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Processo n.º 473/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclama, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2011 (fls. 28), que lhe indeferiu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional de um despacho proferido ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Penal (CPP).
Sustenta o reclamante que “mesmo a entender-se no STJ que o recurso interposto da RP para aquela instância não era admissível com base no art. 400º-1 do CPP, deveria ter recaído pronúncia sobre as verdadeiras razões que tinham levado o impetrante a reclamar, e que tinham a ver não apenas com nulidades insanáveis, mas também e sobretudo porque elas foram cometidas com base na aplicação dos arts 411.º e 412º-3 e 4 do CPP, que são manifestamente inconstitucionais na interpretação que lhe foi dada na RP e, também, no STJ, que, ao deixar de as conhecer, procedeu como se com elas concordasse, de contrário, teria dado provimento à reclamação que lhe fora dirigida.
Efectivamente, a recusa por parte do STJ em pronunciar-se sobre esse duplo desiderato equivale, in casu, a decisão que as julgasse inverificadas”.
O Ministério Público pronuncia-se pela improcedência da reclamação pelas seguintes razões:
“5.º - Conforme vem expressamente mencionado na reclamação em análise, a questão da inconstitucionalidade é a da interpretação que foi efectuada pelo STJ (e também pelo Tribunal da Relação), dos art.ºs 411.º e 412.º, nºs 3 e 4, do CPP.
6.º - É certo que se pode mencionar não se encontrar suficientemente explicitada a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade vem questionada.
A este propósito, convém lembrar que a suscitação e enunciação de questão de inconstitucionalidade não se basta com a afirmação de que a interpretação aplicada viola a Constituição ou os seus princípios, mas com a especificação, de forma clara e contundente, das razões da alegada desconformidade da norma ou interpretação normativa.
7.º - Mas, dúvidas não restam, que a interpretação questionada é das referidas normas, art.ºs 411.º e 412.º, n.º 3 e 4, do CPP.
8.º - Ora, essas normas não foram, na realidade, aplicadas no despacho recorrido, de fls. 18 a 22, do STJ, que, como lhe competia, se limitou a apreciar os requisitos sobre a admissibilidade do recurso para o STJ, não entrando na apreciação do mérito do recurso, nem das nulidades invocadas (como, aliás, vem referido na parte final do despacho).
9.º - Assim, as normas cuja inconstitucionalidade vem questionada, não foram aplicadas pelo despacho recorrido, não constituem a sua ratio decidendi.
10.º - Pelo que, verifica-se a falta de um pressuposto essencial para o conhecimento do recurso interposto ao abrigo do art.º 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, razão pela qual, entendemos que a presente reclamação deve ser indeferida.”
2. Resulta dos autos o seguinte:
a) Em 27 de Abril de 2011, o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu o seguinte despacho:
“1. Por decisão da 1ª instância foi o arguido A. condenado, como autor material, de um crime de infracção de regras de construção, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 277.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 e 285.º, ambos do CP, na pena de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e ainda a pagar aos demandantes Dinis Batina e Filomena Batina a quantia de € 92.500 por danos patrimoniais e não patrimoniais e ao Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro E.P.E. a quantia de € 1.793,51.
Não se conformando recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto.
Na Relação foi proferida decisão sumária, ao abrigo do art. 417.º, n.º 6, alínea b), do CPP, rejeitando o recurso interposto da decisão da 1ª instância por intempestivo.
Notificado desta decisão reclamou o arguido para a conferência, nos termos do n.º 8 do art. 417.º do CPP.
O acórdão recorrido, proferido em 07.07.2010, indeferiu a reclamação apresentada.
2. Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso não foi admitido por despacho de 09.12.2010, nos termos do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
O arguido reclamou da não admissão do recurso, para a conferência e subsidiariamente para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 28 e 29), invocando, em síntese, os seguintes fundamentos:
- Ao caso, deve ser aplicada a redacção da alínea e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em vigor à data da prática dos factos, porque mais favorável ao arguido, em virtude de ali se determinar que só são irrecorríveis os acórdãos, proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa.
- O recurso não podia ter sido rejeitado por extemporâneo, sendo o art. 411.º, n.º 4, do CPP, inconstitucional na interpretação que lhe foi dada na decisão sumária e também nesta última decisão, por violação dos arts. 13.º, 18.º e 20.º, da CRP.
- A interpretação do referido art. 411.º, n.º 4, do CPP mostra-se contrariada pelo art. 412.º, n.ºs 3 e 4, integrando, aquela decisão a prática de uma nulidade insanável.
- Invoca nulidade cometida no processo por não ter sido convidado pelo relator a reformular as conclusões do recurso.
A fls. 89 a 91 foi proferido novo despacho onde foi entendido que a pretensão legal do arguido de reclamar para a conferência não tem fundamento legal, e que inexistem as nulidades invocadas no despacho que não admitiu o recurso. A reclamação foi mandada autuar por apenso. E a fls. 93 ordenada a sua remessa ao STJ.
3. O acórdão de que o reclamante recorre foi proferido em 07.07.2010 e a decisão da 1ª instância em 27.08.2009; logo, ambas as decisões foram proferidas na vigência da Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, que alterou o Código de Processo Penal.
Para efeitos da conjugação do regime dos recursos com o art. 5º, n.º 2, alínea a), do CPP, o regime aplicável será o que vigorar no momento em que ficam definidas as condições e os pressupostos processuais do próprio direito ao recurso, isto é, no momento em que for primeiramente proferida uma decisão sobre a matéria da causa, ou seja, a decisão da primeira instância.
No caso, a decisão primeiramente proferida teve lugar, como se referiu, já na vigência do novo regime de recursos resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, donde ser este o regime aplicável. Aliás, esta solução resulta também da argumentação e decisão do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 4/2009 de 18.02.09, (DR, 1 Série, de 19-03-2009).
Vejamos pois:
O reclamante interpôs recurso para este Supremo Tribunal do acórdão da Relação de Lisboa proferido em 07.07.20 10 que rejeitou o recurso por extemporâneo.
O modelo dos recursos em processo penal está organizado segundo a solução e os princípios do recurso como remédio para erros de facto ou de direito de decisões judiciais, mas com o enquadramento na prefiguração e organização processual e hierárquica de graus de recurso.
O recurso como remédio opera e tem de enquadrar-se no âmbito e no limite do respectivo grau hierárquico, no sentido em que todo o remédio apenas se pode efectivar se se compreender ainda no âmbito hierárquico da organização por graus de recurso, segundo pressupostos de admissibilidade objectivos e prefixados.
O remédio não pode valer acto a acto, por referência a decisões fragmentárias, mas só actua se os pressupostos gerais o permitirem dentro do respectivo grau de recurso admissível.
Nesta matéria e na conjugação recurso-remédio (funcional) – graus de recurso (hierárquico e de organização e repartição processual), a regra é a coincidência do recurso-remédio com a máxima amplitude no primeiro grau de recurso, que constitui a regra geral do art. 427.º CPP.
Este princípio significa que em todas as situações que não admitam, processualmente, um outro grau, todas as questões pertinentes e que integrem o objecto do processo, ou que estejam referidas e constituam pressupostos ao conhecimento do objecto do recurso, obtêm decisão definitiva nesse grau (salvo, obviamente, as específicas questões relativas a contencioso de constitucionalidade).
Assim:
No domínio dos recursos e das normas que disciplinam a competência em razão da hierarquia, o art. 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP dispõe que há recurso para o Supremo Tribunal das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas em recurso pelas relações nos termos do art. 400.º.
E deste preceito destaca-se a alínea e) do seu n.º 1, que estabelece serem irrecorríveis os «acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo».
O objecto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronúncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa - ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.
O acórdão em causa não conheceu, e muito menos a final, do objecto do processo, precisamente porque ao rejeitar o recurso por extemporaneidade não se pronunciou sobre o mérito da causa.
Com efeito, a apreciação dos requisitos sobre a admissibilidade do recurso reporta-se a questões de ordem processual (legitimidade, interesse em agir, respeito pelo prazo de interposição) que precedem o conhecimento do objecto do processo nos limites definidos pelo âmbito do recurso, mas o âmbito do recurso não se identifica com o objecto do processo.
Logo, o recurso não é admissível ao abrigo do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
4. No que respeita à inconstitucionalidade imputada ao art. 411.º, n.º 4, do CPP, e às eventuais nulidades invocadas não são as mesmas de considerar, por serem estranhas ao objecto e fundamentos da reclamação, nos termos do art. 405.º, n.º 1, do CPP.
5. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação.”
b) O recorrente interpôs recurso deste despacho para o Tribunal Constitucional mediante o seguinte requerimento:
“A., com os sinais dos autos em que é recorrente, expõe e requer a V. Excelência o seguinte:
1. Apesar de mui sábias as considerações que serviram de base à prolação do douto despacho que lhe indeferiu a reclamação que antecede e da clareza dos seus fundamentos – tanto assim, que ainda hesitou, até este momento, em conformar-se com o decidido – afigura-se-lhe que a norma prevista no art. 411° e 412° do CPP, na interpretação que lhe foi dada pelo Exmo. Desembargador-Relator na RP e, agora, vinda de confirmar por Vossa Excelência, é incompatível com os preceitos consignados na CRP.
2. Efectivamente, as decisões proferidas na RP redundaram sempre em tergiversação inaceitável, pois da nulidade que deu origem a outras que inquinaram todo o processado desde que o recurso penal foi distribuído ao Exmo. Relator resultou logo, ab initio, no despacho que o rejeitou como extemporâneo, não permitindo, assim, ao recorrente que fruísse do prazo adicional de 10 dias para tomar posição sobre a matéria de facto.
3. Tais nulidades são as subsumíveis à previsão do art. 379º-1.c) e 2, do CPP, e que foram logo arguidas no requerimento interposto para a Conferência, e, a seguir, no requerimento de recurso para o STJ, e, por último na reclamação dirigida a V.
Excelência.
4. Ora, quanto ao impetrante, não restam dúvidas quanto à inconstitucionalidade do art. 411°-4 do CPP, pois foi precisamente por ter feito uma interpretação contra legem desse normativo – de todo arredada da nossa CRP – que aquele despacho de rejeição do recurso, por extemporâneo, foi proferido, já que, se o Exmo. Relator entendia que as alegações do recorrente eram confusas e as conclusões prolixas, deveria tê-la mandado corrigir. O que não fez.
5. Tal inconstitucionalidade, reportada aos arts 4110 e 412°-3 e 4 do CPP, foi sempre arguida ab initio, precisamente para que o Tribunal Constitucional possa dela tomar agora conhecimento e, depois, para que o TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (*) possa, também, vir a sindicar a tão drástica quanto injusta decisão tirada na Rporto, já que a decisão em mérito, ao considerar o recurso extemporâneo, também violou o disposto no art. 6°-1 da Convenção dos Dir. do Homem, como se decidiu no recente acórdão proferido na 2ª SECÇÃO de Estrasburgo (Convenção), in CASO PIJEVSCHI c. PORTUGAL, Queixa nº 6830/05, em 13 de Novembro de 2008.
6. De igual modo, pelo Assento (Ac. Un.) 2/2003, de 16 de Janeiro de 2003, publicado no Diário da República de 30 de Janeiro de 2003o próprio Supremo Tribunal de Justiça, em Plenário das Secções Criminais, decidiu que: “...No acórdão n.º 44/2004, de 10 de Janeiro de 2004, publicado no DR de 20 de Fevereiro de 2004, o Tribunal Constitucional julgou, em caso semelhante ao presente, que a interpretação segundo a qual o artigo 411.0 do CPPI obstaria à admissibilidade de um recurso interposto no prazo previamente fixado pelo tribunal de primeira instância violaria os direitos da defesa, consagrados no artigo 32.° da Constituição. O Supremo Tribunal de Justiça também já anulou uma decisão similar ao acórdão do Tribunal da R.Ev., considerando que era violadora do carácter equitativo do processo (Acórdão de 24 de Setembro de 2003, disponível na base de dados do Ministério da Justiça em http://www.dgsi.pt).
7. Os fundamentos vindos de invocar levam o impetrante a interpor recurso da douta decisão em mérito, a subir imediatamente e nos próprios autos ao Tribunal Constitucional, tudo nos termos dos arts 72°-2 e 75°-1 da LTC.
Recurso este cuja motivação já vai aduzida no corpo da Reclamação dirigida a Vossa Excelência, dando-se aqui o seu teor por inteiramente reproduzido, sendo que o presente requerimento:
a) Cumpre, inteiramente, com a prescrição do art. 75°-A.2, na medida em que tal inconstitucionalidade já fora suscitada na 1ª e na 2ª instância recorridas e na própria Reclamação dirigida a V. Excelência.
b) Vem interposto ao abrigo da al b) do art. 70°-1 da LTC, considerando particularmente violados os arts e, reflexamente, o princípio constitucional do livre acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consignado no art. 20°, bem como os demais ínsitos nos arts 13°-1 e 18°-3, maxime no 32°, todos da CRP e com referência ao disposto nos arts 202°, 204° e 205°-1 da LTC.
c) Esse requerimento foi indeferido por despacho de 17 de Maio de 2004, com o seguinte teor:
“O recorrente A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da LTC para que seja apreciada a inconstitucionalidade dos arts. 411.º e 412.°, n.ºs 3 e 4, do CPP.
Acontece que estas normas não foram aplicadas no despacho que conheceu da reclamação de fls. 103 a 108.
Esta decisão fundamentou a inadmissibilidade do recurso para o STJ, na alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.
Assim sendo, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por as normas dos arts. 411.º e 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP não terem sido aplicadas na decisão impugnada, o que inviabiliza qualquer julgamento por parte do TC, porquanto os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental, só podendo o Tribunal Constitucional conhecer de uma questão de constitucionalidade quando exerça influência no julgamento da causa.”
3. O recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, disposição que permite recurso das decisões dos demais tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. E, embora a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se quer ver apreciada não esteja explicitada com o rigor exigido pelo n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC, não há dúvida que está em causa uma questão relativa a uma certa interpretação dos artigos 411.º e 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP. Assim, sem considerar outras razões para que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional fosse inadmissível, seria necessário que a questão do prazo ou do objecto do recurso para a Relação ou da respectiva motivação tivesse integrado a ratio decidendi da decisão que indeferiu a reclamação do despacho que não admitiu o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Ora, é manifesto que, como se sustenta no despacho reclamado (fls. 28), o despacho que indeferiu a reclamação e de que se pretendeu recorrer para o Tribunal Constitucional (fls. 18) não fez aplicação, nem sequer implícita, das referidas normas. Limitou-se a decidir que o acórdão da Relação que considerara inadmissível o recurso da sentença condenatória não era recorrível, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP e que, nos termos do n.º 1 do artigo 405.º do mesmo Código, nada mais lhe competia apreciar. Nada decidiu quanto ao prazo de interposição de recurso para a Relação. Deste modo, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, só poderiam ser trazidas ao Tribunal Constitucional questões que respeitassem à constitucionalidade de qualquer uma destas normas – respeitantes à admissibilidade de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça e ao âmbito da reclamação – e não daquelas outras que o recorrente pretende ver apreciadas.
É, pois, manifesta a improcedência da reclamação.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, com vinte unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 7 de Julho de 2011. – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.