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Processo n.º 746/10
Plenário
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Provedor de Justiça, ao abrigo do artigo 281.º, n.º 1., al. a), e n.º 2, al. d), da Constituição da República Portuguesa (CRP), e do artigo 51.º, n.º 1 da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional – LTC (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), deduziu pedido de fiscalização abstracta sucessiva.
2. Tal pedido tem por objecto a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º, n.º 2, e ainda das normas constantes dos artigos 6.º, n.º 4, al. c), 25.º, n.º 2, al. b), e 44.º, n.º 1, al. d) – quanto a estes últimos, na parte em que se reportam à violação e aos efeitos da condenação na sequência da violação do preceituado no primeiro dispositivo legal –, todos do Decreto-Lei n.º 211/2004, de 20 de Agosto.
3. As normas questionadas têm o seguinte teor:
Artigo 4.º
Angariação imobiliária
1 – (…)
2 – É expressamente vedado aos angariadores imobiliários o exercício de outras actividades comerciais ou profissionais.
3 – (…)
4 – (…)
Artigo 6.º
Requisitos de ingresso e manutenção na actividade
1 – (…)
2 – (…)
3 – (…)
4 – Para efeitos do disposto na alínea g) do n.º 1, considera-se indiciada a falta de idoneidade comercial sempre que se verifique, entre outras, qualquer das seguintes situações:
a) (…)
b) (…)
c) Terem sido punidas, pelo menos duas vezes, com coima pela prática dolosa dos ilícitos de mera ordenação social consubstanciados na violação do disposto no n.º 2 do artigo 4.º, nas alíneas a), b), f) e g) do n.º 1 do artigo 32.º, no artigo 33.º e no n.º 3 do artigo 34.º;
(…)
Artigo 25.º
Requisitos de ingresso e manutenção na actividade
1 – (…)
2 – Para efeitos do disposto na alínea d) do número anterior, considera-se indiciada a falta de idoneidade comercial sempre que se verifique, entre outras, qualquer das seguintes situações:
a) (…)
b) Ter sido punido, pelo menos duas vezes, com coima pela prática dolosa dos ilícitos de mera ordenação social consubstanciados na violação do disposto no n.º 2 do artigo 4.º, nas alíneas a), b), f) e g) do n.º 1 do artigo 32.º, no artigo 33.º e no n.º 3 do artigo 34.º;
(…)
Artigo 44.º
Contra-ordenações
1 – Sem prejuízo de outras sanções que se mostrem aplicáveis, constituem contra-ordenações, puníveis com aplicação das seguintes coimas:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) De € 1000 a € 10000, a violação no disposto no n.º 2 do artigo 4.º, nos n.ºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 14.º, nos n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5 do artigo 20.º, nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 32.º, no artigo 33.º e no n.º 3 do artigo 34.º;
(…)
3. Para fundamentar o seu pedido, o Provedor de Justiça alegou, em síntese, o seguinte:
- A Lei n.º 8/2004, de 10 de Março, concedeu uma autorização legislativa ao Governo (art. 1.º) para este regular o exercício das actividades de mediação e angariação imobiliárias – esta última, uma nova categoria profissional a regular ex novo.
- A referida lei fixou, nos termos do n.º 2 do artigo 165.º, o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização.
- No que concerne ao sentido, ficou o Governo autorizado a proceder à “«redefinição do quadro jurídico do exercício da actividade de mediação imobiliária e [a]o novo enquadramento do exercício da angariação imobiliária»”.
- No respeitante à extensão, e relativamente à actividade de angariação imobiliária, a autorização assim dispõe: “«Definir a actividade de angariação imobiliária como aquela em que, por contrato de prestação de serviços, uma pessoa singular, obrigatoriamente inscrita no Registo Comercial enquanto empresário em nome individual, se obriga ao desempenho de actividades tendentes à prospecção e recolha de informações que visem encontrar o bem imóvel pretendido pelo cliente, à promoção dos bens imóveis sobre os quais o cliente pretenda realizar negócio jurídico e à obtenção de documentação, de informações e de aconselhamento, bem como à tramitação dos actos necessários à concretização dos negócios objecto do contrato de mediação imobiliária que não estejam legalmente atribuídos, em exclusivo, a outras profissões» (alínea c) do artigo 3.º da Lei n.º 8/2004”.
E ainda:
“«Sujeitar o exercício da actividade de angariação imobiliária a inscrição no IMOPPI, à titularidade de habilitações literárias e profissionais específicas, bem como à regularidade da situação fiscal do angariador e ao preenchimento de requisitos de idoneidade comercial» (alínea e) do artigo 3.º da Lei n.º 8/2004)”.
- Ao não permitir aos angariadores imobiliários o desempenho de outras actividades, comerciais ou profissionais, o Governo estabeleceu para eles, de forma inovadora, “um regime de exclusividade no exercício da respectiva actividade, com a afirmação, no plano substantivo, da sua absoluta e total incompatibilidade com o exercício de quaisquer outras actividades de natureza comercial ou profissional”.
- Nestes termos, a disciplina jurídica instituída pelo decreto-lei autorizado tem “por efeito limitar e condicionar a escolha propriamente dita, o acesso e o exercício da actividade de angariação imobiliária”, e, assim sendo, contende com o n.º 1 do artigo 47.º da CRP, que estabelece a liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública – preceito que beneficia do regime específico dos direitos, liberdades e garantias (art. 17.º, da CRP).
- Esse condicionamento é notório, gerando para os interessados no acesso à actividade de angariação imobiliária “um dever negativo, isto é, a abstenção do exercício de quaisquer outras actividades comerciais ou profissionais, senão mesmo, consoante os casos, uma obrigação positiva de renúncia ao desempenho de actividade incompatível, o incumprimento dos mesmos impedindo a escolha e o exercício da actividade em questão” (isto é, “a existência de uma situação originária de exercício, pelo interessado, de qualquer outra actividade ou função obsta à sua inscrição como angariador imobiliário, colocando-o perante a situação de ter de optar por uma actividade profissional, postergando necessariamente outra”).
- Assim sendo, a actuação do autor do decreto-lei sindicado configura “uma limitação à liberdade de escolha de profissão, de cujo âmbito de protecção relevam, justamente em termos jurídico-constitucionalmente conformados, o direito de escolha e o direito de acesso ou ingresso”.
- Ora, conforme decorre do Acórdão n.º 255/2002, “«a fixação de condições específicas para o exercício de determinada profissão ou actividade profissional [se] enquadra[se] no contexto da liberdade de escolha de profissão regulada no artigo 47.º da lei fundamental e, portanto, constitui matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, por tratar de matérias de direitos, liberdades e garantias»”.
Em sentido próximo, no Acórdão n.º 563/2003 pode ler-se que, “«porque a liberdade de profissão faz parte dos direitos, liberdades e garantias pessoais, estando sujeita ao regime especialmente previsto para esta categoria de direitos fundamentais no mencionado artigo 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição, toda a definição inicial e substantiva de questões atinentes ao acesso a uma profissão e ao exercício – ou à privação do exercício – dessa profissão constitui matéria de reserva relativa de competência legislativa parlamentar»”.
- Nesta óptica, fica claro que o “regime de exclusividade e inerentes incompatibilidades, como o que decorre do disposto no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 211/2004, configura um autêntico condicionamento, não de mero sentido adjectivo, do exercício da actividade de angariação imobiliária, interferindo, a montante, com o direito de escolher livremente a profissão em causa e criando assim obstáculo ao respectivo ingresso: como tal, releva do âmbito de protecção da liberdade de escolha de profissão que o legislador constituinte acolheu no texto constitucional e incluiu na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigos 47.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição)”.
- Sem embargo de a doutrina reconhecer, em abstracto, a possibilidade de restrições destinadas a impedir o exercício em simultâneo de várias ou de certas profissões, a verdade é que qualquer restrição terá que respeitar os requisitos constitucionais, nomeadamente o princípio da reserva de lei.
Mesmo que se entenda que, no caso em análise, “a proibição do exercício cumulativo da actividade de angariação imobiliária com o exercício de outras actividades comerciais ou profissionais não constitui uma verdadeira restrição da liberdade de escolha de profissão, mas tão-somente a concretização legislativa do resultado de uma ponderação de bens jurídico-constitucionalmente relevantes – como seja, na situação vertente, a atenção ao interesse colectivo no exercício correcto, em determinados moldes, de uma actividade profissional em um sector económico considerável, como o do imobiliário, com acrescidas exigências em matéria de defesa dos consumidores – importa não perder de vista que, conforme sedimentada jurisprudência constitucional, acima citada, «o Tribunal tem sempre reconhecido que a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias abrange «tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições do direito em causa» (Acórdão n.º 128/00 (…))», na evocação do Acórdão n.º 255/2002 do Tribunal Constitucional (…)”.
- Seja como for, a norma sindicada contém “uma medida de cariz inovador e constitutivo do legislador governamental, com reflexos restritivos ou condicionadores da liberdade de escolha de profissão (…), sem que para tal possua arrimo suficiente na Lei n.º 8/2004, razão pela qual viola a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República”. Com efeito “da leitura da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 8/2004 (…) não resulta que a medida constitutiva imposta pelo artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 211/2004 possa considerar-se ínsita nessa mesma autorização”. Com isto, a referida lei de autorização “não constitui título habilitante suficiente para a determinação de um regime de exclusividade dos angariadores imobiliários, que afecta substancialmente a sua liberdade de escolha de profissão e, como tal, integra matéria legislativa”.
- As dúvidas sobre a constitucionalidade dos dispositivos já mencionados colocam-se, pois, no plano orgânico, estando em causa a possibilidade de o governo ter legislado sobre uma matéria atinente a direitos, liberdades e garantias – e até mesmo, eventualmente, ter restringido a liberdade de escolha de profissão (questão que não constitui objecto do pedido) – “sem que se tenha munido da devida credencial para o efeito”. De forma mais específica, o que se pretende ver decidida é a questão de saber se “o regime de exclusividade imposto pela norma criticada ainda cabe na extensão da lei de autorização ao abrigo da qual foi emitida, não podendo a conclusão alcançada assumir outro sentido que não seja o negativo”, pois que “não encontra aquela norma legal suporte bastante na extensão da lei de autorização legislativa, no uso da qual o Decreto-Lei n.º 211/2004 foi publicado, assim violando igualmente a subordinação estabelecida pelo art.º 112.º, n.º 2, 2.ª parte, da Constituição”.
- De salientar que a Lei n.º 8/2004 contém uma autorização para restringir no que se refere à liberdade de iniciativa económica privada, na parte em que estabelece que o “Governo fica autorizado (…) a «[i]dentificar a actividade de mediação imobiliária como a única susceptível de ser incluída no objecto social das empresas de mediação imobiliária, exceptuados os casos de administração de imóveis e de actividades de imóveis e de actividades de informação ou aconselhamento complementares da mediação» (…)”.
- Por último, não é de relevar a circunstância de o Governo ter entendido juntar à proposta de lei de autorização, com o intuito de obter a “autorização legislativa de que carecia para legislar sobre o exercício das actividades de mediação imobiliária e angariação imobiliária”, o “próprio projecto de diploma governamental a emitir ao abrigo da pretendida habilitação parlamentar”.
Uma tal argumentação não pode proceder, “porquanto a opção do proponente pelo referido método procedimental nunca poderia implicar a aprovação parlamentar da legislação que o Governo pretendia – e veio, efectivamente, a – decretar no uso da autorização legislativa. Entendimento diferente nesta matéria subverteria a natureza do acto legislativo dependente que se reconhece aos decretos-leis autorizados e o sentido de que o Governo, ao legislar sobre matérias reservadas à Assembleia da República, actua, ainda assim, em nome próprio”.
- Daqui se conclui que, na medida em que o Governo “legislou a descoberto de autorização legislativa, extrapolando a respectiva extensão, é organicamente inconstitucional a norma ínsita no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 211/2004 e consequentemente ficam igualmente viciadas as normas constantes dos artigos 6.º, n.º 4, al. c), 25.º, n.º 2, al. b), e 44.º, n.º 1, al. d), do mesmo diploma”.
4. Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio oferecer o merecimento dos autos.
5. O memorando elaborado pelo Exmo. Presidente do Tribunal, submetido a debate em sessão plenária, mereceu consenso unânime, cumprindo, agora, apreciar e decidir de acordo com a orientação, então, alcançada.
II – Fundamentação:
6. No seu pedido, o Requerente invoca a existência de um vício orgânico pelo facto de o Governo ter legislado em matéria atinente a direitos, liberdades e garantias sem ter credencial bastante para o fazer.
Com efeito, ao estabelecer um regime de exclusividade a impor aos angariadores imobiliários, o legislador comprimiu a liberdade de escolha de profissão constitucionalmente consagrada no artigo 47.º da CRP (“A solução normativa questionada configura uma medida inovatória e constitutiva, a qual coloca os interessados no acesso à actividade de angariação imobiliária «perante a obrigação de optar» por uma actividade «preterindo outra, para nos socorrermos do obiter dictum do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 367/99, condicionando a escolha e o exercício da actividade em causa”). Mais ainda, “«a fixação de condições específicas para o exercício de determinada profissão ou actividade profissional se enquadra no contexto da liberdade de escolha de profissão regulada no artigo 47.º da lei fundamental e, portanto, constitui matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, por tratar de matérias de direitos, liberdades e garantias»” (Acórdão n.º 255/2002). Ora, tendo em consideração o sentido e, sobretudo, a extensão da autorização, tal como estabelecidos nos artigos 2.º (Sentido) e 3.º (Extensão) da Lei n.º 8/2004, deles não decorre qualquer autorização expressa para comprimir o direito já mencionado.
Para reforçar a sua posição, o autor do pedido afirma que em relação à iniciativa empresarial privada, enquanto associada à actividade de mediação imobiliária, foi prevista uma autorização específica, ínsita no artigo 3.º, al. b), na parte em que se delimita o objecto das empresas de mediação imobiliária (“Identificar a actividade de mediação imobiliária como a única susceptível de ser incluída no objecto social das empresas de mediação imobiliária, exceptuados os casos da administração de imóveis e de actividades de informação ou aconselhamento complementares da mediação”). Idêntica autorização, acrescenta, não foi consagrada relativamente à actividade de angariação imobiliária.
Ainda em termos de fundamentação do pedido de fiscalização apresentado, o Requerente invoca não ser necessário deslindar se existe ou não uma restrição à liberdade de escolha de profissão, uma vez que o artigo 165.º, n.º 1, al. b), da CRP refere de forma ampla que a matéria dos direitos, liberdades e garantias – e, portanto, não apenas a questão específica da sua restrição – faz parte da reserva relativa da Assembleia da República (AR). Isso mesmo foi já reconhecido pelo Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 255/2002 (“«É que (…) a reserva parlamentar abrange «tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições»”).
O pedido do Provedor de Justiça centra-se, pois, na alegada inconstitucionalidade orgânica de que enferma o n.º 2 do artigo 4.º, em virtude de, através dele, o Governo ter legislado sobre direitos, liberdades e garantias sem estar munido da devida autorização legislativa. Tudo está em saber, portanto, se será possível encontrar na Lei n.º 8/2004 um fundamento habilitador bastante para justificar a actuação do Governo, sendo certo que, de facto, não está prevista de forma expressa uma autorização legislativa semelhante à prevista na al. b) do artigo 3.º.
Com este intuito, cumpre dizer o seguinte.
A actividade de angariação imobiliária foi regulada de forma autónoma, pela primeira vez, pela Lei n.º 8/2004, e, na sua sequência, pelo Decreto-Lei n.º 211/2004. Alguns dos actos que agora estão englobados nesta específica actividade cabiam anteriormente (à luz, portanto, do Decreto-Lei n.º 77/99, de 16 de Março) – e ainda hoje cabem (nos termos da Lei n.º 8/2004) – no objecto da actividade de mediação imobiliária, actividade comercial claramente multidisciplinar. Assim, por exemplo, a Lei n.º 8/2004 refere a recolha de informações e a obtenção de documentação relacionados com o negócio a realizar, actos que integravam o objecto da actividade de mediação imobiliária nos termos daquele diploma governamental – e que ainda o integram, segundo o preceituado no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 211/2004.
O que o legislador de 2004 fez foi, a propósito da definição do âmbito da actividade de angariação imobiliária, remeter para algumas das acções e serviços que se integram no âmbito da actividade de mediação imobiliária. Ou seja, a actividade de angariação imobiliária, apesar de autonomizada juridicamente em relação à actividade de mediação imobiliária, coincide parcialmente, quanto ao seu objecto, com esta última (“A actividade de angariação imobiliária é aquela em que (…) uma pessoa singular se obriga a desenvolver as acções e a prestar os serviços previstos, respectivamente, nos n.os 2 e 3 do artigo 2.º, necessários à preparação e ao cumprimento dos contratos de mediação imobiliária, celebrados pelas empresas de mediação imobiliária”).
Existe, portanto, um vínculo funcional entre as duas actividades em apreço do género actividade principal/actividade acessória.
A propósito da definição da actividade de angariação imobiliária, entendeu o legislador consagrar, no nº 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 211/2004, uma incompatibilidade bastante abrangente, aí se tendo estipulado que “é expressamente vedado aos angariadores imobiliários o exercício de outras actividades comerciais ou profissionais”. Independentemente de se questionar aqui a natureza jurídica das incompatibilidades, designadamente se a mesma consubstancia uma restrição a um direito – no caso em apreço, à liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública (art. 47.º da CRP) –, o certo é que, como assinalou o requerente, convocando jurisprudência deste Tribunal, todo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República (art. 165.º, n.º 1, al. b), da CRP). Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito.
Ora, não é possível encontrar na lei de autorização em apreço qualquer referência à eventual limitação a esta última actividade. Apenas se menciona a necessidade de “sujeitar o exercício da actividade de angariação imobiliária a inscrição no IMOPPI, à titularidade de habilitações literárias e profissionais específicas, bem como à regularidade da situação fiscal do angariador e ao preenchimento de requisitos de idoneidade comercial” (art. 3.º, al. e), da Lei n.º 8/2004). Além disso, prescreve-se que compete ao angariador o desempenho de actividades tendentes, entre outras coisas, à “tramitação dos actos necessários à concretização dos negócios, objecto do contrato de mediação imobiliária, que não estejam legalmente atribuídos, em exclusivo, a outras profissões” (art. 3.º, al. e), da Lei n.º 8/2004).
Aliás, o Governo, no Preâmbulo do seu diploma legal refere-se, a certa altura, à necessidade de “reorientar estes profissionais [aqueles que se dedicam à actividade de mediação imobiliária] para o exercício exclusivo da actividade de mediação imobiliária, de modo a centrarem toda a sua organização e o seu trabalho nesta actividade, cuja regulação por parte do Estado se continua a justificar” (itálico nosso). Nada de semelhante é dito em relação aos angariadores. Efectivamente, no que respeita a estes últimos diz-se tão-somente que “procurando definir a situação de alguns agentes que, não sendo mediadores, praticam actos próprios daquela actividade, regulamenta-se agora a actividade de angariação imobiliária, a qual poderá ser exercida por empresário em nome individual, uma vez cumpridos determinados requisitos, ainda que de menor exigência relativamente aos previstos para a actividade de mediação imobiliária. Tal actividade consiste na prestação de serviços a uma ou mais empresas de mediação, desde que integrados no âmbito da preparação e do cumprimento de contratos de mediação imobiliária por estas celebrados, estando-lhes, no entanto, vedada a celebração daqueles contratos”. Da leitura deste trecho do Preâmbulo, bem assim como do próprio texto do diploma legal emitido pelo Governo (mais concretamente, do n.º 3 do artigo 4.º), resulta claramente que o angariador imobiliário pode inclusivamente prestar os seus serviços a mais do que uma empresa de mediação imobiliária, não tendo, pois, o legislador temido pela eventual concorrência desleal que pudesse daqui advir.
Diga-se, por último, que apesar do indesmentível vínculo funcional existente entre as actividades de mediação e de angariação imobiliárias, não é possível sustentar que a limitação do objecto social das empresas de mediação imobiliária – e, concomitantemente, da liberdade de iniciativa empresarial privada –, devidamente autorizada pela Assembleia da República, se transmite à actividade de angariação imobiliária. Por outras palavras, a autorização expressamente consagrada na alínea b) do artigo 3.º da Lei n.º 8/2004 relativamente à actividade de mediação imobiliária não pode servir de fundamento habilitador à incompatibilidade estipulada no diploma governamental para a actividade de angariação imobiliária.
De notar que a autorização para restringir visa em exclusivo o objecto social das empresas de mediação imobiliária. E o facto é que no decreto-lei autorizado não está prevista qualquer situação de incompatibilidade para os sócios, administradores, gerentes ou directores de uma empresa de mediação imobiliária nem para os respectivos trabalhadores.
Dito isto, torna-se evidente que o Governo legislou sobre direitos, liberdades e garantias (como se viu, sobre a liberdade de escolha de profissão) a descoberto de qualquer autorização parlamentar. Tanto basta para dar como verificada a inconstitucionalidade orgânica da norma contida no n.º 2 do artigo 4.º, e, concomitantemente, das restantes normas cuja aplicação se não compreende sem aquela.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral:
a) Da norma contida no n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 211/2004, de 20 de Agosto;
b) Das normas constantes dos artigos 6.º, n.º 4, al. c), 25.º, n.º 2, al. b), e 44.º, n.º 1, al. d) na parte em que se reportam à violação e aos efeitos da condenação na sequência da violação do preceituado no n.º 2 do artigo 4.º do mesmo diploma.
Lisboa, 12 de Julho de 2011. – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Ana Maria Guerra Martins – José Borges Soeiro – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – João Cura Mariano – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.