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Processo n.º 602/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, a reclamante, A., interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão, proferido por tal Tribunal, que confirmou o indeferimento da reclamação de decisão de rejeição de recurso.
O recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC), tendo sido proferida decisão sumária, face à existência de decisão anterior relativa a preceitos de idêntico teor normativo.
2. Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“Começamos por referir que, não obstante a recorrente não ter logrado responder, de forma satisfatória, ao convite ao aperfeiçoamento que lhe foi dirigido, esclarecendo, de modo claro e explícito, a concreta interpretação normativa, que pretende ver sindicada – e enunciando a mesma de forma autónoma, sem remissão para o teor dos próprios preceitos de direito infraconstitucional, que selecciona como base de tal interpretação – parece-nos que, ainda assim, é possível alcançar o sentido útil do objecto do recurso, de acordo com a exposição prévia da questão, perante o tribunal a quo.
Desde já se adverte que, optando-se por extrair, por via interpretativa, o sentido útil da questão de constitucionalidade normativa, que a recorrente pretende ver sindicada, não poderá a mesma, ulteriormente, vir argumentar que era outra a questão que pretendia colocar, tendo, forçosamente, de sujeitar-se às consequências da deficiência de especificação do objecto do recurso, no momento processualmente adequado, maxime, quando lhe foi dada oportunidade de suprir tal deficiência, nos termos do artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC
(…) Nesta consonância, entende-se, como objecto do presente recurso, a interpretação normativa, extraída da conjugação dos artigos 278.º, n.ºs 1 e 5, e 283.º, ambos do CPPT, no sentido de as reclamações das decisões proferidas por órgãos da execução fiscal, posteriores à venda, configurarem processo urgente, para efeito de se considerar que é de dez dias o prazo para apresentar alegações do recurso jurisdicional respectivo.
Tratada a questão prévia de delimitação do objecto de recurso, cumpre referir que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre preceitos, de idêntico teor normativo, o que legitima, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, a prolação da presente decisão sumária.
(…) Alega a recorrente que a interpretação normativa dada ao artigo 283.º do CPPT fere o princípio de um processo equitativo, tal como consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da CRP, atenta a manifesta desproporcionalidade de impor uma alegação em simultâneo com o requerimento de interposição de recurso, quando não é esse o regime geral aplicável aos recursos jurisdicionais em processo tributário, inexistindo dimensão objectiva que o justifique.
Ora, a propósito do n.º 1 do artigo 285.º do CPPT – com alguma semelhança, quanto ao conteúdo normativo agora em análise – o Acórdão n.º 16/05, disponível in www.tribunalconstitucional.pt, faz uma súmula dos argumentos aduzidos, em jurisprudência anterior, que são transponíveis para a presente situação:
“Anteriormente, a matéria que é objecto do n.º 1 do artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário era disciplinada pelo n.º 1 do artigo 356.º do Código de Processo Tributário que dispunha: “Os recursos das decisões de natureza jurisdicional serão interpostos por meio de requerimento com a apresentação das alegações e conclusões no prazo de oito dias a contar da notificação”.(…)
Apreciando a constitucionalidade desta última norma, a que o tribunal recorrido tinha recusado aplicação com fundamento “na violação do princípio constitucional do due process of law, ínsito no direito de acesso aos tribunais previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição”, disse-se no acórdão n.º 588/2000 (Diário da República, II Série, n.º 27, de 1 de Fevereiro de 2001), o seguinte:
«Como, bem, nota o Ministério Público, a situação que agora é objecto dos autos é, de algum modo, paralela à que se verificava com o art. 76º do Código de Processo do Trabalho de 1988 (recentemente revogado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de Novembro, que aprovou o novo CPT), que preceituava, como acontece com a norma ora objecto de recurso, que as alegações fossem apresentadas juntamente com o requerimento de interposição do recurso, no prazo de oito dias contados da notificação da decisão recorrida.
Ora, a propósito daquele artigo 76º, decidiu já o Tribunal Constitucional, nos acórdãos n.ºs 51/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 597 e segs.), 266/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., págs. 699 e segs.) e 313/2000 (inédito), que a exigência de que as alegações fossem apresentadas juntamente com o requerimento de interposição do recurso, no prazo de oito dias contados da notificação da decisão recorrida, não era inconstitucional.
Como se ponderou logo no acórdão n.º 51/88:
“Se é certo poder dizer-se que, não obstante a Constituição da República não adiantar expressamente nenhum princípio em matéria de recursos, tal matéria não é constitucionalmente neutra, nem significa que a lei possa discipliná-la de forma arbitrária (cfr. acórdão n.º 199/86, no Diário da República, 2ª série, de 25 de Agosto de 1986), a verdade é que não se consegue descortinar, neste caso, qualquer violação do art. 20º, n.º 2, da Constituição.
As alegações são, do ponto de vista lógico, um momento ou fase da marcha dos recursos típicos, cujo momento de apresentação pode, cronologicamente, recair em diferentes fases do processo, consoante as previsões da lei (cf., por todos Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil, III, «Recursos», 1982, pp. 281 e segs.). São, por isso, uma das condições necessárias de natureza meramente processual, para que o tribunal de recurso se possa ocupar do objecto deste.
Ora, como sublinha Castro Mendes (Direito Processual Civil, Recursos, 198, p. 138, nota 1), «só perante cada regulamentação – dos vários ramos de direito processual – se pode averiguar se as alegações têm ou não de ser apresentadas no requerimento de interposição do recurso».
E, conforme acrescenta Armindo Ribeiro Mendes (ob. cit., pp. 103 e 104), a norma de direito processual laboral segundo a qual o requerimento de interposição de recurso deve conter logo as alegações – aliás, à semelhança do que também acontece, nos termos do artigo 259º do Código das Contribuições e Impostos, em direito processual fiscal – é precisamente uma das especialidades do direito processual laboral relativamente ao direito processual civil.
Mas é evidente que essa especialidade [do regime do direito processual laboral] não coarcta ou elimina, ou sequer dificulta de modo particularmente oneroso, o direito ao recurso que o Código de Processo do Trabalho reconhece, não violando o art. 20º, n.º 2, da Constituição, pois que, se o recorrente cumprir a obrigação que a lei lhe impõe de fazer a sua alegação de recurso no requerimento de interposição, o processo seguirá os seus termos”.
E, no mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão n.º 266/93:
“A exigência de a alegação ter de constar do requerimento de interposição de recurso ou, quando muito, de ter de ser apresentada no prazo de interposição do recurso de oito dias, não diminui, por si mesma, as garantias processuais das partes, nem acarreta um cerceamento das possibilidades de defesa dos interesses das partes que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável.
Na verdade, o legislador tem ampla liberdade de conformação no estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual [...].
O essencial da argumentação antes exposta vale, com as necessárias adaptações, para a situação que agora é objecto dos autos, conduzindo a considerar que também o regime previsto no artigo 356º, n.º 1, do CPT/91, não diminui intoleravelmente as garantias processuais do recorrente, nem implica um cerceamento das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável, em termos de dever considerar-se que estamos perante uma solução constitucionalmente censurável.
Desde logo, não só a solução processual que ali se consagra decorre da mesma liberdade de conformação do legislador no estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual, que se invocou expressamente no acórdão n.º 266/93, como obedece a um idêntico objectivo de celeridade e economia processual.
Acresce, como já se referiu, que não se vê no prazo concretamente fixado para a apresentação de alegações (oito dias, contados da notificação da decisão recorrida) um encurtamento que se repercuta no adequado exercício do direito do recorrente de modo a retirar-lhe a possibilidade de uma tutela jurisdicional efectiva. Não pode, por isso, afirmar-se que aqueles objectivos de celeridade e economia processual são alcançados à custa de uma intolerável diminuição das garantias de defesa.
Finalmente, deve ainda evidenciar-se que a solução processual consagrada no art. 356º do CPT/91 (obrigatoriedade de cumular a alegação com o requerimento de interposição do recurso, a apresentar no prazo de oito dias contados da notificação da decisão recorrida) não era única no âmbito dos direitos processuais então em vigor. A mesma regra processual podia encontrar-se, designadamente, no âmbito do processo do trabalho (como já vimos) ou no âmbito do processo penal. (…)
Tudo ponderado, conduz a que não se considere inconstitucional a norma agora objecto de recurso.»
Esta fundamentação é inteiramente transponível para o caso agora em apreciação e responde ao essencial dos argumentos da recorrente, permitindo, como se disse na decisão sumária confirmada pelo acórdão n.º 439/2004, concluir que:
“ ... o regime constante do n.º 1 do artigo 285º do Código de Procedimento e de Processo Tributário não diminui intoleravelmente as garantias processuais do recorrente, nem implica um cerceamento das suas possibilidades de defesa que seja de considerar desproporcionado ou intolerável: a solução processual que nessa norma se consagra não só decorre da liberdade de conformação do legislador no estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual, como também obedece a objectivos de celeridade e economia processual. Acresce que não se vê no prazo concretamente fixado para a apresentação de alegações (dez dias, contados da notificação da decisão recorrida) um encurtamento que se repercuta no adequado exercício do direito do recorrente de modo a retirar-lhe a possibilidade de uma tutela jurisdicional efectiva. Não pode, por isso, afirmar-se que os referidos objectivos de celeridade e economia processual sejam alcançados à custa de uma intolerável diminuição das garantias de defesa.
Em suma, a solução consagrada não é constitucionalmente censurável, quando confrontada com os artigos 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa, invocados pela recorrente.”
O Acórdão n.º 310/2006 (disponível no site supra referido), pronunciando-se sobre o artigo 283.º do CPPT, igualmente formula um juízo de não inconstitucionalidade.
Assim, na sequência da jurisprudência já aludida do Tribunal Constitucional e em concordância com a fundamentação aí aduzida, conclui-se que a interpretação normativa em apreciação não viola as exigências constitucionais de um processo justo e equitativo, com equilíbrio entre o objectivo de celeridade e a garantia da faculdade de cada uma das partes expor as suas razões, com vista à descoberta da verdade material e à obtenção de uma decisão ponderada.”
É desta decisão sumária que o recorrente reclama.
3. A reclamação estriba-se, essencialmente, no seguinte:
“ (…) A decisão sumária funda-se na circunstância de o caso sub judice ser idêntico ao que já foi julgado no acórdão n° 16/05, que se situaria ainda na linha de outra jurisprudência pacífica do T.C..
(…) Salvo melhor opinião, não há comparação possível e adequada entre a situação deste processo e as questões suscitadas nos acórdãos do T.C. em pauta.
(…) No acórdão de 16/05, estava em causa uma especialidade do direito processual laboral, que estabelece que o requerimento de interposição do recurso deve conter logo as alegações, princípio que, de resto, tem sido alargado a outros ramos processuais e tem pleno cabimento constitucional, na perspectiva de assegurar uma maior celeridade processual.
(…) Também é esse um princípio comum a vários procedimentos qualificados como urgentes, designadamente providências cautelares.
(…) E também nada há a censurar quanto à norma do art. 283° do C.P.P.T., quando interpretada no sentido da sua aplicação aos processos urgentes, particularmente às situações previstas nos arts. 278° n° 3 do C.P.P.T..
(…) O problema está com a interpretação normativa em apreço, segundo a qual o regime dos processos urgentes se aplica a todas e quaisquer reclamações de decisões de órgãos de execução fiscal, e recursos posteriores, incluindo as posteriores à venda.
(…) É que manifestamente não há dimensão objectiva que justifique a solução adoptada, quando não é esse o regime regra aplicável aos recursos jurisdicionais em processo tributário.
(…) Uma coisa, é a adopção de tal regra em processos urgentes.
(…) Outra, verdadeiramente inovadora, ilegal e, in casu, inconstitucional, é a adopção desse princípio em todas as reclamações de decisões de órgãos de execução fiscal, mesmo que posteriores à venda, porque aí não há urgência ou outra dimensão objectiva que justifique um regime diferente do regime geral aplicável aos recursos jurisdicionais em processo tributário.
(…) Assim sendo, não se está perante o pressuposto previsto no nº 1 do art. 78°-A da LTC.
(…) E o recurso deve prosseguir para apreciar a questão sub iudice, declarando-se a inconstitucionalidade arguida.
Termos em que a presente reclamação deve ser deferida, com as legais consequências.”
4. A Fazenda Pública, notificada da presente reclamação, veio pugnar pelo indeferimento da mesma, alegando que a norma, que é alvo da presente apreciação, não viola qualquer princípio constitucional, sendo consentânea com o objectivo de conseguir uma mais rápida administração da justiça, através da introdução de mecanismos de celeridade, simplificação e economia processual.
A reclamada Banco B. SA nada disse.
II – Fundamentos
5. Refere a reclamante que a situação do presente processo não é comparável com qualquer uma das questões pressupostas pela jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, citada na decisão reclamada.
Para fundamentar tal alegada falta de correspondência, refere, desde logo, que, “no acórdão n.º 16/05, estava em causa uma especialidade do direito processual laboral”, pelo que a obrigatoriedade de apresentação das alegações juntamente com o requerimento de interposição de recurso – princípio que reconhece ter sido alargado a outros ramos processuais – “tem pleno cabimento constitucional”.
Volta a reforçar que o cerne do problema da interpretação normativa, cuja sindicância pretende, prende-se com a circunstância de as reclamações de decisões de órgãos de execução fiscal, mesmo que posteriores à venda, não terem carácter urgente, inexistindo qualquer outra dimensão objectiva que justifique um regime diferente do regime geral aplicável aos recursos jurisdicionais em processo tributário.
Atenta tal argumentação, em confronto com a decisão sumária reclamada, cumpre acentuar que o Acórdão 16/05 tem como objecto de apreciação, não qualquer norma do direito processual laboral, mas sim a norma extraída do n.º 1 do artigo 285.º do CPPT, na medida em que impõe que se apresentem as alegações de recurso logo com o requerimento de interposição, no prazo de dez dias.
Os argumentos aduzidos em tal aresto, que resultam de uma análise da jurisprudência anterior relativa a normas similares, são perfeitamente transponíveis para a presente situação.
Por essa razão, sendo a questão colocada subsumível ao conceito de “simples”, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, foi proferida a decisão sumária reclamada.
Cumpre relembrar, a este propósito, o que se refere no acórdão do Tribunal Constitucional, com o n.º 131/04 (disponível no mesmo site):
“ Com efeito, o preceito da LTC, ao conferir ao relator os poderes para emitir decisão sumária por a questão ser simples, não condiciona esta qualificação ao facto de haver decisão anterior sobre a mesma questão; tal é, desde logo, contrariado pela circunstância de aquele condicionamento ser antecedido pela expressão «designadamente», o que não pode deixar de significar a possibilidade de qualificar a questão como simples por uma multiplicidade de razões, mesmo que ela não tenha sido exactamente a mesma que foi objecto de decisão anterior.
Bastará para tal qualificação que na fundamentação da decisão anterior, muito embora sobre questão não inteiramente coincidente com a dirimida em posterior recurso, se tenham formulado juízos que imponham uma determinada solução de direito neste recurso, merecendo a questão, por essa via, a qualificação de simples.”
Por último, salienta-se que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar se a interpretação normativa plasmada na decisão recorrida é a mais correcta, do ponto de vista do direito infra-constitucional, mas apenas sindicar se a mesma fere algum parâmetro de constitucionalidade.
Assim, definido o critério normativo que consubstancia a ratio decidendi da decisão recorrida, o Tribunal Constitucional apenas tem competência para aferir da sua eventual desconformidade constitucional, o que in casu, foi feito de forma clara, com remissão para os argumentos aduzidos em jurisprudência anterior.
Em face do exposto, reafirmando e dando por reproduzida toda a fundamentação constante da decisão reclamada, resta apenas confirmar a mesma e, em consequência, indeferir a presente reclamação.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 14 de Julho de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.