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Processo n.º 397/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. foi definitivamente condenado, por decisão confirmada por acórdão de 25 de Maio de 2005 do Supremo Tribunal de Justiça, numa pena única de três anos de prisão, suspensa na execução pelo período de cinco anos, sob condição de pagar uma indemnização à assistente. Por despacho de 28 de Fevereiro de 2008 da 5.ª Vara Criminal de Lisboa, com fundamento no incumprimento da condição imposta, foi revogada aquela suspensão e determinado o cumprimento da pena de prisão. Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual negou provimento ao mesmo, mantendo, na íntegra, o despacho recorrido. Ainda inconformado, veio arguir a nulidade do acórdão daquele Tribunal por omissão de pronúncia, invocando requerer a “aclaração e reforma do acórdão, bem como, arguir inconstitucionalidades”. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 15 de Abril de 2010, decidiu julgar “improcedente a arguida nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia”.
2. Notificado deste acórdão, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, não tendo o recurso sido admitido, por aplicação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal. Inconformado, reclamou para o Presidente do STJ, que julgou a reclamação improcedente. Apresentou então recurso para o Tribunal Constitucional, o qual, após diversas vicissitudes foi alvo de decisão sumária de não conhecimento, por o recorrente não ter suscitado adequadamente, perante o tribunal recorrido, a questão de constitucionalidade, decisão esta que viria a ser confirmada pelo Acórdão n.º 127/2011, de 3 de Março.
3. Notificado do citado Acórdão n.º127/2011, veio o ora reclamante apresentar recurso para este Tribunal, através do seguinte requerimento:
“[…] vem pelo presente no prazo previsto no art.º 75.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional e ao abrigo do disposto no art.º 70.º, n.º 1, alínea b), da mesma Lei, deduzir RECURSO DE INCONSTITUCIONALIDADE, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
[...]
Inconstitucionalidades que se argúem e que se recorre:
I. É inconstitucional o entendimento professado, que não atribui qualquer relevância à insolvência supervenientemente decretada, a qual fez extinguir a dívida a que o recorrente fora condenado a pagar ao assistente, elevada a condição da suspensão da execução da pena, por violação dos art.°s 27º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa […].
II. […] Estamos também perante a violação do art.º 27º, nº1 da CRP, em consonância com o previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos direitos do Homem e perante uma situação de prisão por dívidas, que viola os princípios da necessidade das restrições dos direitos fundamentais, designadamente, da pena (artigo 18, n.º 2) e da culpa (decorrente da dignidade da pessoa humana) (…) e da proporcionalidade num Estado de Direito Democrático.
Se a prisão por dívidas é inconstitucional, muito mais o será quando já não há dívida, pois não se pode obrigar alguém a pagar uma dívida quando ela já não existe, prendendo-o.”
4. Admitido o recurso no Tribunal da Relação de Lisboa, foi, já no Tribunal Constitucional, proferido despacho ordenando a notificação do recorrente “para indicar qual a decisão de que efectivamente recorre, bem como, em termos claros, precisos e concisos, qual a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, de tal modo que, se este Tribunal a vier a julgar desconforme com a Constituição, a possa enunciar claramente na decisão que proferir”. Em resposta, veio o recorrente apresentar um documento de oito páginas de que se retira o seguinte conteúdo pertinente:
“[…] I. Temos então como objecto do presente recurso de inconstitucionalidade, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26/11/2009, completada com a decisão de 15/4/2010, a qual incidiu sobre o pedido de aclaração, reforma e arguição de inconstitucionalidades, sendo que esta última se integra na primeira e constituem uma única, pelo é que dessa decisão única que se recorre no presente recurso;
Quanto à norma jurídica ou dimensão normativa:
Escreveu-se no Acórdão proferido após a arguição das nulidades, reforma e aclaração.
“Mas mesmo que tal questão pudesse ser apreciada em sede de recurso, sempre diremos que a insolvência do Recorrente não punha em causa a subsistência do dever que lhe foi imposto como condição da suspensão, não havendo qualquer inconstitucionalidade nessa subsistência. “
[...] A dimensão normativa em causa, parece-nos a seguinte:
I. É inconstitucional por violação dos art.°s 27° n. °s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa em consonância com o previsto no artigo 1° do Protocolo n° 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem a interpretação do art.º 56° n° 2 do Código Penal, que não admite a cessação da revogação da suspensão da execução da pena: e o correlativo não cumprimento da pena, quando após a mesma revogação, a divida da indemnização cível a que um arguido foi condenado foi extinta, por decretação da insolvência qualificada fortuita do arguido.
II. É também inconstitucional a interpretação do art.º 56. ° n.° 2 do Código penal, por violação dos art°s 27°, n.°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, em consonância com o previsto no artigo 1 do Protocolo n° 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos, que obriga ao cumprimento da prisão por um arguido, que foi entretanto declarado insolvente, por insolvência, qualificada de fortuita, não admitindo e reconhecendo por esse motivo a extinção da compensação a que o mesmo foi sujeito enquanto condição de suspensão da execução da pena.
III. Destarte, é também inconstitucional o entendimento interpretativo da condição descrita na alínea a), do n.° 1, do art.º 51° do Código Penal, qualificando-a como uma compensação, por violação por violação dos art.°s 27°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa e do “princípio de protecção de segurança, ínsita no princípio do Estado de Direito.”
Por último e com todo o respeito,
IV. É inconstitucional o entendimento ilimitado do princípio da independência dos Juízes, decorrente do princípio da independência dos Tribunais previsto no art.º 203.° da C.R.P. quando interpretado no sentido de, um Juiz não estar obrigado a corrigir um erro evidente na apreciação da matéria de facto, nem a fixá-la por factos supervenientes relevantes em matéria de direitos, liberdades e garantias, pois os juízes devem apreciar os casos de forma equilibrada, o qual constitui o dever no reverso do direito a uma decisão equitativa inserida num Estado de Direito Democrático. Na verdade, ao escolher-se o caminho do desvirtuamento de uma realidade factual, está-se também a impedir a concretização de “Justiça”, além de se inibir na prática o direito ao recurso por inconstitucionalidade.
5. Na sequência, foi proferida pelo relator, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, decisão sumária de não conhecimento do recurso. É o seguinte, na parte agora relevante, o respectivo teor:
“[...] Em primeiro lugar, cumpre notar que o recorrente define a decisão recorrida como sendo “a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/11/2009, completada com a decisão de 15/4/2010, a qual incidiu sobre o pedido de aclaração, reforma e arguição de inconstitucionalidades, sendo que esta última se integra na primeira e constituem uma única, pelo que é dessa decisão única que se recorre no presente recurso”. Tal objecto é, porém, para efeitos de fiscalização concreta da constitucionalidade, impossível. Na verdade, os dois acórdãos aludidos constituem duas decisões distintas, autónomas, com objectos diversos, e aplicando normas diversas como ratio decidendi, não constituindo uma decisão única. Assim, limitando-se o segundo dos citados arestos, proferido em 15.04.2010, a julgar “improcedente a arguida nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia”, não aplicou nenhuma das normas questionadas pelo recorrente como sua razão de decidir. O que inviabiliza o conhecimento do objecto do recurso quanto a este aresto.
[…] Resta, então, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Novembro de 2009. Mas também em relação a este é patente a impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso. E isto porque, desde logo, o recorrente não suscitou, perante aquele Tribunal, antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita, ou seja, antes da prolação da decisão recorrida, como exige o n.º 2 do artigo 72º da LTC, qualquer questão de constitucionalidade normativa que lhe pudesse abrir via de recurso para este Tribunal. Sendo, no caso, obviamente desprovida de qualquer pertinência a invocação de tais inconstitucionalidades em incidente pós-decisório, pelo que forçoso se torna concluir pela impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso.
6. Inconformado, o recorrente reclama para a Conferência, afirmando, no essencial:
“[…] 5. […]. o Tribunal da Relação de Lisboa por decisão de 15.04.2010 julgou improcedente o pedido de aclaração, reforma e arguição de inconstitucionalidades formulado pelo Recorrente;
6. Contrariamente à doutrina plasmada na decisão sumária proferida, o poder jurisdicional do Tribunal da Relação de Lisboa apenas se esgotou no momento em que este se pronunciou sobre os pedidos de aclaração, reforma e inconstitucionalidade formulados pelo Recorrente nos termos do disposto no art.º.668.° e 669.° do C.P.C.;
7. O poder jurisdicional esgota-se em momento subsequente à prolação da decisão, permitindo ao julgador, através da alteração do decidido, a realização da justiça material, ainda que com o sacrifício do princípio da imutabilidade das decisões;
8. Tal decisão apreciou a questão da constitucionalidade normativa suscitada pelo Recorrente durante o processo assumindo a interpretação normativa que o Recorrente pretende ver fiscalizada;
9 De acordo com a referida decisão e a propósito do conhecimento da nulidade por omissão de pronúncia’ arguida pelo Recorrente: “Sempre diremos que a insolvência do Recorrente não punha em causa a subsistência do dever que lhe foi imposto como condição da suspensão, não havendo qualquer inconstitucionalidade nessa subsistência;
10. Deste modo, tal decisão aplicou, ainda que implicitamente, a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, cabendo de tal decisão recurso para o Tribunal Constitucional nos termos do disposto no art. 70.° n.° 1 b) e 72.° n°2 da LOFPTC;
12. Sem prejuízo do acima exposto, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Novembro de 2009, ao julgar improcedente o recurso e ao confirmar o despacho recorrido, nos termos do qual o não cumprimento da sanção imposta conduz inelutavelmente à revogação suspensão da execução da pena de prisão, procedeu à aplicação da norma constante do art. 56.° n.° 1 do Código Penal com a dimensão normativa reputada inconstitucional pelo Recorrente.
15. Face ao exposto padece de ilegalidade por violação dos arts 70° e 72º da LOFPTC a decisão sumária que, ao entender que a questão da constitucionalidade normativa não foi suscitada perante o Tribunal da Relação de Lisboa, não conheceu do objecto do recurso.”
7. Notificado, o Ministério Público reclamado sustentou que “o reclamante confirma que apenas suscitou a questão de constitucionalidade em sede de arguição de nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação, sendo que esse não é já o momento oportuno para o efeito, conforme vem decidindo o Tribunal Constitucional, sendo ainda que mesmo naquela peça processual a questão de inconstitucionalidade normativa não foi devidamente suscitada, limitando-se o recorrente a invocar a violação dos artigos 27.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 da CRP por ninguém poder ser privado da sua liberdade por não cumprir uma obrigação contratual e ser condenado em prisão por dívidas.” A reclamada Clínica de Santa Maria de Belém, SA não contra-alegou.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
8. A decisão reclamada constatou a impossibilidade de conhecimento do recurso, já que o segundo dos acórdãos identificados pelo ora reclamante não aplicou nenhuma das normas que o mesmo reputa violadoras da Constituição e também porque, quanto ao primeiro acórdão, o ora reclamante não colocou ao Tribunal a quo, antes de proferida a decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade normativa que este fosse obrigado a conhecer, uma vez que quando alegadamente o fez já o poder jurisdicional daquele se havia esgotado. Ora, o reclamante não aduz, na reclamação ora apresentada, qualquer argumento que permita abalar os fundamentos da decisão sumária de que reclama. De facto, o reclamante não tem razão quando refere que o Tribunal a quo apenas esgotou o seu poder jurisdicional na matéria com a prolação do acórdão que conheceu do pedido de nulidade. De facto, nesta última decisão, não tendo procedido o pedido e não tendo havido lugar a aplicação, como ratio decidendi, de outras normas que não as relativas à própria nulidade, o objecto decisório resume-se ao conhecimento dessa arguição da nulidade. E, sendo assim, como indubitavelmente o é, não pode esse incidente pós-decisório (ou qualquer outro, como seja o pedido de aclaração ou de reforma) ser considerado momento adequado para suscitar, pela primeira vez, qualquer questão de constitucionalidade respeitante à matéria da causa e às normas aplicadas na sua decisão, conforme é jurisprudência pacífica e constante deste Tribunal (vide, entre muitos outros, os Acórdãos n.°s 264/2007 e 533/2007).
É, assim, evidente o não preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 22 de Setembro de 2011. – Gil Galvão – José Borges Soeiro – Rui Manuel Moura Ramos.