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Processo n.º 322/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O representante do Ministério Público, junto do 2.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão proferida naquele Tribunal em 24 de Março de 2011, no âmbito do processo n.º162/11.1PTPRT em que é arguido A., que recusou aplicação às normas contidas nos artigos 10.º e 384.º, n.º 2 do CPP com fundamento em inconstitucionalidade.
2. No despacho recorrido, afirma-se o seguinte:
“(…)
Admitir assim, que numa interpretação do actual art. 384°, n° 2 do CPP, ex vi do art. 10º do mesmo diploma legal, a competência para conhecer do pedido de suspensão provisória do processo no âmbito do processo sumário que corre termos pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal, é neste caso do juiz do Tribunal de Instrução Criminal, constituiria um desaforamento interpretativo, citado art. 18°, n° 2 e 102° da LOFT e arts. 202°, 203°, 210º, nº 3 e 211°, nº 2 da CRP, e uma definição individualizada pelo sujeito processual, posterior, que, como tal ofende o princípio do juiz natural, art. 32°, n° 9 da CRP …
(…)
O contrário, no caso em concreto face à organização e funcionamento dos tribunais constitucionalmente consagrada, seria admitir na atribuição naquela definição individualizada da competência ao JIC, um desaforamento por um facto posterior, consubstanciado num, até qualquer, pedido de suspensão provisória do processo, fundamentado ou não, ou mesmo só formulado para esse efeito (de desaforamento).
Na verdade, o arguido, nos termos dos arts. 381° a 383° do CPP é apresentado para julgamento sob a forma de processo sumário, sendo, portanto, este o juiz natural – as normas, tanto orgânicas como processuais, têm de conter regras que permitam determinar o tribunal que há-de intervir em cada caso em atenção a critérios objectivos..., Ob. cit., pág. 362 (sublinhado nosso).
A questão sub judice cai, e está, dentro do âmbito, nos termos do art. 211°, n° 2 da Constituição, da norma do art. 102° referido que regula a matéria específica da competência do TPIC, e que é de preparar as causas a que corresponda a forma de processo sumário.
Pelo que introduzir no meio pela lei adjectiva a competência de um JIC para uma questão processual específica da competência do TPIC, constitui um desaforamento, uma posterior definição individualizada a sujeito processual à competência constitucional e organicamente definida a um tribunal de competência específica.
Como supra referido no âmbito das funções jurisdicionais reservadas em proveito do Tribunal de Pequena Instância Criminal, dois são os andamentos: o preparar e o julgar, caindo no âmbito do primeiro andamento, o de “preparar”, a normal tramitação do pedido de suspensão provisória do processo, e só depois o segundo andamento, o julgamento.
CONCLUINDO:
“Todos e cada um dos tribunais são órgãos de soberania.
“A legitimidade dos juízes resulta, nesta perspectiva, do exercício de uma competência que lhes é atribuída por normas organizativas do sistema ...“, pág. 13, 14 e 15, autores e ob. cit..
“O principal alcance do n° 1 do art. 202° da Constituição analisa-se no estabelecimento de reserva da competência para o exercício da função jurisdicional em proveito exclusivo dos tribunais. Não são os tribunais – sustenta-se – a saírem definidos pela função jurisdicional. É também esta — prossegue-se — a resultar definida por aqueles”, Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, pág. 24, item VI.
A reserva da jurisdição estatuída em proveito dos tribunais nos termos do nº 1 do art. 202° da Constituição exige, assim, mais, que só a órgãos qualificáveis como tribunais possa o desempenho de funções jurisdicionais ser cometido.
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. Mas esta subordinação à lei deve ser entendida como subordinação não apenas ao bloco de legalidade estrito, mas também à Constituição – autores e ob. cit., pág. 38
A independência dos tribunais não se esgota na independência externa. Merece individualização a autonomia de cada tribunal em face dos demais, divulgadamente dita independência interna..., Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, pág. 41.
Confrontando as normas do n° 1 e do n° 2 do art. 384° CPP, na redacção actual, onde está essa autonomia, essa independência dos Tribunais-
Consequentemente,
Uma interpretação das normas processuais penais que dê competência para conhecer do pedido de suspensão provisória do processo no âmbito do processo sumário que corre termos pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal, ao juiz do Tribunal de Instrução Criminal, constituiria um desaforamento, citado art. 18°, n° 2 e 102° da LOFT e arts. 202°, 203°, 210º, nº 3 e 211º, nº 2 da CRP, e neste caso, uma definição individualizada – em função de um sujeito processual – que surge posterior ao facto, e que como tal ofende o princípio do juiz natural, art. 32°, nº 9 da CRP.
E assim, em suma,
Entender-se ou interpretar-se, que por aquele modo o art. 10º do CPP tem uma relação de especialidade, designadamente em função do art. 18° da LOFT, a ele se sobrepondo, fazendo excluir a competência materialmente ali definida dos tribunais nos termos dos art.s 202°, 203°, 210°, nº 3 e 211°, nº 2, e ainda 32°, nº 9 da Constituição da República Portuguesa, é inconstitucional por violação destas respectivas normas.
Seria tomar uma parte, um sujeito processual, art. 1º, al. b) do CPP, pelo todo, e como o todo (tribunal) – “o principal alcance do n° 1 do art. 202° da Constituição analisa-se no estabelecimento de reserva da competência para o exercício da função jurisdicional em proveito exclusivo dos tribunais”, autores e ob. cit., pág. 24.
O que em consonância se decide por essa inconstitucionalidade, e, assim, pela inconstitucionalidade dos arts. 10º e 384°, nº 2 do CPP com a redacção dada pela Lei n.° 26/2010 de 30 de Agosto, por violação dos art.s 202°, 203°, 210°, nº 3 e 211°, n° 2, e ainda 32°, nº 9, da Constituição da República Portuguesa na medida em que fazem atribuir ao Juiz deste Tribunal de Instrução Criminal a competência reservada ao Juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal.
(…)
3. Tendo o processo prosseguido, apenas o Ministério Público apresentou alegações, sendo que nas mesmas começa por dar notícia de que:
“(…)
A decisão recorrida é, (…), do mesmo teor das proferidas nos processos nºs 333/11 e 334/11, da 3ª Secção e Processos nºs 329/11 e 335/11, da 1ª Secção. Nesses Processos foram proferidas as Decisões Sumárias nºs 299/11, 300/11, 330/11 e 331/11, respectivamente, que não conheceram do objecto do recurso com base na argumentação que já constava das anteriores Decisões Sumárias.
(…)
Nessas mesmas alegações, formulam-se as seguintes conclusões:
(…)
1. Tendo a iniciativa de suspender provisoriamente o processo partido do Ministério Público logo que o arguido se apresentou para ser julgado em processo sumário, a norma do nº 2 do artigo 384º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 26/2010, de 30 de Agosto, enquanto determina que é o juiz de instrução o competente para concordar ou discordar daquela decisão do Ministério Público (artigo 281º, nº 1, do CPP), não viola o princípio do juiz natural, consagrado no artigo 32º, nº 9, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
2. Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso.
(…).”
4. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea a) e 3 da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, ou seja, por recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade. Face ao teor das alegações produzidas pelo representante do Ministério Público junto deste Tribunal, à semelhança do que sucedeu noutros recursos oriundos do mesmo tribunal e com idêntico objecto, coloca-se uma questão prévia que consiste em saber se deve ou não conhecer-se do seu objecto.
Disse-se no acórdão n.º 433/11, que recaiu sobre um desses processos identificados pelo Ministério Público como versando sobre decisão absolutamente idêntica àquela de que o presente recurso emerge:
“Como é jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, o conhecimento do mérito do objecto do recurso, em matéria de fiscalização concreta de (in)constitucionalidade, justificar-se-á quando o julgamento a que se chegar relativamente à questão de (in)constitucionalidade normativa a sindicar possa relevar decisivamente no julgado, levando à sua modificação em caso de procedência.
O presente recurso mostra-se interposto, como se deixou afirmado supra, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. a) da LTC, ou seja, com fundamento em que a decisão recorrida recusou a aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, mais propriamente, da norma contida no « …art. 384.º n.º 2 do C.P.P. na redacção introduzida pela Lei 26/2010 de 30.08, em simultâneo com o art. 10.º do mesmo diploma legal. …».
Daí que, à admissibilidade do presente recurso e consequentemente ao seu conhecimento, importe a verificação da referida relevância ao nível do julgado, face à natureza da ‘função instrumental’ do julgamento da questão de constitucionalidade e, bem assim, da existência de recusa de aplicação de norma apodada de inconstitucional.
O enquadramento jurídico-constitucional que, no discurso argumentativo da decisão recorrida, se faz das normas legais invocadas e de forma mais impressiva quanto à norma do n.º 2 do artigo 384º do Código de Processo Penal, apelando-se a uma interpretação conforme aos parâmetros de constitucionalidade aí expressos e com projecção legal nas normas da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) mencionadas, conduzir-nos-iam, numa análise perfunctória, à conclusão de que ocorreriam, no caso, os pressupostos conducentes não só à admissibilidade do recurso interposto, como assim, da obrigatoriedade de conhecimento do seu mérito.
Porém, da análise mais atenta da decisão recorrida pode concluir-se que, como se concluiu na decisão sumária n.º 299/2011 proferida perante decisão do mesmo teor e tribunal, « … nesse contexto argumentativo, se defende, em termos não sindicáveis por este Tribunal Constitucional, uma espécie de relação de especialidade ‘invertida’, no que respeita à definição/delimitação de competências dos Tribunais, entre as normas processuais penais (artigos 10.º e 384º, nº 2 do CPP) e as consagradas na referida LOFT (artigos 18.º, 79.º e 102.º, n.º 1), aplicando-se estas últimas, atenta a sua tessitura constitucional, em detrimento das primeiras: …».
Na realidade, o Tribunal recorrido, face à argumentação desenvolvida na decisão em causa, perfilha o entendimento de que as leis processuais penais, ou seja, no caso, o n.º 2 do artigo 384.º do CPP, em matéria de suspensão provisória do processo, não pode prevalecer sobre os critérios gerais de organização judiciária, designadamente em matéria de competência dos tribunais, isto é, com relevo para a questão que nos ocupa, os artigos 18º, 79º e 102º, n.º 1 da LOFT, em cujas normas se afirmam princípios constitucionalmente consagrados.
O discurso que na decisão recorrida se desenvolve, visando a inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 384º do CPP, parte do pressuposto interpretativo de que esta norma prevalece sobre as normas de organização judiciária, entendimento este que, todavia, não corresponde, como se deixou já mencionado, ao seguido pelo Tribunal recorrido, revelando-se, assim, hipotético e insusceptível de, a verificar-se um juízo de constitucionalidade, ter qualquer relevância ao nível da alteração da decisão recorrida, porquanto sempre subsistiria a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido na aplicação que faz das normas infraconstitucionais, ou seja, as normas contidas nos artigos 10.º e 384.º, n.º 2 do CPP devem ceder perante as mencionadas nos artigos 18.º, 79.º e 102.º, n.º 1 da LOFT.
Efectivamente, mau grado a estrutura seguida na decisão recorrida, dando prevalência à argumentação sobre a inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 384.º, o certo é que, subjaz à decisão recorrida tal entendimento, o qual é insusceptível de ser sindicado por este Tribunal Constitucional.
Aliás, pode concluir-se, ainda, que se não está perante uma concreta situação de desaplicação de normas – os artigos 10º e 384º, nº 2 do CPP – por inconstitucionalidade, porquanto, como se deixou referido, o que concretamente resulta é um afastamento da aplicação das ditas normas processuais na medida em que a questão (processual), segundo o entendimento perfilhado na decisão recorrida, deve ser analisada e decidida à luz das normas da organização judiciária (LOFT), designadamente, no caso, do disposto no artigo 102.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (LOFT), em que se define a competência específica dos Juízos de Pequena Instância Criminal, competência essa que não poderia ser afastada pela lei adjectiva – os artigos 10.º e 384.º, n.º 2 do CPP – e que, consequentemente, não aplica.
Diga-se, por último, que, perante decisão do mesmo teor e tribunal (2º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto), foram já proferidas várias decisões sumárias neste Tribunal Constitucional, como sejam, as n.º 299/2011 e 300/2011 (3ª Secção), 330/2011 e 331/2011 (1ª Secção), nelas se tendo concluído pela irrelevância do juízo de constitucionalidade que pudesse vir a fazer-se quanto à norma cuja sindicância se suscita e, bem assim, que não ocorria uma concreta desaplicação da norma em causa.
Assim, quer porque o juízo de constitucionalidade que sobre a norma do artigo 384.º, n.º 2 do CPP se pudesse vir a formular não conduziria a uma alteração do sentido da decisão recorrida, tendo em conta a posição adoptada na sua fundamentação, quer porque se não está perante uma verdadeira e concreta situação de desaplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, entende-se que se não deve tomar conhecimento do recurso”.
Acompanha-se o essencial deste entendimento, para que se remete perante a identidade das situações sujeitas a apreciação no que à questão de constitucionalidade pode ser pertinente, pelo que igualmente se decide não tomar conhecimento do objecto do recurso.
5. Decisão
Pelo exposto decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Outubro de 2011.- Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.