geral no n.º 67 das suas conclusões, sendo evidente que devem ser respeitados os direitos de defesa, a empresa em causa não deixa de poder, quer no quadro do procedimento administrativo quer no de um processo perante os órgãos jurisdicionais comunitários, sustentar que os documentos apresentados têm um significado diferente daquele que lhes deu a Comissão.”
17. Nos termos de tudo o exposto, conclui-se que a interpretação normativa em análise não comporta restrição inconstitucional do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, enquanto refracção das garantias processuais de defesa do arguido e do direito a um processo equitativo, no âmbito contra-ordenacional definido no regime jurídico da concorrência.
18. Passemos à análise da segunda questão, que a recorrente enuncia da seguinte forma:
“a inconstitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 51.°, n.° 1 da Lei n.° 18/2003, bem como a inconstitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 311.°, n.° 1 e 312.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 41.° do Regime Geral das Contra-Ordenações e artigo 51.°, n.° 1 da Lei n.° 18/2003, segundo a qual o arguido em processo de contra-ordenação não tem de ser notificado das contra-alegações da Autoridade da Concorrência e não pode responder a essas mesmas contra-alegações.”
Refere a recorrente que, na impugnação da decisão condenatória proferida pela autoridade da Concorrência, suscitou nulidades e questões prévias, relativamente a tal decisão.
A Autoridade da Concorrência, nas alegações – juntas nos termos do artigo 51.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho – pronunciou-se, além do mais, sobre as nulidades e questões prévias suscitadas, tendo o Tribunal proferido decisão, sem que a recorrente tenha sido notificada da peça processual aludida, apresentada pela Autoridade da Concorrência.
Notificada da decisão judicial, datada de 8 de Abril de 2008, a recorrente arguiu a sua nulidade, referindo ter suscitado a questão de constitucionalidade, que agora pretende ver dirimida pelo Tribunal Constitucional e que reporta como coincidindo com a interpretação adoptada na decisão recorrida: o despacho de 1 de Julho de 2008.
A recorrente baseia o seu juízo de inconstitucionalidade na violação dos princípios do contraditório e da igualdade de armas e dos direitos de audiência e defesa, consagrados nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.°, n.° 1, 2, 5 e 10, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Para fundamentar a sua posição, defende que o princípio do contraditório, no âmbito do processo penal e contra-ordenacional, exige que o arguido tenha a possibilidade de se pronunciar, não apenas sobre todos os actos ou questões que possam colidir com a sua defesa, mas igualmente que possa fazê-lo em último lugar.
Nesta sequência, conclui a recorrente que, mesmo que as alegações não apresentem nenhum argumento ou facto novo, deve ficar ao critério das partes o exercício da possibilidade de se pronunciarem ou não.
Vejamos se lhe assiste razão.
19. Em primeiro lugar, cumpre delimitar o exacto âmbito da questão a dirimir, que se reporta à circunstância de o regime legal não prever que o arguido seja notificado das alegações da Autoridade da Concorrência, juntas em resposta a uma impugnação judicial da decisão condenatória contra-ordenacional proferida por tal entidade.
É essa específica interpretação que é problematizada e que implicitamente decorre da decisão recorrida.
Na verdade, o despacho de 1 de Julho de 2008 assenta no pressuposto de que não decorre do ordenamento jurídico a obrigatoriedade de notificação das alegações, juntas pela Autoridade da Concorrência, ao abrigo do n.º 1 do artigo 51.º, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho.
Não se confunde esta questão – nos precisos termos delimitados – com a da necessidade de cumprimento do princípio do contraditório, quando, nas alegações, são inseridos novos factos constitutivos da infracção em causa ou considerações inovatórias, relevantes para a decisão final, não constantes da decisão administrativa condenatória e relativamente às quais o arguido não teve ainda possibilidade de se pronunciar. Tal dimensão está excluída do âmbito de apreciação da questão de constitucionalidade colocada, não tendo sido apreciada na decisão recorrida, podendo inferir-se que a respectiva situação fáctica não se verificava no caso concreto.
Centrada a discussão no simples facto de não estar prevista a notificação das alegações nem a possibilidade de apresentação de nova peça de “resposta”, por parte do arguido – só assim poderá entender-se o alegado direito de se pronunciar “em último lugar”, invocado pela recorrente, nesta sede – teremos de concluir que os argumentos aduzidos, para fundamentar o juízo de inconstitucionalidade, se encontram deslocados.
É que, quanto a este específico ponto, falha, desde logo, o argumento de paralelismo com a questão normativa tratada no âmbito do Acórdão n.º 54/87 deste Tribunal Constitucional.
O referido aresto declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, na parte em que ele estabelece a ordem de intervenção do extraditado e do Ministério Público, para alegações, por violação dos n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição.
Após salientar que o processo judicial de extradição contende, directamente, com a liberdade pessoal do extraditando, conclui pela sua natureza criminal e pela consequente aplicabilidade dos princípios constitucionais, em matéria de processo penal.
Com base na análise da tramitação processual – que confere ao Ministério Público o lado activo na promoção processual do pedido extraditivo – conclui, seguidamente – aderindo a jurisprudência anterior – que o ritmo dialéctico pressuposto pelo princípio do contraditório é alterado pela inversão da ordem das posições processuais – quanto à apresentação de alegações – determinada pelo n.º 2 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, em violação dos n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da CRP.
Ora, é exactamente o equilíbrio do ritmo dialéctico pressuposto pelo princípio do contraditório que, na situação em análise nestes autos, desaconselharia a admissibilidade de nova oportunidade processual de o arguido se pronunciar, como melhor veremos.
20. Relembre-se, a este propósito, que a imposição constitucional expressa do cumprimento do princípio do contraditório se reporta, mesmo em processo criminal, à audiência de julgamento.
Tal significa que – sem prejuízo de se entender que tal princípio deve enformar o direito processual em geral, como refracção do direito de acesso à justiça – é na audiência de julgamento, em processo criminal, que a observância do contraditório assume a sua máxima expressão, tendo assim todo o sentido que seja assegurado ao Defensor o direito de alegar oralmente, em último lugar, e ao próprio arguido o direito de ser ouvido, após as alegações, em tudo o que se reportar à sua defesa (cfr. artigos 360.º, n.º 1, e 361.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal).
Excluída a audiência de julgamento, nas restantes fases processuais é reconhecida ao legislador uma “margem de liberdade suficiente para plasticizar o contraditório” (cfr. Acórdão n.º 278/99, deste Tribunal Constitucional), devendo a aferição do respeito pelas garantias de defesa ser perspectivada, encarando globalmente o processo e não atomisticamente cada uma das suas fases (cfr. ainda Acórdão n.º 339/2005).
A margem de liberdade na conformação legislativa do princípio do contraditório é acrescida – em relação ao processo penal – no âmbito do processo contra-ordenacional, como se conclui no já referido aresto n.º 278/99, porquanto “a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o às mais “rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal” (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, “Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol, XXXVII 2, 1996, pág. 564), o que não deixará de se reflectir no âmbito do contraditório.”
21. Reiteramos, porém, que a discussão sobre a violação do princípio do contraditório – mesmo na vertente mais exigente de conferir ao arguido o direito a pronunciar-se em último lugar – se encontra deslocada, na lógica argumentativa da recorrente.
Na verdade, tendo a recorrente suscitado nulidades e questões prévias, na impugnação judicial da decisão condenatória contra-ordenacional, as alegações da Autoridade da Concorrência, incluindo a resposta a tais questões suscitadas, correspondem ao exercício do princípio do contraditório – como conclui a decisão recorrida – consubstanciando o “fecho da dialéctica” sobre a questão, utilizando a expressão do Acórdão n.º 255/2003.
Poderemos encontrar algum paralelismo da situação aqui tratada com a que é pressuposta no Acórdão n.º 568/01.
Neste último aresto, envolvendo um requerimento apresentado pelo recorrente, pretendendo a declaração de extinção do procedimento criminal, coloca-se a questão de saber se a não notificação do parecer do Ministério Público – que, no exercício do seu direito ao contraditório, manifesta a sua discordância à procedência da pretensão formulada – contende com o disposto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP.
Refere o Acórdão - resolvendo a questão no sentido da improcedência do juízo de inconstitucionalidade - que o exercício do direito ao contraditório, numa lógica de equilíbrio entre as partes, se encontrava desvirtuado se, após a vista ao Ministério Público, se concedesse ao arguido nova possibilidade de se pronunciar sobre a questão que ele próprio suscitara.
Também na presente situação se justifica chamar a atenção para o “artificialismo” da tese da recorrente, que impediria que a Autoridade da Concorrência exercesse o contraditório sobre a arguição de vícios e questões prévias, obrigando sempre a uma inútil e absurda “réplica” do arguido sobre a posição assumida relativamente a questão pelo mesmo suscitada.
De facto, relativamente à “resposta” da Autoridade da Concorrência, quanto aos vícios e questões prévias suscitadas pela recorrente – e é, relembre-se, quanto a esse específico ponto que a questão é suscitada e tratada na decisão recorrida – as alegações apresentadas consubstanciam o elo final da contraposição dialéctica de argumentos entre a parte que veio arguir os vícios (recorrente) e a autoridade administrativa, cuja posição é atingida por aquela arguição.
Conclui-se, desta forma, que não existe qualquer colisão com os princípios do contraditório, da igualdade de armas ou com os direitos de audiência e defesa da recorrente, na qualidade de arguida em processo contra-ordenacional.
Na verdade, de nenhuma forma, a não notificação das alegações da Autoridade da Concorrência – contendo resposta a questões prévias invocadas pela própria arguida/recorrente – acarreta qualquer conflito com os direitos de audiência e defesa da recorrente, não entrando no âmbito de protecção pelos mesmos delimitado – que não abarca a protecção do arguido a ponto de lhe conferir a possibilidade de apresentar a última peça processual, antes da prolação do despacho proferido nos termos dos artigos 311.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro) e 49.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho – nem, por maioria de razão, com os princípios do contraditório e de igualdade de armas, cuja violação poderia ser problematizada, com maior pertinência, na situação inversa de conferir ao arguido a possibilidade de “responder” à “resposta” da Autoridade da Concorrência sobre as questões prévias pelo mesmo suscitadas.
Improcede, assim, o recurso igualmente quanto à segunda questão formulada pela recorrente.
III – Decisão
22. Pelo exposto, decide-se:
- julgar não inconstitucional a interpretação normativa que resulta da conjugação dos artigos l7.º, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido de obrigar o Arguido, em processo contra-ordenacional, a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, informações e documentos à Autoridade da Concorrência;
- julgar não inconstitucional a norma que resulta da interpretação do artigo 51.°, n.° 1, da Lei n.° 18/2003, bem como da interpretação do artigo 311.°, n.° 1 e 312.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 41.° do Regime Geral das Contra-Ordenações, e artigo 51.°, n.° 1 da Lei n.° 18/2003, segundo a qual o arguido em processo de contra-ordenação não tem de ser notificado das contra-alegações da Autoridade da Concorrência e não pode responder a essas mesmas contra-alegações;
Assim, se julgando improcedentes os recursos em apreciação.
Custas pela recorrente A., Lda., fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 11 de Outubro de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.