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Processo n.º 774/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com os seguintes fundamentos:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não poder conhecer-se do objecto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Importa desde logo rejeitar o recurso na parte em que o mesmo vem interposto ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pois o mesmo tem por objecto uma questão de constitucionalidade e não uma questão de “ilegalidade qualificada” a que se refere essa disposição legal.
Rejeitado o recurso ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, importa verificar se o mesmo é admissível ao abrigo do disposto na alínea b) dessa mesma disposição.
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Quando interpostos ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de requisitos específicos, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento.
Em primeiro lugar, é necessário que o objecto do recurso seja uma norma (em si mesma ou numa sua interpretação), tal como que tal norma (ou dimensão interpretativa questionada) tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Em segundo lugar, torna-se necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de forma que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso.
E, em terceiro lugar, é mister que tenha havido o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Ora, compulsados os autos, verifica-se que a questão de constitucionalidade submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, tal como delimitada pela recorrente no requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade, depois de aperfeiçoado, não corresponde, nos seus precisos termos, ao modo como a recorrente suscitou a questão de constitucionalidade durante o processo.
No requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade, depois de aperfeiçoado, a recorrente enuncia a questão de constitucionalidade nos seguintes termos:
[…]
É que, se este tribunal entendeu, e bem, que o nº 1 do art. 1817 do C. Civil é inconstitucional, por fazer precludir, de forma desproporcionada e inaceitável, os direitos à identidade pessoal e de estabelecer família, contrariando normas e princípios fundamentais da Constituição nomeadamente os ínsitos nos seus arts. 12º, 16º, 18º, 25º, nº 1, 26º e 36º, então o mesmo terá que entender-se quanto aos arts. 494º, 497º, 673º e 674º do C. P. Civil na estrita medida que colidem com os mesmos princípios e preceitos e no restrito âmbito da faculdade de intentar a todo o tempo acção de investigação de paternidade ou maternidade.
Assim, no que se refere ao art. 494º do C. P. Civil, a alínea i) tem que considerar-se inconstitucional apenas e só quanto à sua aplicação às acções de investigação de que aqui se trata;
O nº 2 do art. 497º, que enuncia o objectivo pragmático de evitar contradizer ou reproduzir uma decisão anterior, tem igualmente que considerar-se inconstitucional quando aplicado às acções de investigação e nessa estrita medida, porque os princípios e normas constitucionais atrás enunciadas, pela sua própria natureza constitucional e por respeitarem a direitos fundamentais do homem, não consentem uma tão drástica e desproporcionada preclusão de direitos, tal como acontecia com o nº 1 do art. 1817º do C. Civil que operava de modo absolutamente análogo.
No que se refere aos arts. 673º e 674º do C.P.C. que enunciam o alcance do caso julgado e os seus efeitos nas questões de estado, o que sustentamos também é que não pode aceitar-se, por inconstitucional, que, apesar da sua enunciação normativa com carácter geral, sejam interpretados com o sentido de que abranjam as acções de investigação de que aqui se trata.
Deverá, por isso, ser declarada a sua inconstitucionalidade na medida que se pretenda interpretar estas normas processuais como abrangendo as acções de investigação.
Simplesmente, tal modo de enunciar a questão não corresponde à formulação utilizada pela recorrente ao suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, designadamente nas suas contra-alegações às alegações do recurso de revista interposto para o Tribunal a quo.
Nessas contra-alegações a recorrente, então recorrida, havia suscitado a questão de constitucionalidade no ponto 6 das respectivas conclusões, nos seguintes termos:
6. De onde decorre que as disposições dos arts. 493.º, 494.º e 497.º e segs. do C.P. Civil, na estrita medida que se proponham aplicar-se às acções de investigação de paternidade ou maternidade, têm que ter-se também como inconstitucionais, tal como acontece com o n.º 1 do art. 1817º do C. Civil.
Já na motivação, a recorrente, então recorrida, havia suscitado a questão de constitucionalidade do seguinte modo:
A questão a que importa responder é se a legislação processual ordinária, (art. 493.º, n.º 2 e 494.º [por lapso, escreveu-se 294.º], alínea i) do C.P.C.) ao considerar abrangidas pelo princípio do caso julgado as acções de investigação de paternidade não oficiosas, colide ou não com as normas constantes dos arts. 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como reconhecido acontecer com o n.º 1 do art. 1817º do C. Civil pelo Ac. do Tribunal Constitucional n.º 23/2006 […].
E a resposta é para nós óbvia e indiscutível:
Claro que colide e é inconstitucional, na estrita medida em que se pretenda aplicável a estas acções de investigação,
E pelas mesmíssimas razões porque foi declarado inconstitucional o n.º 1 do art. 1817.º do C. Civil.
A falta de correspondência é manifesta.
Desde logo, só agora, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, se reporta a questão de constitucionalidade também aos artigos 673.º e 674.º do Código de Processo Civil, preceitos esses aos quais nenhuma referência era feita na formulação da questão de constitucionalidade durante o processo.
Além disso, e salvo o caso da referência feita ao artigo 494.º, alínea i) do Código de Processo Civil, inexiste uma correspondência entre os preceitos a que se reporta a questão de constitucionalidade. Enquanto que, durante as instâncias, a recorrente reportava a questão de constitucionalidade também ao artigo 493.º do mesmo diploma, abandonou tal referência na enunciação da questão de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional, tal como delimitada no requerimento de interposição do recurso, depois de aperfeiçoado. Inversamente, a referência neste último feita ao artigo 497.º, n.º 2 não tem correspondência na formulação utilizada pela recorrente ao suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, pois na motivação das contra-alegações apresentadas perante o Tribunal a quo nem sequer é feita qualquer referência ao artigo 497.º do Código de Processo Civil (muito menos ao n.º 2 desse preceito), sendo inadequada, por para tanto não se oferecer qualquer justificação, a referência subitamente feita no ponto 6 das respectivas conclusões, em termos globais, ao artigo 497.º.
Ora, inexistindo uma perfeita correspondência entre o modo como a questão de constitucionalidade que integra o objecto do presente recurso é enunciada e a formulação utilizada durante o processo, e sendo seguro que não cabe ao Tribunal Constitucional proceder, ele próprio, à delimitação do objecto do recurso, deve entender-se que a recorrente não cumpriu o ónus de prévia suscitação da questão de constitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, tal como é exigido pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
É que, integrando o objecto do presente recurso de constitucionalidade uma única questão, não é sequer possível conhecer apenas parcialmente do mesmo, limitando-se o Tribunal a apreciar a questão de constitucionalidade apenas reportada ao artigo 494.º, alínea i) do Código de Processo Civil – único preceito a que é feita referência quer durante o processo quer no requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade –, pois tal implicaria não propriamente restringir o objecto do recurso – dele se conhecendo apenas em parte – mas, mais do que isso, proceder a uma redelimitação do objecto do mesmo, o que não é admissível.
Tanto basta para que se não possa admitir o presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificada dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC [por lapso, indicou-se que a reclamação era apresentada ao abrigo dos artigos 69.º da LTC e do artigo 700.º, n.º 3 do Código de Processo Civil], com os seguintes fundamentos:
A Recorrente no pode de modo nenhum aceitar a decisão proferida no sentido de este tribunal no conhecer o objecto do recurso.
Um tribunal constitucional, seja ele qual for, tem por especial função fazer prevalecer princípios fundamentais da organização de um Estado e da sociedade a que corresponde – no caso, direitos inalienáveis do Homem – sobre a legislação que o legislador comum vai produzindo e a forma como os tribunais a aplicam.
Tal tem implícito que seja um tribunal em que os valores que prossegue se sobreponham a labirintos formais que entorpeçam ou mesmo impeçam a sua acção.
Protestando todo o devido respeito pela Sra. Conselheira que subscreve a decisão de que se reclama, parece-nos indubitável que esta incorre num excesso de formalismo que tem como resultado a conclusão de que a Reclamante não teria feito aquilo que sem dúvida fez sobejamente.
Lê-se na fundamentação da decisão:
“Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito [art. 70º, nº 1, da LTC], cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
“Quando interpostos ao abrigo do disposto na alínea b), do nº 1 do art. 70º, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de requisitos específicos, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento”.
“Em primeiro lugar, é necessário que o objecto do recurso seja uma norma...”
“Em segundo lugar, torna-se necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo...”
São estes dois requisitos que importa apreciar.
Em primeiro lugar, o que queremos sublinhar quanto ao primeiro deles é que resulta com toda a clareza a posição assumida pela Recorrente ao longo do processo, com especial destaque para as alegações nos recursos de apelação e de revista:
– o princípio do caso julgado é um princípio de ordem adjectiva e tem um fim eminentemente pragmático; não é um princípio absoluto;
– e está consagrado na lei ordinária que tem que submeter-se à Constituição;
– assim, da mesma forma que foi considerado inconstitucional o nº 1 do art. 1817º do C.C., e pelas mesmas razões, devem considerar-se inconstitucionais as normas sobre o caso julgado constantes da lei ordinária na interpretação ou na extensão em que se pretendam aplicáveis às acções não oficiosas de investigação de paternidade ou maternidade.
Esta é a única forma razoável de interpretar a posição sempre mantida pela Recorrente nas suas alegações de recurso.
A Recorrente considera inconstitucionais TODAS as normas relativas ao caso julgado que obstem à reapreciação do estabelecimento da paternidade quanto a acções não oficiosas.
Isto está inequivocamente implícito no facto de se sustentar que a acção deveria seguir para julgamento, por não haver, numa situação destas, caso julgado.
Nos parágrafos, 4º, 5º, 6, 7º, e 8º da pág. 14 das alegações para o Tribunal da Relação, escreveu-se:
«A questão a que importa responder é «se a legislação processual ordinária (art. 493º, nº 2, e 494º, alínea i)), ao considerar abrangidas pelo princípio do caso julgado as acções de investigação de paternidade não oficiosas, colide ou não com as normas constantes dos arts. 16º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como foi reconhecido acontecer com o nº 1 do art. 1817º do C. Civil pelo Ac. do Tribunal Constitucional nº 23/2006, proferido no proc. nº 885/2005, publicado no D.R. de 8/2/2006,
«E a resposta é para nós óbvia e indiscutível:
«Claro que colide e é inconstitucional, na estrita medida em que se pretenda aplicável a estas acções de investigação,
«E pelas mesmíssimas razões por que foi declarado inconstitucional o nº 1 do art. 1817º do C. Civil»
E prosseguiu-se no 1º parágr. da p. 15:
«Tanto nas disposições sobre o caso julgado como na do nº 1 do art. 1817º está subentendido o objectivo meramente de certeza e segurança jurídicas, e foi este o objectivo que se entendeu dever ceder no confronto com os direitos fundamentais consignados nas normas constitucionais invocadas na decisão do Tribunal Constitucional».
Resulta com toda a clareza deste último parágrafo transcrito que nos referimos às «disposições sobre o caso julgado» sem excluir qualquer delas,
E, se, no segundo dos parágrafos transcritos (5º parágrafo de fls. 14 das mencionadas alegações) se referiram entre parêntesis os arts. 493º, nº 2, e 494º, alínea i) do C.P.C., tal não teve qualquer propósito de enumeração taxativa de todas as disposições postas em causa, pretendendo-se apenas evidenciar aquelas que, em termos práticos, mais directamente obstam à instauração de nova acção.
De resto, o texto do parágrafo em si, excluída a parte entre parêntesis põe em causa com toda a evidência, e salienta a negrito «a legislação processual ordinária» que considera «abrangidas pelo princípio do caso julgado as acções de investigação de paternidade não oficiosas», dizendo que essa legislação colide com as normas constitucionais no texto referidas.
As normas sobre o caso julgado não são um mundo, nem uma realidade vaga e indefinida, são um número restrito de disposições cuja identificação não oferece dúvidas a qualquer jurista, as quais versam sobre a definição do seu conceito, dos seus requisitos e do seu alcance, a sua classificação como excepção dilatória.
E tais normas estão de tal modo inextricavelmente entretecidas na construção desta figura jurídica que funcionam como uma só.
Ao pôr-se em causa a ocorrência de caso julgado quanto às acções de investigação de paternidade não oficiosas, são necessariamente todas essas normas que estão em causa, porque nenhuma delas poder ser entendida como aplicável a estas acções.
Os parágrafos atrás transcritos foram reproduzidos nas alegações da revista (pág. 9), pelo que também nelas foram postas em causa todas as normas sobre o caso julgado quando interpretadas no sentido de que sejam aplicáveis às acções de investigação de paternidade não oficiosas.
Também no requerimento oferecido neste tribunal a 2/2/2011 se diz logo no nº 1 que tanto nas alegações da apelação como nas da revista, «a Recorrente sustentou que as normas relativas ao caso julgado (sem excepção)...
Perante isto, a falta apontada à Reclamante resume-se ao facto de não ter recitado uma a uma e sem falhar todas as disposições legais sobre o caso julgado, tanto nas alegações da revista, como nas da apelação e na interposição de recurso para este tribunal.
Mesmo que se concedesse que a Reclamante deveria ter procedido à indicação taxativa, e não global, das normas relativas ao caso julgado que entende não serem aplicáveis às acções não oficiosas de investigação de paternidade, por inconstitucionais quando entendidas com esse alcance, sempre seria um facto que identificou normas concretas.
Assim,
– nas alegações da apelação, para além de se terem posto em causa todas as normas relativas ao caso julgado, aludiu-se especificamente, no 5º parágrafo de folhas 14 da motivação, aos arts. 493º, nº 2, e 494º, alínea i), e na alínea m) das conclusões aos arts. 493º, 494º e 497º e sgs. do C.P.C.
– nas contra-alegações da revista, como se reconhece na decisão recorrida, para além de se terem posto em causa na motivação, todas as normas relativas ao caso julgado, indicaram-se como violadoras da constituição (na sua interpretação posta em causa, obviamente), os arts. 493º, nº 2 e 494º, alínea i), e na conclusão 6. os arts. 493º, 494º e 497º e sgs. do C.P.C.
Daqui decorre que, pelo menos quanto aos artigos 493º, 494º, 497º e sgs. houve expressa referência em ambos os recursos.
Assim, mesmo que, num critério rigorista se considerasse que não teria havido alusão expressa nas instâncias aos arts. 673º e 674º do C.P.C. e que no requerimento de aperfeiçoamento da interposição do recurso para este tribunal não foi referido o art. 493º do mesmo código, sempre subsistiriam três normas expressamente referidas ao logo do processo e neste tribunal: as dos arts. 494º, 497º e 498 do C.P. Civil,
De onde decorre que é destituída de fundamento a conclusão lavrada no penúltimo parágrafo de fls. 7 da decisão sumária de que «deve entender-se que a recorrente não cumpriu o ónus de prévia suscitação da questão de constitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida».
Não, não pode entender-se tal, pelo menos em relação aos arts. 493º, 494º, 4972º e sgs. (particularmente o 498º) do C. P. Civil.
É verdade que o regime do caso julgado não se confina nestes artigos, mas, como é evidente, se se considerar que estes artigos não têm aplicação às acções a que nos vimos reportando, tal é suficiente para a finalidade tida em vista, porquanto deixaria de ocorrer excepção dilatória em nova acção proposta, e o fim de evitar que o tribunal fique colocado na situação de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior deixaria de ser tido em conta.
Não concordamos com a afirmação de que, a aceitar-se o recurso, o tribunal ficaria limitado «a apreciar a questão de constitucionalidade apenas reportada ao artigo 494º, alínea i) do Código do Processo Civil» visto que, mesmo na perspectiva restritiva que inspira a decisão de que se reclama, os arts. 497º e 498º foram também sempre postos em causa expressamente.
De qualquer modo, insistimos, a Recorrente sempre pôs em causa a figura do caso julgado na configuração e efeitos jurídicos que lhe conferem todas as normas em número restrito e consabido, que o delineiam.
Mas, sendo certo, como é, que sempre claramente indicou como violadoras da constituição as disposições dos arts. 494º, 497º e 498º do C. P. Civil, o mais que se concebe é que este tribunal restrinja o objecto do recurso por forma a circunscrevê-lo ao conteúdo destas normas.
Ir além disto, insistindo num formalismo exagerado, que vai além de toda a razoabilidade, é fazer do art. 75º-A, nº 1, da LTC uma interpretação inconstitucional porque o seu fim é proporcionar a mais importante as finalidades de uma constituição, que é condição da sua subsistência e supremacia real – que é a de se fazer respeitar.
No caso, há particular violação do art. 280º, com a epígrafe “fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade”, nomeadamente do seu nº 1, alínea b) que consagra que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O nº 1 do art.75º-A da LTC não pode ser objecto de qualquer interpretação restritiva; é uma norma de carácter meramente processual que não pode limitar por qualquer forma o alcance do nº 1 do art. 280º da C.R., além do mais, porque não estamos perante um mero interesse particular da Recorrente, mas perante o próprio interesse público na fiscalização da constitucionalidade.
Entendemos mesmo que em qualquer caso de dúvida sobre a admissibilidade de um recurso deste tipo, a decisão só pode ser a de admiti-lo, sendo abusiva e inconstitucional decisão diversa.
Só assim se pode assegurar plenamente a prevalência efectiva da Lei Fundamental no contexto do ordenamento jurídico e impedir a sua subversão.
Nestes termos,
Deve ser revogada a decisão sumária de que se reclama por inconstitucional (art. 280º da C.R.) e sem apoio no art. 75º LTC, e admitir-se o recurso relativamente a todas as normas do C.P.C. que configuram o caso julgado e estabelecem os seus requisitos, o seu conceito, a sua qualificação como excepção dilatória e inerentes consequências, o seu fim e o seu alcance, ou, se assim não se entender, admitir-se, pelo menos, o recurso quanto às normas dos arts. 494º,497º e 498º do C.P.C., como é de elementar
Justiça
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. A reclamante não contesta a decisão sumária na parte em que aí se decide não conhecer do objecto do recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
A reclamante apenas dirige a presente reclamação à parte da decisão reclamada em que se decidiu não admitir o recurso ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
4. Nos termos da Constituição e da lei, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo [artigo 280.º nº 1, alínea b) da CRP; artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, LTC].
Por assim ser distingue-se o ordenamento jurídico português de outros, dominantes pelo menos na Europa, que recortam de modo diverso o objecto do controlo de constitucionalidade que é confiado às respectivas jurisdições constitucionais. Em Portugal, esse controlo incide sempre sobre normas e só sobre normas, excluindo-se por isso a possível sindicância de actos do poder público que não sejam normativos – v.g., as decisões judiciais, em si mesmas consideradas – ainda que estes tenham sido eventualmente tomadas, nos casos concretos, em violação de direitos subjectivos constitucionalmente tutelados.
No entanto, o Tribunal tem, desde sempre e em jurisprudência constante, afeiçoado o conceito de norma para efeitos do controlo de constitucionalidade, atribuindo-lhe um conteúdo funcionalmente adequado às exigências do sistema constitucional no seu conjunto e, portanto, a uma eficiente tutela dos direitos fundamentais. É assim que sempre se tem dito, em orientação uniforme, que a norma cuja [in]constitucionalidade, em fiscalização concreta, o Tribunal julga não é apenas necessariamente aquela que se inserta em certo preceito legal independentemente da específica interpretação que lhe seja dada pelo juízo a quo no caso concreto. A norma cuja [in]constitucionalidade se julga é a que resulta do texto da lei (que pode incluir um ou vários preceitos), com a “dimensão” ou o “sentido” que a decisão de que se recorre, naquele caso, por interpretação, lhe pode ter atribuído.
Sendo este o “sistema”, imprescindível é que “a identificação da base legal à qual se imputa a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada [seja] um momento insuprível do controlo da constitucionalidade, na medida em que importa saber se essa base legal elegida para a fiscalização da constitucionalidade se apresenta como idónea a suportar esse sentido [o sentido “interpretativo” cuja inconstitucionalidade se invoca, e que terá sido a razão de decidir da sentença recorrida]” (Acórdão nº 175/2006, e jurisprudência aí citada, toda disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
5. No caso, pretende o reclamante, essencialmente, que o Tribunal julgue se são inconstitucionais as normas de direito processual civil relativas ao princípio do caso julgado, na medida em que abranjam as acções não oficiosas de investigação da paternidade.
Apesar de não ter sido constante a identificação da “base legal” à qual se imputa a norma – entendida no sentido funcional acima descrito – cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, variando o âmbito dessa identificação no requerimento, aperfeiçoado, de interposição do recurso de inconstitucionalidade e nas alegações oferecidas perante o Tribunal a quo, a verdade é que, compulsados os autos, se verifica que houve, na variação, um certo elemento de constância. O reclamante sempre ancorou a “norma” cuja inconstitucionalidade pretenderia ver apreciada – tanto nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quanto no requerimento (aperfeiçoado) de recurso para o Tribunal Constitucional – ao disposto no artigo 494.º, nº 1, alínea i) do Código de Processo Civil.
Assim sendo, e verificando-se perfeitos os demais pressupostos de admissibilidade do recurso, é de admitir o mesmo, deferindo-se assim, nestes termos, a reclamação apresentada.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Admitir o recurso de constitucionalidade quanto à norma constante da alínea i) do nº 1 do artigo 494.º do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido segundo o qual a excepção dilatória do caso julgado abrange, também, as acções não oficiosas de investigação da paternidade;
b) Ordenar, nos termos do disposto no artigo 79.º da LTC, que sejam produzidas no Tribunal Constitucional as alegações de recurso.
Lisboa, 28 de Setembro de 2011. – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.