Imprimir acórdão
Processo n.º 100/11
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. recorrido Serviços Sociais da Guarda Nacional Republicana, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 25 de Novembro de 2010.
2. O recorrente intentou acção declarativa contra o recorrido, pedindo que este fosse condenado a reconhecer-lhe o direito à transmissão, por morte, de contrato de arrendamento celebrado em Abril de 1966, em que figurava como arrendatário o pai do autor. A acção foi julgada improcedente. Foi, então, interposto recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que acordou em “julgar improcedente o recurso de apelação (…) e, nessa medida, confirmar o saneador/sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância”.
Da discussão da causa em 1.ª instância resultaram provados, entre outros, os seguintes factos:
a) Em Abril de 1966, os Serviços Sociais da Guarda Nacional Republicana atribuíram uma fracção a B. título de arrendamento;
b) À data da morte de B. 1/02/2005), este vivia com a mulher, C. com o filho, A.
c) C., mãe do recorrente, faleceu no dia 10/02/2008.
Na parte relevante para a apreciação do presente recurso, importa transcrever o seguinte do acórdão recorrido:
«B3 – INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 57.º DA LEI N.º 6/2006 DE 27/02
É claro que o recorrente pugna pela inconstitucionalidade de tal regime legal, por violação dos princípios da confiança e da igualdade dimanados pelos art.ºs 2.º, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.
Entende que era titular de legítimas expectativas, incutidas pelo anterior regime legal (artigos 85.º, número 1, alínea b) do RAU e 1111.º do Código Civil, sendo que actualmente, no quadro do NRAU, esse mesmo instituto acha-se regulado pelo artigo 1106.º do Código Civil), que lhe garantiam, com o falecimento de sua mãe, a aquisição, em virtude de nova transmissão da respectiva posição locatícia, do vínculo jurídico respectivo.
Compreende-se a indignação do recorrente, derivada da modificação substancial do enquadramento jurídico do instituto em discussão, mas será que tal alteração, ainda que severa (nas palavras dos anotadores acima transcritos) ou acentuada, pode ser configurada como uma inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da confiança e segurança jurídicas e da igualdade?
O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27/05/2010, acima citado sustenta, em termos de Sumário, que “III – Tais normas transitárias não padecem de inconstitucionalidade material”, fundando na seguinte argumentação tal juízo de valor:
«E haverá nesta disciplina normativa alguma inconstitucionalidade material, nomeadamente por ofensa aos princípios constitucionais da igualdade e da legalidade (art.º 13.º da CRP), da irretroactividade restritiva de direitos (art.º 18.º, n.º 3, da CRP) e da democraticidade económico-social (art.ºs 2.º e 3.º, n.º 3, da CRP)?
Cremos que não. Vejamos:
A actividade legislativa na área do arrendamento urbano sempre procurou dirimir a tensão originada por interesses sócio-económicos em grande medida afins e antagónicos, como são os dos senhorios – interessados, por via de regra, em não perpetuar contratos de locação antigos e com rendas reduzidas, por haverem sofrido, entretanto, a erosão da moeda e ficado desactualizadas – e os dos arrendatários ou inquilinos, interessados, por sua vez, em manter a sua habitação ao menor custo, por vezes de oferta escassa (sobretudo nos grandes centros urbanos) e a exigir-lhes incomportáveis despesas no respectivo agregado familiar – cfr. a evolução legislativa sobre o arrendamento após o final da Grande Guerra de 1914-1918, nas notas preambulares do Decreto-Lei n.º 321-3/90, de 15/10, que aprovou o RAU.
Apesar de o legislador do NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27/02) se não ter alargado, desta vez, em considerações preambulares de molde a esclarecer-nos melhor sobre os seus desígnios, sempre foi dizendo, no “cabeçalho do diploma» que “... estabelece um regime especial de actualização das rendas antigas...», denunciando, de certo modo, que o Novo Regime do Arrendamento Urbano foi, essencialmente, sensível à problemática das rendas antigas, obviamente referentes a contratos de arrendamento antigos, que se terão certamente perpetuado, em muitos casos por efeito da transmissão do contrato por morte dos respectivos arrendatários. Se foi esta a principal razão de ser do NRAU – como julgamos que foi – já se compreende melhor o regime transitório dos art.ºs 57.º e 58.º, para os contratos celebrados durante ou antes da vigência do RAU. Muitos deles certamente muito antigos – caducarão se a morte dos respectivos arrendatários já ocorrer na vigência do actual NRAU e os potenciais arrendatários – como a ora Apelante – se não encontrarem nas situações concretas previstas nas alíneas d) e e) do n.º 1, do art.º 57.º, acima melhor explicitadas, normalmente relacionadas com situações de carência e amparo social, pela tenra idade e formação académica dos que viviam com o arrendatário falecido, ou por significativo grau de incapacidade física dos mesmos.
Claro que por via dessa caducidade, já os novos contratos de arrendamento que se efectuarem sobre o mesmo locado terão as respectivas rendas actualizadas (a contento dos senhorios), mesmo que com sacrifício das expectativas que alguns potenciais transmissários pudessem acalentar num passado recente, enquanto não se deu esta inflexão legislativa que conduziu à caducidade. Por isso, não admirará que, de futuro (com a celebração dos contratos de arrendamento na vigência do NRAU), já se lhes volte a aplicar o disposto no art.º 1106.º do Código Civil, retomando, assim, praticamente, a disciplina que anteriormente se seguia quanto à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário no que concerne à pessoa que com este residisse em economia comum há mais de um ano.
Com a criação das aludidas normas transitórias (dos art.ºs 57.º e 58.º), o legislador fez opções legislativas em função dos interesses sócio-económicos que pretendeu salvaguardar, atingindo com as suas prescrições, de forma generalizada e abstracta, um número indefinido de destinatários, supostamente os que se encontrem nas circunstâncias que definiu, sem ter criado, dentre eles, qualquer discriminação ou desigualdade injustificada. Como tem vindo a dizer o Tribunal Constitucional, em inúmeros Acórdãos, o principio da igualdade não proíbe, em absoluto, as distinções, mas apenas aquelas que se afigurem destituídas de um fundamento racional, e, no essencial, o que ele impõe é uma proibição do arbítrio e da discriminação sem razão atendível, postulando que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diferente para situações de facto desiguais – cfr, entre muitos outros, os seus Acórdãos nºs 195/07, de 14/03/2007, 210/07, de 21/03/2007, 254/07, de 30/03/2007, in, respectivamente, págs. 421, 537 e 883, do 68.º Volume da Colectânea de Acórdãos do Tribunal Constitucional.
Ora, pelos motivos já anteriormente aflorados, não vemos que aquelas normas transitórias sejam destituídas de fundamento justificativo e racional, que as torne incompreensivelmente desiguais para com determinados destinatários, mesmo que se saiba que algum tempo antes o regime da transmissão do arrendamento por morte do arrendatário fosse outro e, no seu contexto (se a morte da mãe da Apelante tivesse ocorrido na sua vigência) já à Recorrente assistisse o direito a suceder no arrendamento. Mas esta é a “fatalidade” de toda e qualquer lei com o início e cessação da sua vigência; mesmo que vigore para futuro, pode fazer nascer, restringir ou extinguir direitos, contanto que essa restrição ou extinção se não verifique pelo efeito retroactivo da sua aplicação – art.º 18.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Na hipótese em análise, aquelas normas transitórias não restringiram ou extinguiram qualquer direito da Autora, pelo simples facto de esta aquando da entrada em vigor das mesmas (Lei n.º 6/2006) ainda não ter qualquer direito a suceder no arrendamento, que só poderia nascer com o decesso da então arrendatária.
Assim, não se verifica qualquer inconstitucionalidade. Nem mesmo por violação dos princípios constantes dos art.ºs 2.º e 3.º da Constituição, relacionados com a realização da democracia económica, social e cultural no Estado de Direito, pois que o legislador ordinário nada mais fez que, ao criar tais normas transitórias, arbitrar, como já se disse, interesses e valores sócio-económicos, relacionados com a protecção da habitação e do direito de propriedade (art.ºs 62.º e 65.º da Constituição) que são próprios de uma comunidade organizada e de um Estado de Direito.” (da pesquisa que fizemos, só encontrámos um Acórdão do Tribunal Constitucional sobre a questão da constitucionalidade do regime transitório aqui em análise, muito embora o faça de uma forma parcial, sucinta e indirecta: Aresto de 12/10/2010, com o n.º 385/2010, em que foi relator José Borges Soeiro e que se mostra publicado na jurisprudência da página oficial do respectivo Tribunal).
Pensamos que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto aborda correctamente a matéria que aqui reclama a nossa atenção, pois, no cenário complexo do arrendamento para habitação, não são só as expectativas dos actuais inquilinos e das pessoas que com elas convivem no locado que importa considerar, mas também os direitos e expectativas dos senhorios e/ou proprietários que, frequentemente, saíram total ou parcialmente gorados, devido à excessiva (e, muitas vezes, abusiva, pelo enorme desequilíbrio que se gerava ao longo dos anos entre as correspectivas prestações – renda e gozo do espaço arrendado) estagnação do substrato contratual, com a manutenção do negociado muito para além do exigível e razoável.
Esse investimento (convirá não esquecer que para os donos dos imóveis, trata-se, essencialmente, de um negócio que visa a obtenção de um rendimento líquido positivo e satisfatório) que se frustrava pela falta de renovação dos contratos locatícios, dos arrendatários e das rendas correspondentes, por força, designadamente, do quadro legal fortemente protector do inquilino (que embora sendo parte mais fraca, acabava, em função do mesmo, por pagar um valor muito inferior ao benefício usufruído, exigindo, para além disso, obras de reparação e manutenção, que não eram minimamente comportáveis para o senhorio), gerou enormes perversões, quer ao nível da conservação desse património imobiliário, quer no plano do estrangulamento do mercado de arrendamento e do alargamento, anárquico e insensato, do mercado da construção e venda de habitação, quer, finalmente, na forma como o país, durante as últimas décadas se foi construindo, designadamente, nas vertentes do ordenamento do território, das actividades económicas e mercados que se desenvolveram, da distribuição da população activa, com os inevitáveis reflexos pessoais, familiares e sociais para os cidadãos envolvidos, do financiamento bancário e do crédito hipotecário e mal parado e das opções e decisões políticas e legislativas sobre o sector imobiliário.
Logo, colocar a tónica essencial da inconstitucionalidade nas expectativas dos potenciais futuros inquilinos, ao mesmo tempo que se esquece todas as demais expectativas e facetas presentes, é não perspectivar devida e correctamente a realidade armadilhada, contraditória e retorcida que temos perante nós.
Não convirá, aliás, olvidar que, como dizem os anotadores acima citados, o novo regime legal, apesar de fazer pender um pouco mais a balança para o lado dos senhorios, veio, para os arrendamentos pretéritos, a arredar obstáculos anteriormente existentes e a permitir mesmo um número de transmissões que o regime antigo não consentia, criando novos equilíbrios e dimensões contratuais.
Finalmente, importa recordar que esta matéria, especificamente, tem sido alvo de diversas intervenções legislativas, que têm modificado o seu conteúdo, sentido e alcance, bastando atentar nas alterações introduzidas no artigo 1111.º do Código Civil (Decretos-lei n.ºs 293/7, de 20/07, 328/81, de 4/12 e 46/85, de 20/09); que depois veio a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 321- B/90, de 15/10).
Numa outra perspectiva, em contratos constituídos no final da vigência do RAU ou em que tenha ocorrido uma primeira transmissão para o cônjuge sobrevivo, será defensável, em nome das referidas expectativas jurídicas, sustentar ainda a inconstitucionalidade do regime transitório ou definitivo em causa e a licitude de uma outra transmissão, daqui a vinte, trinta ou mais anos, com o óbito do primitivo arrendatário ou de quem lhe sucedeu?
O Acórdão n.º 287/90 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, I Série, de 20 de Fevereiro de 1991 (cujo excerto e comentários ao mesmo, aqui transcritos, constam do Acórdão do mesmo Tribunal, de 19/12/2007 e com o número 615/07, em que foi relatora Ana Guerra Martins, que pode ser encontrado na Jurisprudência desse tribunal, na sua página oficial, na Internet), a propósito das expectativas jurídicas e da sua protecção constitucional, refere o seguinte:
“Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que “apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o principio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/83, de 12 de Outubro de 1982, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º Vol., pp. 11 e segs; no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissão Constitucional, no Acórdão n.º 463, de 13 de Janeiro de 1983, publicado no Apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983, p. 133 e no Boletim do Ministério da Justiça, n. 314, p. 141, e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional, designadamente através dos Acórdãos nºs. 17/84 e 86/84, publicados nos 2.º e 4.º Vols. dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, a pp. 375 e segs. e 81 e segs., respectivamente)”
E no mesmo Acórdão n.º 287/90, transcrito depois no Acórdão n.º 285/92, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Agosto de 1992, salientou-se que, depois de se apurar se foram afectadas expectativas legitimamente fundadas, resta averiguar se essa afectação é inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa. A “ideia geral de inadmissibilidade” deverá ser aferida pelo recurso a dois critérios:
«a) Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição desde a 1.ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.” (...)
Resta, porém, saber se tais expectativas eram legítimas, no sentido de merecerem a tutela do Direito, ou se o legislador acautelou a possibilidade de formação de tais expectativas, advertindo os destinatários da impossibilidade de se fixar um dado regime da aposentação antes de certo momento.
Na verdade, a impossibilidade de previsão de uma mudança só frustraria expectativas legítimas dos destinatários da norma em causa se estes não devessem razoavelmente contar com a possibilidade da mudança...
Não parece, assim, desde logo, que se possa dizer que a alteração em causa afectou expectativas legitimas dos destinatários da norma, sendo seguro que, ainda que assim não fosse, não se poderia dizer que a alteração legislativa em causa constituísse uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas não pudessem contar – justamente, por, como o legislador esclareceu já no artigo 43.º do Estatuto da Aposentação, deverem contar com mutações do regime da aposentação (em sentido favorável ou desfavorável, embora, evidentemente, sem poderem adivinhar o sentido preciso dessas mutações) até à data em que se verifiquem os pressupostos que dão origem à aposentação.
[...]
Saliente-se ainda que, como já se referiu - na sequência da jurisprudência anterior deste Tribunal -, mesmo a eficácia retroactiva da lei só será inadmissível quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes, devendo recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18º da Constituição desde a ia revisão.
E deve dizer-se, quanto à motivação da mutação legislativa de 1993, que, objectivamente, ela não deve desligar-se da situação da evolução de receitas e despesas da segurança social. Como é notório, o prolongamento da esperança de vida, a alteração da relação entre pensionistas e contribuintes para o regime e a fixação de pensões de aposentação bastante elevadas ameaçam de ruptura o regime de segurança social, sendo compreensíveis a introdução de reformas que limitem os gastos e aumentem as receitas. Por outro lado, sabe-se que a medida em causa foi igualmente ditada por razões de proporcionalidade e de harmonização das retribuições pagas pelo Estado, afectando também todos os seus trabalhadores no activo, incluindo titulares de órgãos de soberania.
[...]. Conclui-se, assim, que nem as expectativas legítimas do recorrente podem ter sido afectadas de forma inadmissível ou arbitrária pela norma em apreço, nem essa afectação nem a evolução legislativa deixou de se fundar na necessidade de salvaguardar direitos e interesses constitucionalmente protegidos e prevalentes.
Como concluía o Acórdão n.º 287/90 (e o Acórdão n.º 285/92 repetiu):
«Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime de casamento, de arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes.” (itálico aditado)».” (Acórdão n.º 99/99, de 10 de Fevereiro de 1999, publicado in «Diário da República», II.ª Série, n.º 76, de 31 de Março).” (cf., também, o Acórdão do Tribunal Constitucional, publicado no mesmo local, datado de 1/07/2008, com o número 343/08 e em que foi relator José Borges Soeiro e outra jurisprudência indicada em tais Arestos).
Tendo como pano de fundo tal doutrina do Tribunal Constitucional, afigura-se-nos que os demais direitos e interesses, de natureza privada e colectiva, prevalecem, necessariamente, sobre as expectativas dos potenciais inquilinos, como o Autor, não se assistindo, nessa medida, uma alteração legal desproporcionada, arbitrária, injustificada e discriminatória no que concerne ao novo regime de transmissão da posição contratual por morte do arrendatário (quer no que concerne ao regime transitório - artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 - ou definitivo – artigo 1106.º do Código Civil).
Numa época de transição e crise, em que os próprios direitos adquiridos são chão que cada vez dá menos uvas, estranho seria que as meras expectativas jurídicas beneficiassem de uma garantia superior às de que aqueles usufruem.
Sendo assim e pelos motivos expostos, o presente recurso de Apelação tem de ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.»
4. Deste acórdão foi interposto o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade do artigo 57.º, n.º 1, alíneas d) e e), da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, por violação dos princípios da confiança e da igualdade (artigos 2.º, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa).
5. Notificado para alegar, o recorrente produziu as seguintes conclusões:
«1.ª
O artigo 26.º e 57.º da Lei 6/2006 no TÍTULO II – Normas Transitórias - CAPITULO I – “Contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, não deve ser aplicado ao contrato de arrendamento dos autos sob pena de se estar perante a violação da Constituição da República Portuguesa.
2.ª
Aos contratos celebrados antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, estão submetidos ao artigo 26º, conforme estipula o disposto no artigo 28.º da Lei 6/2006. Como o contrato em discussão in casu foi celebrado em Abril de 1966, aplica-se ao mesmo o artigo 26.º da Lei 6/2006, e consequentemente na “transmissão por morte” o disposto no artigo 57.º.
3.ª
À transmissão por morte dos contratos de arrendamento encontra-se regulada no nosso ordenamento jurídico desde 25 de Novembro de 1966 (Decreto Lei 47 344), e se verificarmos as sucessivas leis que têm sido aplicadas ao contrato de arrendamento referido nesta p.i concluímos: - “O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha recta, com menos de 1 ano ou que com ele vivessem a pelo menos um ano (...)” – artigo 1111.º do CC com redacção dos Decretos-leis 293/77, 328/81 e Lei 46/85.
4.ª
Com a entrada em Vigor do RAU (artigo 85.º e respectivas alterações) “O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: - Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano,
5.ª
O legislador sempre acautelou e teve em conta na estipulação e alteração das leis do arrendamento urbano, o facto de poder haver filhos que viviam com os pais (em economia comum ou não) pelo que sempre acautelou que o contrato de arrendamento para habitação não caducaria por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, desde que a qualquer uma dessas pessoas individuais lhe sobrevivessem descendente (parentes na linha recta) com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e/ou desde que vivessem em economia comum.
6.ª
E voltou a ter essa preocupação na regulamentação do NRAU (não sem antes dar uma machadada no regime anterior), pois facilmente se conclui da interpretação do artigo 1106.º do CC. que o legislador quis acautelar a situação dos parentes em linha recta (filhos netos e pais ...) – e a estes familiares que o preceito se destina quando se fere a”parente mais próximo”, e, mesmo que assim não se entenda, os filhos terão sempre direito ao arrendamento desde que vivam com os pais em economia comum, conforme resulta da alínea (b) “Pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano”.
7.ª
Contrariamente ao afirmado pelo Dr. Cura Mariano no acórdão 196/2010, a “análise comparatística dos regimes do revogado artigo 85º, do RAU, e do artigo 1106º, do CC., aplicável aos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, constata-se que o novo regime do Código Civil liberalizou deliberadamente a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, ao que não foi estranho o fim do sistema da renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação”, o novo regime jurídico do arrendamento aplica-se aos contratos de arrendamento com ou sem prazo certo, pelo que, este “dito novo regime”, não deixa de ser igual ao anterior no que respeita a transmissão por morte do contrato de arrendamento para os filhos com convivam como os pais.
8.ª
O artigo 57.º das normas transitórias do NRAU de forma propositada revoga todos estes direitos – afasta-se por completo as estipulações que vigoraram até a data da entrada em vigor da lei 6/2006 (revogando-as), mas, já não faz o mesmo na regulamentação para o futuro das novas normas sobre arrendamento urbano, conforme se retira do artigo 1106.º do CC, que resulta das novas normas do NRAU, pelo que estamos perante uma violação clara do que é referido nos artigos 13.º e 18.º do CRP.
9.ª
Salvo melhor opinião, o Artigo 57.º no que respeita a revogação da transmissão do arrendamento por morte de pais para filhos desde que com eles convivessem há mais de um ano e/ou com eles convivessem em regime de economia comum, é inconstitucional, porque violador dos direitos mais elementares no que respeita a razões de segurança de tráfego jurídico e ofende os princípios da confiança e da igualdade que Lei Fundamental tutela – a lei só dispõe para o futuro (...) e deve presumir-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (artigos 2º, artigo 12º, 13.º e 18.º da CRP), em suma, a Lei 6/2006 prevê para os novos contratos de arrendamento o que já existia no RAU e legislação anterior, mas revoga no artigo 57.º o mesmo tipo de normas relativamente aos contratos celebrados antes da entrada do NRAU.
l0.ª
A lei fundamental não pode admitir leis incompatíveis com a mesma, e muito menos com direitos liberdades e garantias, a que devem estar subordinadas, cabendo aos Tribunais o dever, na sua aplicação, de sindicar este valor jurídico maior e recusar-se a aplicar normas que contrariam a CRP (Artigo 204.º da CRP), garantindo-se assim não só a legalidade nas decisões como também a efectiva aplicação das normas – não sendo o legislador (como devia) o garante do cumprimento das normas relacionadas com os direitos liberdades e garantias, cabe aos Tribunais esse papel.
11.ª
Desde 1966 que o A vive com os pais e há mais de 30 anos que o legislador tem consagrado os direitos de transmissão por morte ressalvando assim os efeitos jurídicos de factos que já tiveram lugar e/ou estão a acontecer dias após dia, factos que a lei regulou até a entrada em vigor da lei 6/2006, legislador que não terá sido alheio, na elaboração dessas normas jurídicas aos direitos económicos, sociais e afectivos da família, a educação e manutenção e sustento dos filhos (n.º 3 do artigo 36 da CRP), e, ainda, de forma a que se pudesse, com o mínimo de dignidade, mater um lar, uma habitação, pois todos têm direito “a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” e o A tem direito ao arrendamento conforme peticionado na p.i.
12.ª
Normas transitórias do NRAU - no mesmo acto legislativo (artigo 112.ºda CRP) revogam-se direitos sobre a transmissão no arrendamento, para regulamentar esta mesma matéria, conferindo aqueles mesmos direitos para contratos futuros desde que celebrados após a entrada em vigor da lei 6/2006 – artigo 1106.º do CC, reforçando-se aqui a inconstitucionalidade das normas.
13.ª
Na elaboração da legislação que regula a vida social e “tenta” ou tende a regulamentar a autonomia privada e as suas relações com o património e a actividade industrial ou comercial, o legislador não pode deixar de ter, sempre em conta, o Direito Constitucional em geral e os Direitos Fundamentais em particular, subjacente a um ideia de justiça, passada, presente e futura – exige-se um direito e um ordenamento jurídico com história, sistemático e com razão de ser, que ser quer feito por pessoa mas fundamentalmente para as pessoas, no fundo a sua razão de ser.
14ª
Quando a lei não respeita estes princípios fundamentais de direito, e pior, os viola, cabe aos Tribunais a missão, por vezes espinhosa, de “defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” – artigo 205.º n.º 2 da CRP, o que não aconteceu na sentença nem no Acórdão do Tribunal da Relação.
15.ª
A sentença e o Acórdão ao deitaram mão do artigo 57.º alíneas e) e f) da lei 6/2006 de 27/02 (NRAU), violaram, entre outros, os artigos 2.º, 3.º [13.º] e 18.º da CRP.
16.ª
Ao não consentir a transmissão para o descendente, conforme o previa o art.º 85º n.º 1 al. b) do RAU, impondo o legislador a clara limitação do art.º 57º do NRAU, para afinal, nos contratos celebrados sob o actual regime, voltar a permitir que essa transmissão opere (a alínea b) do n.º 1 do art.º 1106º do Código Civil o artigo 57.º n.º 1 alíneas d) e e) do NRAU é inconstitucional, pois “a norma que operou a modificação, veio frustrar de modo intolerável as expectativas da transmissão do arrendamento a favor das pessoas que face ao art.º 85º do RAU, legitimamente esperavam a materialização desse direito, designadamente os descendentes”
17.ª
“Do princípio do Estado de Direito emana uma prerrogativa de confiança, de modo a que todos possam organizar e programar as suas vidas tendo em atenção o quadro legal por onde regem as suas recíprocas relações. Daí que os direitos adquiridos em razão dessas expectativas (juridicamente tuteladas), não devam ser modificadas, sem que seja garantida a estabilidade (imodificabilidade) dos interesses que licitamente eram tidos como certos”
18.ª
“Em todas estas situações, o descendente, que não reúna as condições das alíneas d) e e) do n.º 1 do art.º 57º do NRAU, após a morte do arrendatário, terá de abrir mão da habitação, entregando-a ao senhorio devoluta de pessoas e bens, situação que é injusta e ainda o é mais, quando, face à vigente norma do art.º 1106º do Código Civil, o legislador voltou a permitir transmissão a favor desses descendentes, nos contratos celebrados sob a vigência do NRAU, pelo que é manifesta a ocorrência da inconstitucionalidade no preceito ora analisado por ofensa aos princípios da confiança e da igualdade dimanados pelos artºs 2º; 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa.
19.ª
Nestes termos e nos demais que doutamente suprirão deverá ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 57.º n.º 1 alíneas d) e e) do NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano)), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com o sentido de que tal disposição legal é aplicável à transmissão por morte do arrendatário, relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados ao abrigo da lei 2030 de 22/06/1948, em particular (o contrato de arrendamento referido nos autos foi celebrado em Abril de 1966), e em geral após a entrada em vigor do Código Civil de 1966, quando a morte do arrendatário tenha ocorrido posteriormente à entrada em vigor do NRAU, no que respeita a não transmissão para os descendentes que convivessem com o arrendatário, pois só assim se fará justiça.»
7. O recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:
«I - Na situação dos presentes autos foi feita uma correcta interpretação e aplicação das normas contidas nas alíneas d), e) e f) do n.º1 do artigo 57º do NRAU (Novo Regime de Arrendamento Urbano), que foram introduzidas pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro e as mesmas encontram-se em conformidade com os parâmetros de ordem constitucional estabelecidos na Constituição da República Portuguesa.
II - A sentença e acórdão recorridos não violaram preceitos ou princípios de natureza constitucional, nomeadamente os da confiança e da igualdade consagrados nos artigos 2º, 3º e 18º da CRP.
III - As normas constantes das alíneas d), e) e f) do nº 1 do artigo 57º do NRAU (Novo Regime do Arrendamento urbano), que foram introduzidas pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, não se encontram feridas do vício de inconstitucionalidade.
IV - Sendo constitucionais tais normas, bem como o diploma de onde elas emanam, podem as mesmas ser invocadas e aplicadas pelos tribunais em qualquer procedimento judicial.
V - Pelo que não merecem os aludidos arestos qualquer censura jurídica.
VI - Daí que devam os mesmos ser confirmados e mantidos “in totum”.
Nestes termos, e nos demais de direito aplicável, deve ser negado provimento ao presente recurso, com as respectivas consequências legais, como é de direito e de, JUSTIÇA».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A norma que é objecto do presente recurso é o artigo 57.º, n.º 1, alíneas d) e e), da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, diploma que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) e estabeleceu normas transitórias aplicáveis aos contratos habitacionais subsistentes à data da sua entrada em vigor (cf. Título II, onde se inserem, entre outros, os artigos 26.º, 27.º, 28.º, 57.º, e 65.º, n.º 2).
O artigo 57.º, n.º 1, tem a seguinte redacção:
«Artigo 57.º
Transmissão por morte no arrendamento para habitação
1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%».
Das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 2, 27.º e 28.º da Lei n.º 6/2006 resulta que a transmissão por morte no arrendamento para habitação, relativamente a contratos habitacionais celebrados antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, passou a reger-se pelo disposto no referido artigo 57.º
2. O recorrente requer a apreciação das alíneas d) e e) do n.º 1 deste artigo, por violação dos princípios da confiança e da igualdade, decorrentes dos artigos 2.º, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.
O recorrente conclui pela violação do princípio da confiança contrapondo à norma que é objecto do presente recurso as normas anteriormente vigentes em matéria de transmissão por morte, de acordo com as quais a posição contratual do arrendatário era transmitida aos descendente sem as limitações constantes das alíneas d) e e) do artigo 57.º Invocando, designadamente o artigo 1111.º, n.º 1, do Código Civil, que na redacção da Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, dispunha o seguinte:
«Artigo 1111.º
Transmissão por morte do arrendatário
1 – O arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha recta, com menos de 1 ano ou que com ele vivessem pelo menos há 1 ano, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de 30 dias»
Bem como o artigo 85.º do RAU, onde se estatuía, na parte que agora releva, o seguinte:
«Artigo 85.º
Transmissão por morte
1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;
c) Pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens;
d) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
e) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b) e d);
f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos».
O recorrente faz decorrer a violação do princípio da igualdade da contraposição do artigo 57.º, n.º 1, alíneas d) e e), ao artigo 1106.º, n.º 1, do Código Civil, na medida em que, sendo aplicável aos contratos de arrendamento para habitação celebrados após a entrada em vigor do NRAU, prevê presentemente a transmissão por morte à pessoa que com o arrendatário resida em economia comum e há mais de um ano.
Este preceito do Código Civil dispõe o seguinte:
«Artigo 1106.º
Transmissão por morte
1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado ou pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano;
b) Pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano».
3. O artigo 57.º, n.º 1, alíneas d) e e), do NRAU já foi apreciado por este Tribunal quer enquanto norma aplicável aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU (Acórdãos n.ºs 385/2010 e 346/2011, este último por remissão para a fundamentação do Acórdão n.º 196/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt); quer enquanto norma aplicável aos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU (Acórdão n.º 196/2010). Por força do disposto nos artigos 27.º e 28.º e 26.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2006, respectivamente, esta norma transitória é aplicável num caso e noutro.
No Acórdão n.º 196/2010, o Tribunal apreciou as questões de constitucionalidade postas pelo recorrente, decidindo o seguinte:
«2.3. A proibição de retroactividade das leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias
O artigo 18.º, n.º 3, da C.R.P., proíbe que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias consagrados no título II, da Parte I, da Constituição, e dos direitos fundamentais de natureza análoga (artigo 17.º, da C.R.P.), tenham efeito retroactivo.
Um dos direitos fundamentais de natureza análoga que vem sendo apontado por este Tribunal é o direito à propriedade privada, constante do artigo 62.º, da C.R.P.
O conceito constitucional de propriedade não corresponde ao civilístico, abrangendo não só o direito real pleno, mas também os mais diversos direitos subjectivos de valor patrimonial, incluindo os direitos de crédito, designadamente o direito ao arrendamento (vide, neste sentido, BACELAR GOUVEIA, em “Arrendamento urbano, Constituição e justiça. Perspectivas de direito constitucional e direito processual”, pág. 47-49, ed. de 2004, de O espírito das leis e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 267/95, em ATC, vol. 31.º, pág. 305), o qual, quando contraposto ao direito de propriedade do senhorio, exigiria a conciliação de dois direitos de propriedade concorrentes (cfr. SOUSA RIBEIRO, em “O direito de propriedade na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Relatório elaborado no âmbito da Conferência Trilateral Espanha/Itália/Portugal, realizada em 8 a 10 de Outubro de 2009, acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos).
Contudo, o direito constitucional à propriedade privada não beneficia do regime dos direitos, liberdades e garantias, nomeadamente das limitações impostas às leis restritivas pelo artigo 18.º, da C.R.P., em toda a sua extensão, mas apenas no seu núcleo essencial, onde se revela a analogia com aquela categoria constitucional.
Ora, se o Tribunal Constitucional já afirmou que a liberdade genérica de transmissão do direito de propriedade, sem condicionamentos, não constitui uma dimensão do direito de propriedade à qual se aplique o regime dos direitos, liberdades e garantias (Acórdãos n.º 187/2001, em ATC, vol. 50.º, pág. 29, e n.º 425/2000, em ATC, vol. 48.º, pág. 255), seguramente que a transmissão por morte de um direito de gozo com um cunho pessoal tão acentuado como é o do arrendatário habitacional, está fora do núcleo essencial de protecção do direito fundamental à propriedade privada, não sendo equiparável à categoria dos direitos, liberdades e garantias.
Além disso sempre seria questionável o efeito retroactivo da norma em causa, uma vez que estamos perante um caso de retrospectividade.
Assim sendo, nunca a interpretação normativa sindicada poderia estar sob o alcance da proibição contida no artigo 18.º, n.º 3, da C.R.P.
2.4. O princípio da igualdade
Conforme acima já se constatou o NRAU consagrou dois regimes de transmissão do arrendamento habitacional por morte do arrendatário. Um aplicável aos contratos celebrados que são posteriores à sua entrada em vigor e que consta da nova redacção do artigo 1106.º, do C.C., e outro, transitório, constante do artigo 57.º, do NRAU, aplicável aos contratos anteriormente celebrados.
Este último regime é mais restritivo, relativamente à admissibilidade da transmissão do arrendamento, do que aquele que é aplicável aos novos contratos de arrendamento, nomeadamente no que respeita à transmissão do arrendamento para filhos maiores de 26 anos e sem qualquer incapacidade, ou com uma incapacidade inferior a 60%.
Enquanto o artigo 1106.º, do C.C., apenas exige, para que se verifique a transmissão do arrendamento para um filho nessas condições, que este tenha vivido em economia comum com o progenitor arrendatário no ano anterior à morte deste, já o artigo 57.º, do NRAU, não permite essa transmissão.
A diferença de regimes a operar sincronicamente tem o seu fundamento na circunstância de nos novos contratos de arrendamento habitacional já não vigorar o sistema de prorrogação forçada para o senhorio do vínculo contratual, ao contrário do que sucede na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU. Enquanto nestes, com excepção dos contratos de duração limitada previstos no artigo 98.º e seg., do RAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto essa for a vontade do arrendatário, como ocorre com o contrato de arrendamento sub iudice, nos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, o prolongamento da relação contratual já não lhe pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário. Nestes novos contratos, o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado (artigo 1096.º, n.º 2, e 1097.º, do C.C.), ou não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos (artigo 1101.º, c), do C.C.).
Na verdade, o alcance do direito à transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional está intimamente conexionado com o grau de tutela conferido ao interesse na continuidade da relação contratual. Quando o senhorio deixa de estar sujeito à perduração indefinida do contrato, perdem sentido todos os resguardos e limitações que rodeavam o direito à transmissão com vista a atenuar o impacto negativo que ela ocasionava nos interesses do senhorio (SOUSA RIBEIRO, na ob. cit. [O novo regime do arrendamento urbano: contributos para uma análise, in Estudos Jurídicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Motta Veiga, Coimbra, 2007], p. 764-765).
Por isso existe uma diferença decisiva no regime da generalidade dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, relativamente àquele que disciplina os contratos posteriormente outorgados, que fundamenta e justifica as diferenças de tratamento jurídico da admissibilidade da transmissão por morte da posição do arrendatário consagradas no artigo 1106.º, do C.C., para os novos contratos, e no artigo 57.º, do NRAU, para os contratos pré-existentes.
Essa diferença já não se descortina entre os contratos de duração limitada celebrados na vigência do RAU e os novos contratos celebrados ao abrigo do NRAU, mas isso é uma questão que não releva para a decisão do presente recurso, uma vez que o contrato aqui em causa é um contrato sujeito ao regime da renovação obrigatória.
Ora, como ensinam J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 399, da 4.ª Edição revista, da Coimbra Editora), no apuramento das violações ao princípio da igualdade, na vertente da proibição do arbítrio, importa ter presente que «(...) a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da “discricionariedade legislativa” são violados, isto é, quando, a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma “infracção” do princípio do arbítrio.»
Tendo sido apurado um suporte material bastante para o tratamento desigual sincrónico apontado pelo Recorrente, não se pode considerar que essa distinção viole o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º, da C.R.P.
2.5. O princípio da confiança
O Recorrente também acusa a interpretação normativa impugnada de não ter respeitado o princípio da confiança ínsito ao Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da C.R.P., uma vez que com a sua aplicação foram defraudadas as expectativas que lhe foram criadas pelo regime estabelecido no RAU e que foram determinantes para a sua permanência no arrendado.
Efectivamente, como acima se verificou, o RAU (artigo 85.º) permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário, para os descendentes que vivessem com este em economia comum há mais de um ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade.
O NRAU (artigo 57.º) alterou este regime, passando a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%.
Com esta modificação visou-se limitar a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário em economia comum apenas àqueles que, presumivelmente, atenta a sua idade ou grau de incapacidade, vivessem numa situação de dependência económica do transmitente. Com esta limitação acentuou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, assegurando-a somente aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado. Nos restantes casos, entendeu-se que a mera convivência com o arrendatário falecido no locado não era suficiente para se sacrificarem não só os interesses do senhorio no termo de um contrato sujeito a um regime severamente vinculístico, mas também o interesse público de ampliação do mercado de arrendamento.
Como neste caso a morte da arrendatária ocorreu em 29-11-2007, ou seja posteriormente à data da entrada em vigor do NRAU, em 27 de Junho de 2006, a decisão recorrida, socorrendo-se do critério que a transmissão do arrendamento em caso de morte do arrendatário é regulada pela lei vigente à data da morte, aplicou o disposto no artigo 57.º deste diploma, não reconhecendo ao Réu, filho da arrendatária, mas maior de 26 anos e sem qualquer incapacidade, o direito a ingressar na posição contratual da sua mãe, apesar deste alegar que vivia com ela há mais de um ano, em economia comum.
Tem sido entendido que os preceitos que desde o princípio do século XX estabelecem as regras do arrendamento de prédios urbanos, vêm consagrando um regime de severas limitações à liberdade contratual, impondo importantes restrições e vínculos à autonomia da vontade privada, de modo a assegurar uma política de justiça social. Neste domínio as partes não são encaradas pela lei como contraentes, mas enquanto membros de uma determinado grupo social (inquilinos e senhorios), cujos interesses, pela sua relevância na dinâmica da sociedade, importa reger em abstracto, independentemente do acto que deu origem à situação em concreto. É este carácter público e de forte incidência politico-social da legislação sobre o contrato de arrendamento que exige que também ele seja encarado ao lado de institutos onde a vontade das partes cede perante os interesses comunitários, sendo por isso a lei nova de aplicação imediata aos contratos pré-existentes.
Nesta linha e tendo ainda presente que os interessados na transmissão do arrendamento não intervieram na outorga do respectivo contrato, tem sido aplicado uniformemente pela jurisprudência o critério de que o regime da transmissão por morte da posição do arrendatário é o definido pela lei que está em vigor à data do evento que determina essa transmissão – o óbito do arrendatário – e não pela lei que vigorava na data em que foi celebrado o contrato.
O recorrente fundamenta a existência das expectativas que teriam sido afectadas pela aplicação do regime previsto no artigo 57.º, do NRAU, no facto da lei que estava em vigor quando ele vivia no arrendado com a mãe lhe assegurar a transmissão do arrendamento, caso a sua mãe viesse a falecer, o que, inclusive, teria pesado na sua decisão de permanecer no arrendado.
O Tribunal Constitucional tem dito que a afectação de expectativas legítimas resultantes duma alteração legislativa só é inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam contar, não sendo a mesma ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.
Nesta situação, a incerteza do momento da morte, aliada ao facto das condições exigidas pelo RAU se reportarem a esse momento (convivência com o arrendatário no ano anterior à sua morte) não permite de modo algum que se reconheça como legítima qualquer expectativa de transmissão do arrendamento alicerçada apenas num juízo de prognose que tem por base a manutenção hipotética de todos os dados de facto e de direito até à data da morte do arrendatário.
Na verdade, só nesse momento é que era possível constatar se estavam ou não preenchidos os requisitos da transmissibilidade, pelo que não tem fundamento a constituição anterior de qualquer posição de confiança merecedora de protecção.
Na época em que o Recorrente viveu com a mãe no arrendado, durante a vigência do RAU, a ordem jurídica não lhe permitiu, num juízo de razoabilidade, a formação de qualquer expectativa legítima de que ele iria suceder na posição de arrendatário que pudesse limitar a aplicação de qualquer alteração legislativa nesse domínio, ocorrida antes do óbito da mãe, no sentido de não admitir essa sucessão.
O recorrente podia depositar esperanças ou até expectativas de natureza política, de que nunca tendo o legislador limitado a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário no período anterior à sua morte, nomeadamente em função da idade ou do grau de incapacidade, essa orientação legislativa não viesse a ser tomada. Mas esses sentimentos ou convicções não têm relevância jurídica e não podem pesar na delimitação da área de liberdade de conformação do legislador.
Daí que também não se mostre violado pela interpretação normativa sindicada o princípio da confiança, como emanação da ideia de Estado de direito democrático.»
4. Esta fundamentação é inteiramente transponível para as questões a decidir nos presentes autos, não sendo em nada abalada pela alegação de que “o novo regime jurídico do arrendamento aplica-se aos contratos de arrendamento com ou sem prazo certo, pelo que, este ‘dito novo regime’, não deixa de ser igual ao anterior no que respeita a transmissão por morte de contrato de arrendamento para os filhos que convivam com os pais”.
É verdade que continua a poder ser celebrado um contrato de arrendamento para habitação de duração indeterminada (artigos 1094.º e 1099.º e ss. do Código Civil), mas tal tipo de contrato pode ser denunciado pelo senhorio, mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação (artigo 1101.º, alínea c), do Código Civil). Um aspecto do NRAU que o Acórdão n.º 196/2010 não deixou de destacar, para concluir que, nos contratos de arrendamento habitacional celebrados após a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006 (com prazo certo ou por duração indeterminada), o prolongamento da relação contratual já não pode ser imposto ao senhorio unilateralmente pelo arrendatário (ponto 2.4.).
5. Reiterando o entendimento constante do Acórdão n.º 196/2010, há que não julgar inconstitucional o artigo 57.º, n.º 1, alíneas d) e e), da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso,
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 29 de Novembro de 2011.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.