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Processo n.º 227/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório1. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), do despacho do Tribunal de Instrução Criminal do Porto “(…) que pôs termo ao processo, recusou aplicar a norma prevista no art.384 n° 2 C.P.P., na redacção introduzida pela Lei n° 26/2010 de 30.08, quando interpretada no seu sentido literal, ou seja, que é o Juiz de Instrução o competente para dar a concordância á suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é antes apresentado para julgamento em processo sumário. Entendendo que o juiz competente para tal acto é o Juiz do julgamento do processo sumário, posição aliás com que se concorda e a cuja argumentação aderimos e por isso se dá aqui como reproduzida para todos os efeitos legais. Concretamente que a menção contida no n° 2 do referido preceito ao ‘Juiz de Instrução’, se deveu a um lapso de escrita do legislador, até porque o n° 1 do mesmo preceito se refere tão só ao ‘Juiz’.(embora esta não seja a questão de fundo no que respeita á inconstitucionalidade suscitada peio M° Juiz de Instrução).”
2. No despacho recorrido, decidiu-se que:
“Nos termos do art. 79º da lei orgânica compete aos Tribunais de Instrução Criminal - Tribunal de competência especializada -, proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito.
Por sua vez dispõe o art. 102º, nº 1, do mesmo diploma legal, que compete aos juízos de pequena instância criminal - Tribunais de competência específica -, preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, abreviado e sumaríssimo.
Compulsada a lei nº 26/2010 de 30 de Agosto, designadamente o seu art. 4º, verifica-se que as disposições legais supra citadas não foram revogadas, tendo as mesmas, por outro lado, atento o disposto no art. 18º, nº 2 da LOFT, e 211º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, uma relação de especialidade.
Tão pouco se mostra revogado ou alterado o disposto no art. 10º e 17º do CPP (compete ao JIC exercer as funções judiciais até à remessa do processo para julgamento).
E isto porque, compulsados os autos, e atento o disposto nos arts. 381º a 384º do CPP, não podem os mesmos deixar de se considerar autos remetidos para julgamento em processo sumário. Assim se pode firmar que, como tal, só podem ser preparados pelo TPIC. É matéria de sua competência (e específica) - preparar e julgar as causa a que corresponda a forma de processo sumário como referido.
Não sendo os presentes autos de inquérito, como o não são, face ao disposto nos arts. 381º, nº 1 (são julgados em processo sumário), 382º, nº 1 e 4 (o detido é apresentado junto do tribunal competente para o julgamento), e 383º, nº 1 (para comparecerem para julgamento), nem há que confundir julgamento, fase, e julgamento, audiência, e porque não se trata de nenhum dos casos previstos no art. 390º do CPP, não pode o JIC conhecer da matéria em questão.
E se o arguido é apresentado para julgamento em processo sumário nos termos das normas legais citadas, qual é então o juiz a pronunciar-se nos termos estabelecidos pela norma do nº 1, in fine, do art. 384º do CPP,
e de que o nº 2 é conexo e subsequente-
Esta matéria reservada à função jurisdicional não pode deixar de se enquadrar no âmbito de “preparar e julgar causa a que corresponda a forma de processo sumário”. Ou seja, da exclusiva competência do juiz de julgamento do processo sumário. Sobre tal matéria já a Relação de Lisboa tomou posição, Ac’s de 19.06.07 e de 12.09.07, CJ-XXXII, T. III, pág. 139 e T. IV, pág. 133.
E na verdade, as injunções ou regras de conduta, do ponto de vista penal substantivo não deixam de ser uma sanção de índole especial penal a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa.
Nem o nº 2 do art. 384º do mesmo diploma legal faz converter os autos de processo sumário em autos sob a forma de processo comum. O próprio normativo impõe a forma de processo sumário, como também a norma do seu nº 3 o faz remeter, nos acasos aí previstos, para a forma de processo abreviado. Ou seja, tudo dentro da competência material (específica) do Tribunal de Pequena Instância Criminal especificada na lei de organização e funcionamento dos tribunais. Lei que não é revogada pela lei nova e que para si tem uma relação de especialidade.
O que se verifica no actual nº 2 do art. 384 do CPP é um lapso de escrita, facilmente determinável, até pelo demais escrito na própria alínea, como até da anterior.
A interpretação da lei não pode, nem deve, cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, nº 1 do art. 9º do CC.
Não sendo assim os presentes autos de inquérito, mas processo sob a forma de processo sumário, não pode o JIC conhecer nele da suspensão provisória do processo requerida por se tratar de matéria que está fora da sua competência, referidos art. 79º e ainda nesta caso, 102º, nº 1, ambos da lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais, e art. 17º do CPP uma vez que os autos se encontram formalmente remetidos para julgamento.
Não sendo os presentes autos de inquérito, também não se trata de nenhum dos casos do art. 390º do CPP, e até porque em caso de não concordância segue a forma de processo sumário e no caso de incumprimento seguirá a forma de processo abreviado, não pode o JIC conhecer da matéria em questão porquanto fora da área da sua competência especializada.
O próprio normativo, como se vê, impõe sempre a forma de processo de exclusiva competência específica do TPIC como já supra referido e se reafirma.
Admitir o contrário seria admitir, e pasme-se, que em fase de julgamento o próprio juiz – o nº 1 do art. 384º do CPP fala ‘por iniciativa do tribunal ou... requerimento do arguido’ -, pudesse remeter os autos ao JIC, isto é, para fase de inquérito e sob a forma aparente de processo comum, quando os autos se encontram em fase de julgamento, violando o art. 17º do CP, e quando ainda a final o próprio legislador não o faz: é que, nos termos do disposto no nº 2, na falta de concordância, fá-lo prosseguir em julgamento na mesma forma de processo (sumário), e nos termos do nº 3 da citada disposição legal, quando no incumprimento das regras, na forma de processo abreviado. O que é, salvo o devido respeito, totalmente incongruente e sem qualquer grau de lógica.
Constituiria até um desaforamento, citado art. 18º, nº 2 e 102º da LOFT e 211º, nº 2 da CRP, e uma definição individualizada que, como tal ofende o princípio do juiz natural, art. 32º, nº 9 da CRP – o que importa essencialmente não é a competência individualizada de um determinado tribunal para o caso concreto,... mas tão só que em razão daquela causa ou de categorias de causas a que ela pertence sejam criados «post factum» tribunais de excepção ou a definição individualizada da competência, o desaforamento ou a nomeação dos juízes por forma discricionária – Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, pág. 363.
Na verdade, o arguido, nos termos dos arts. 381º a 383º do CPP é apresentado para julgamento sob a forma de processo sumário, sendo, portanto, este o juiz natural – as normas, tanto orgânicas como processuais, têm de conter regras que permitam determinar o tribunal que há-de intervir em cada caso em atenção a critérios objectivos..., Ob. cit., pág. 362 (sublinhado nosso).
A questão sub judice cai, e está, dentro do âmbito da norma do art. 102º referido que regula a matéria específica da competência do TPIC, e que é de preparar as causas a que corresponda a forma de processo sumário.
Pelo que introduzir no meio pela lei adjectiva, de, e por forma arbitrária, a competência de um JIC para uma questão processual específica, constitui um desaforamento, uma posterior definição individualizada à competência constitucional e organicamente definida a um tribunal de competência específica.
Não pode ser concebível, nem pode ser esse o pensamento do legislador, que o simples requerimento do arguido de suspensão provisória do processo retire a causa da competência do juiz de julgamento, continuando os autos em fase de julgamento. E continuando em fase de julgamento, referidos arts. 382º e 383º. fosse a decisão da competência do JIC.
As injunções e regras de conduta não assumindo a natureza jurídica de verdadeiras penas, são seus equivalentes funcionais Manuel de Andrade, Consenso e Oportunidade, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, pág. 353. Do ponto de vista do direito penal substantivo trata-se de uma sanção de índole especial penal.
Em suma: seria violar o disposto nos arts. 10º e 17º do CPP, 18º, nº 2, 79º e 102º da LOFT, e um desaforamento, uma posterior definição individualizada de competência que, como tal, violadora do princípio do juiz natural e assim, inconstitucional, nº 2 do art. 211º e 32º, nº 9 da CRP.
O que em consonância se decide pela inconstitucionalidade da norma do nº 2 do art. 384º do CPP na sua leitura literal para a competência deste tribunal conhecer da questão sub Júdice por violação dos art. 211º, no 2 e 32º, nº 9 da CRP.”
3. Notificado para alegar, o Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, concluiu do seguinte modo:
“1. Pela interpretação dos preceitos de direito ordinário, o Senhor Juiz de Instrução Criminal concluiu que não era competente para proferir o despacho a que alude o artigo 384°, n°s 1 e 2 do CPP.
2. Surgindo a inconstitucionalidade apenas como reforço de argumentação ou elemento adicional de interpretação, não se verifica o requisito de admissibilidade do recurso interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do n° 1 do artigo 70° da LTC, não devendo, pois, conhecer-se do seu objecto.
3. Tendo a iniciativa de suspender provisoriamente o processo, partido do Ministério Público logo que o arguido se apresentou para ser julgado em processo sumário, a norma do n° 2 do artigo 384° do CPP, na redacção dada pela Lei n° 26/2010, de 30 de Agosto, enquanto determina que é o juiz de instrução o competente para concordar ou discordar daquela decisão do Ministério Público (artigo 281, n° 1, do CPP), não viola o princípio do juiz natural, consagrado no artigo 32°, n° 9, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
4. Termos em que, a conhecer-se do recurso, deverá o mesmo ser julgado procedente.”
4. O Recorrido não respondeu.
5. O Exmo. Recorrente foi notificado para a eventualidade do Tribunal não conhecer do objecto do recurso e, para além do já alegado, mais nada acrescentou.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação6. A decisão recorrida é idêntica às proferidas nos processos que correram termos neste Tribunal e que terminaram com a prolação das Decisões Sumárias n.ºs 223/2011, 235/2011 e 241/2011 e ainda os recentes Acórdãos n.º 325/2011 e 326/2011 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A última decisão sumária citada foi proferida nesta primeira secção, para cujo teor se remete, sendo certo que as três concluíram não se estar perante uma “verdadeira” recusa de aplicação da norma.
Disse-se, na referenciada Decisão Sumária n.º 241/2011:
“O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, segunda a qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade.
1. O recurso interposto ao abrigo daquela alínea supõe que a norma aplicada, como ratio decidendi, o seja depois de o tribunal recorrido ter recusado a aplicação de uma outra norma (aplicável ao caso) com fundamento em inconstitucionalidade. Tal não sucede nos presentes autos, o que obsta ao conhecimento do objecto do recurso (artigo 78.º-A da LTC).
Resulta da decisão recorrida que o Tribunal de Instrução Criminal do Porto interpreta e aplica o artigo 384.º, nº 2, do Código de Processo Penal no sentido de que é o juiz de julgamento o competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é antes apresentado para julgamento em processo sumário, por ser esta a interpretação que se impõe em primeira linha e não na sequência de uma qualquer de desaplicação, no caso concreto, de norma considerada inconstitucional.
Não obstante a letra da lei, o juiz conclui por esta interpretação, ‘tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico’: tratando-se de ‘processo sob a forma de processo sumário, não pode o JIC conhecer nele da suspensão provisória do processo requerida por se tratar de matéria que está fora da sua competência’ (artigos 79º e 102º, nº 1, da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais e 17º do Código de Processo Penal). O tribunal recorrido não recusa a aplicação da norma indicada no requerimento de interposição de recurso (com fundamento em inconstitucionalidade), desde logo porque não considera sequer aplicável ao caso a norma segundo a qual o juiz de instrução é o competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é antes apresentado para julgamento em processo sumário. Segundo a decisão recorrida, ‘o que se verifica no actual nº 2 do art. 384 do CPP é um lapso de escrita’.
2. Ainda que o tribunal recorrido tivesse recusado a aplicação da norma cuja apreciação foi requerida pelo Ministério Público, sempre seria de concluir pelo não conhecimento do objecto do recurso (artigo 78º-A da LTC).
A decisão recorrida conclui que a norma indicada no requerimento de interposição de recurso viola o disposto nos artigos 10º e 17º do Código de Processo Penal e 18º, nº 2, 79º e 102º da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais. Nestas circunstâncias, revelar-se-ia inútil a apreciação da questão de inconstitucionalidade colocada nos autos. De facto, ainda que, em sede de recurso, se viesse a concluir pela conformidade constitucional da norma, subsistiria o fundamento da desconformidade legal da mesma, com a consequência de se manter inalterada a decisão no sentido de o juiz de instrução não ser competente para dar concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é antes apresentado para julgamento em processo sumário.
Este Tribunal tem entendido que, «(…) não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 366/96, Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996).”
É, assim, de reiterar a jurisprudência citada.
III — Decisão7. Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Julho de 2011. – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.