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Processo n.º 619/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos autos de processo de contra-ordenação em que é arguida A., Lda., foi determinado pela Autoridade da Concorrência que, pela prática, em co-autoria, de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 1, alínea a) e 43.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junhos: (i) a arguida cesse de imediato os efeitos do acordo anticoncorrencial objecto dos autos; (ii) a arguida seja condenada no pagamento de uma coima no valor de € 87 000,00; (iii) seja ainda condenada, a título de sanção pecuniária compulsória, a pagar por cada dia de atraso na cessação das práticas resultantes do acordo a quantia de € 298,06; (iv) a arguida proceda, a expensas suas, a publicação num jornal diário de circulação nacional e no Diário da República de um extracto da decisão.
A arguida veio impugnar junto do Tribunal do Comércio de Lisboa a decisão proferida pela Autoridade da Concorrência.
Por sentença do 2.º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, proferida em 11.03.2008, foi o recurso de impugnação interposto pela arguida julgado parcialmente procedente, tendo a arguida sido condenada, pela prática, em co-autoria, de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 1 e 43.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho: (i) a cessar de imediato a aplicação do acordo que celebrou; (ii) na coima de € 22 000,00; (iii) a título de sanção pecuniária compulsória, a pagar por cada dia de atraso na cessação das práticas resultantes do acordo a quantia de € 179,00; (iv) a proceder, a expensas suas, a publicação num jornal diário de circulação nacional e no Diário da República de um extracto da decisão.
A arguida veio requerer a correcção da sentença pedindo que o tribunal esclarecesse se da condenação proferida resultaria automaticamente a sanção acessória de revogação da sua licença ou se do facto de a arguida não ter sido expressamente condenada na sanção acessória resultaria que a autoridade portuária não poderia proceder a tal revogação.
Por despacho de 03.10.2008, o tribunal indeferiu o requerimento de correcção da sentença.
Notificada desse despacho, veio a arguida interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
2. Sustentou-se, nas alegações desse recurso, que o nº 1 do artigo 43.º e o artigo 46.º da Lei nº 18/2003, de 11 de Junho (Lei da Concorrência) “teriam que ser considerados inconstitucionais, por violação do artigo 13.º, nº 1, da CRP” caso se entendesse que o “último ano” aí referido – e cujo volume de negócios determina a moldura da coima aplicável – se não referiria ao ano anterior à infracção.
A esta questão respondeu o Tribunal da Relação de Lisboa por acórdão datado de 1 de Junho de 2010 e nos seguintes termos:
O excesso da coima aplicada na perspectiva desta Recorrente resulta desde logo da interpretação que defende para o preceituado no art. 43.º, n.° 1, da Lei n.° 18/2003, no ponto em que manda atender na quantificação do seu limite máximo aos “10% do volume de negócios no último ano”.
Na leitura que faz, este “último ano” deveria corresponder ao ano anterior à infracção, o que no caso concreto nos reconduziria aos valores de 2005 e não aos de 2006, como efectivamente aconteceu.
Trata-se de disputa para a qual o referido acórdão desta Relação de 07/11/2007, no processo 7251/2007, não deixa de fornecer um contributo relevante: “o ano a considerar para a determinação do limite máximo da coima é aquele em que cessou a prática ilícita”.
Nem vemos que se possa entender de forma diferente.
Posto que tenhamos alguma dificuldade em conceber que a Autoridade da Concorrência possa atrasar ou adiantar um processo com o propósito preconcebido de assim poder fazer variar a expressão quantitativa de uma coima a aplicar, concordaremos que a eleição de um momento objectivo terá pelo menos o condão de conferir àquela definição um outro grau de “certeza”.
Por outro lado, sendo certo que o condicionamento do mercado da concorrência só tem sentido se houver uma razão económica que a justifique, a proximidade da consideração da cessação da conduta ilícita não deixará de espelhar mais fielmente em termos valorimétricos esse mesmo efeito de distorção.
Nessa conformidade, não vemos qualquer viabilidade interpretativa para aquela pretensão de fazer coincidir no caso dos autos o conceito volume de negócios “no último ano”, como o correspondente ao ano de 2005, uma vez que os factos em apreciação apontam para uma consumação portraida genericamente ao longo do ano de 2006.
Assim, na nossa perspectiva, não existe qualquer violência legal e constitucional na interpretação que foi feita quer pela Autoridade da Concorrência quer pelo Tribunal recorrido em relação ao conceito de “último ano” mencionado no referido art. 43.°, n.° 1, da Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho.
3. É desta decisão que é interposto o presente recurso de constitucionalidade.
O requerimento de interposição do recurso tem o seguinte teor:
A., LDA, devida e completamente identificada nos autos à margem referenciados, em que é Arguida e Recorrente, vem, nos termos do artigo 70°, n° 1, alínea b), da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, interpor RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL do douto Acórdão proferido nestes autos.
Em cumprimento do disposto no artigo 75°-A, n° 1, da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, as normas que se consideram inconstitucionais são as seguintes:
a) O artigo 43°, n° 1, e o artigo 46°, ambos da Lei n° 18/2003, de 11 de Junho (Lei da Concorrência), caso se entenda – como se entendeu – “último ano” como não se referindo ao ano anterior ao da verificação da infracção;
b) O artigo loa, n° 1, alínea c), do Decreto-Lei n° 75/2001, de 27 de Fevereiro, caso se entenda – como não ficou claro se foi o caso – que da condenação da ora Recorrente resultará automaticamente, “ope legis”, a sanção acessória da revogação da sua licença de operadora de reboque de embarcações, apesar da Arguida não ter sido expressamente condenada em tal eventual sanção acessória.
Em cumprimento do disposto no artigo 75°-A, n° 1, da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, as normas constitucionais que se consideram violadas são as seguintes:
a) O artigo 13º, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, no caso do artigo 43°, nº 1, e do artigo 46°, ambos da Lei n° 18/2003, de 11 de Junho, cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas motivações do recurso para o Tribunal da Relação;
b) O artigo 30º, n° 4, e o artigo 61°, n° 1, ambos da Constituição da República Portuguesa, no caso do artigo 10º, n° 1, alínea c) do Decreto-Lei n° 75/2001, de 27 de Fevereiro, cuja inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento de correcção de sentença.
Caso se venha a decidir não admitir o presente recurso apenas quanto a alguma(s) das normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada (alíneas a) ou b) supra), o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, desde já se declara pretender manter o recurso quanto à(s) outra(s) norma(s).
4. Já com os autos no Tribunal Constitucional, a relatora, no despacho que notificou a recorrente para alegar, circunscreveu o objecto do recurso apenas à questão de constitucionalidade relacionada com os artigos 43.º, n.º 1, alínea a) e 46.º, ambos da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, dele excluindo a questão de constitucionalidade relacionada com a alínea c) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 75/2001, de 27 de Fevereiro.
Foi apenas quanto a esta questão que apresentou a recorrente as suas alegações, reiterando em geral que a interpretação dada pela decisão recorrida às normas constantes dos preceitos acima mencionados da Lei da Concorrência – segundo a qual, recorde-se, se deve entender por último ano, e para efeitos da determinação do limite máximo da coima aplicável, aquele em que cessou a prática ilícita – lesaria o princípio constitucional da igualdade, por assim estar “aberta a porta a todo o tipo de fraude à lei” e por, “nessa hipótese, uma determinada pessoa poder ver a sua coima agravada (ou desagravada) se determinada decisão fosse mais ou menos demorada, relativamente a uma outra em que a decisão fosse menos ou mais demorada”. Acrescentou ainda que “tal situação poderia mesmo vir a ocorrer com duas (ou mais) empresas que tenham comparticipado em determinada infracção anti-concorrencial, mas cujo processo corra em separado, caso as decisões dos diversos processos fossem proferidas em anos diferentes” (fls. 5694 dos autos).
Contra-alegou, na qualidade de recorrido, o Exmo. Magistrado do Ministério Público no Tribunal Constitucional, que pugnou pela improcedência do recurso, por entender que a interpretação dada às normas sob juízo nada teriam de “arbitrário, infundado ou de destituído de razoabilidade, antes se inserindo no regime jurídico contra-ordenacional onde a coima (e a sanção acessória) tende(m) a reflectir as eventuais vantagens auferidas pelo infractor, a fim de garantir o seu efeito dissuasor e repressivo”.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
5. No despacho que notificou a recorrente para alegar, a relatora circunscreveu o objecto do recurso apenas à questão de constitucionalidade relacionada com os artigos 43.º, n.º 1, alínea a) e 46.º, ambos da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, dele excluindo a questão de constitucionalidade relacionada com a alínea c) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 75/2001, de 27 de Fevereiro, que havia sido indicado pela recorrente no requerimento de interposição do recurso.
Não tendo tal despacho sido impugnado e tendo a recorrente vindo alegar apenas relativamente à questão de constitucionalidade relacionada com os artigos 43.º, n.º 1, alínea a) e 46.º, ambos da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, é sobre essa questão que recairá a apreciação do Tribunal Constitucional.
Questão de constitucionalidade
6. Importa começar por observar que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar se a decisão recorrida interpretou correctamente o direito infra-constitucional. Na verdade, não lhe cabe censurar a correcção do juízo hermenêutico desenvolvido pelo tribunal a quo, i. é tomar posição sobre se, como defende a recorrente, para efeitos de determinação do limite máximo da moldura abstracta da coima, não deveria antes interpretar-se a referência, feita no artigo 43.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, a “volume de negócios do último ano”, como significando o último ano anterior ao da infracção, o que, no caso dos autos, levaria a que se considerasse, como volume de negócios, os valores de 2005 e não os de 2006, como efectivamente aconteceu.
Essa é matéria relativamente à qual o Tribunal Constitucional é incompetente.
Sob apreciação está única e exclusivamente a conformidade com a Constituição da interpretação dada pela decisão recorrida aos artigos 43.º, n.º 1, alínea a) e 46.º, ambos da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de, para efeitos de determinação do limite máximo da moldura abstracta da coima, se dever entender a referência feita a “volume de negócios do último ano” como significando aquele ano em que cessou a prática ilícita.
Entende a recorrente que tal interpretação do regime legal potencia o tratamento diferente de situações iguais, em violação do princípio da igualdade, tal como consagrado no artigo 13.º, n.º 1 da Constituição, na medida em que uma pessoa (ou empresa) poderá ver a sua coima agravada se determinada decisão for mais ou menos demorada, relativamente a uma outra em que a decisão seja menos, ou mais, demorada (mesmo que tenham comparticipado na infracção, para tanto bastando que os processos corram em separado e as respectivas decisões sejam proferidas em anos diferentes).
Vejamos, pois.
7. Sob apreciação está uma determinada interpretação do regime contra-ordenacional em matéria de concorrência no que respeita à determinação do limite máximo da moldura abstracta da coima.
Na interpretação do regime legal acolhida pela decisão recorrida, para efeitos da determinação do limite máximo da moldura abstracta da coima, deve entender-se a referência feita, no artigo 43.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, a “volume de negócios do último ano” como significando aquele ano em que cessou a prática ilícita.
Tal significa que, nessa interpretação do regime legal, se procura, através de um critério objectivo legalmente estabelecido, introduzir uma relação de dependência entre a moldura abstracta da coima e o benefício económico que o arguido retirou da prática da infracção, benefício esse calculado a partir do valor do volume de negócios do ano em que cessou a prática da infracção.
Ao fazer repercutir no valor da coima eventuais vantagens auferidas pelo arguido, o regime legal, na interpretação acolhida, visa, desde logo, desencorajar a prática da infracção.
Tal significa que da aplicação do regime legal, na interpretação acolhida pela decisão recorrida, verificar-se-á, necessariamente, uma correspondência entre o benefício económico obtido pela prática da infracção e o valor da coima aplicável.
Assim, o regime legal, na interpretação acolhida pela decisão recorrida, no sentido de que, para efeitos de determinação do limite máximo da moldura abstracta da coima, se deve entender a referência feita a “volume de negócios do último ano” como significando aquele ano em que cessou a prática ilícita, assegura que cada arguido não é penalizado em termos relativamente mais gravosos do que sucede relativamente a outro arguido.
Ao estar directamente relacionada com o benefício económico efectivamente auferido, não se põe relativamente ao critério do cálculo do seu valor qualquer problema de tratamento desigual.
Tal significa que o parâmetro invocado pela recorrente – o princípio da igualdade – é inidóneo para apreciar, à luz da Constituição, a norma sub judicio.
Por último, diga-se que não faz qualquer sentido a alegação da recorrente de que a aplicação do regime legal, na interpretação acolhida, poderia levar à verificação de situações em que, por vicissitudes processuais, fossem proferidas várias decisões em processos separados relativamente a vários arguidos que tenham comparticipado em determinada infracção anticoncorrencial, podendo suceder que relativamente a cada arguido fossem considerados volumes de negócios diferentes, na medida em que o ano em que houvesse cessado a prática ilícita fosse também diferente.
E não faz qualquer sentido, porque de duas uma: ou a infracção é singular e, nesse caso, não se verifica sequer o cenário imaginado pela recorrente ou a infracção é plural, caso em que a sua tramitação contra-ordenacional é sempre conjunta, existindo uma única decisão relativamente a todos os arguidos no âmbito de um único processo.
III – Decisão
Nestes termos, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a dimensão normativa, reportada aos artigos 43.º, n.º 1, alínea a) e 46.º, ambos da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de, para efeitos de determinação do limite máximo da moldura abstracta da coima, se dever entender a referência feita a “volume de negócios do último ano” como significando aquele ano em que cessou a prática ilícita;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
Lisboa, 12 de Julho de 2011. – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.