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Processo n.º 110/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A assistente e demandante civil A. reclama, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante LTC), do despacho de 8 de janeiro de 2014, proferido pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que não lhe admitiu o recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional.
Sustenta que o recurso deve ser admitido, formulando o seguinte remate conclusivo:
«I. A recorrente reclamou perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de despacho do Tribunal da Relação que rejeitou o seu recurso para aquele tribunal, ao abrigo do artigo 405.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.
II. No artigo 23 dessa reclamação, e na sequência da explanação exaustiva sobre a interpretação do direito infraconstitucional (cf. nomeadamente arts. 10 a 17), a recorrente/reclamante preconizou de modo claro que uma interpretação do complexo normativo constituído pelos artigos 400.º, n.º 1, alínea c), n.º 2 e n.º 3 e 432.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal em que se fizesse prevalecer a al. c) do n.º 1 do art. 400.º seria uma «interpretação normativa» inconstitucional por violação dos artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição - supra arts. 4 a 17 da presente reclamação.
III. O despacho de 10-12-2013 devia ter conhecido a referida questão de constitucionalidade na medida em não admitiu o recurso perante o STJ e adotou como ratio decidendi uma interpretação em que fez prevalecer a referida alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º em detrimento das disposições conjugadas dos arts. 400.º, n.º 2 e n.º 3 e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, perfilhando interpretação tempestivamente qualificada inconstitucional pela reclamante (artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição) - supra arts. 23 a 26.
IV. A suscitação da inconstitucionalidade de interpretação normativa suscetível de ser adotada por instância da estrutura dos tribunais judiciais (ónus de um juízo de prognose decorrente do artigo 72.º, n.º 2, da LTC sobre uma hipotética interpretação ou aplicação normativas), que constitui condição de legitimidade para um eventual recurso de constitucionalidade contra a subsequente decisão, não pode ser confundida com os requisitos da interposição de recurso perante o Tribunal Constitucional impostos pelo artigo 75.º-A da LTC (que se reportam necessariamente a uma norma, interpretação, padrão ou critério normativo que foram ratio decidendi de uma interpretação judicial que se pretende seja objeto de fiscalização concreta) - supra arts. 18 a 22.
V. As funções dos tribunais judiciais e do Tribunal Constitucional em sede de controlo da inconstitucionalidade de interpretações normativas têm significativas diversidades e aqueles não se podem investir da posição da instância superior de controlo da constitucionalidade (v.g. acórdão n.º 355/2005) - supra arts. 29 a 31.
VI. O despacho proferido em 10-12-2013 nos autos em epígrafe ao indeferir a reclamação do despacho de rejeição de recurso do Tribunal da Relação de Évora teve como ratio decidendi a interpretação normativa anteriormente imputada de inconstitucional pela recorrente.
VII. O despacho proferido em 10-12-2013 é insuscetível de reclamação ou recurso ordinário para outra instância dos tribunais judiciais.
VIII. O objeto do recurso de inconstitucionalidade foi devidamente recortado no requerimento de interposição: A interpretação do complexo normativo constituído pelos artigos 400.º, n.º 1, alínea c), n.º 2 e n.º 3 e 432.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal na redação vigente desde a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual o recurso do demandante civil em ação cível enxertada no processo penal contra acórdão do Tribunal da Relação que anulou sentença condenatória da primeira instância na indemnização civil com base em razões processuais relativas à ação cível enxertada pode ser rejeitado por a decisão não ter conhecido do mérito da ação, não se relevando que esse recurso seria admissível em processo civil independentemente do conhecimento do objeto do processo pelo acórdão da relação que anula a sentença da primeira instância.
IX. Entende-se que a aludida interpretação viola os artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição (e, na medida, em que omitiu quaisquer razões materiais para a restrição, atinge o princípio da proteção da confiança imanente ao Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição).
X. O recurso foi interposto ao abrigo, nomeadamente, dos artigos 70.º, n.º 1, al. b), n.º 2 e n.º 3, 71.º, n.º 2, 72.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, 75.º, n.º 1, 75.º-A, n.ºs 1 e 2, 76.º, n.º 1, 78.º, n.º 3 e 79.º-C, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.»
2. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, sustentando que a reclamante não suscitou, em momento próprio, a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3. Para a apreciação da presente reclamação, releva a seguinte evolução processual:
3.1. Por sentença proferida em 30 de abril de 2012 pelo Tribunal da Comarca de Santarém foi decidido, inter alia, condenar o arguido B. pelo crime de difamação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, 184.º e 188.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 9,00, perfazendo a pena de multa de € 2.700,00, e condenar o arguido a pagar à assistente e demandante civil A. a quantia de € 30.000,00, a título de indemnização civil.
3.2. Interposto recurso pelo arguido e pela demandante civil, por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 21 de maio de 2013, foi decidido, inter alia, determinar a revogação do despacho/decisão que indeferiu a intervenção principal da Companhia de Seguros C. Lda. e a sua substituição por outro que a aprecie e, em consequência, declarar com eficácia ex tunc a invalidade de todos os atos subsequentes que dele dependerem, necessariamente os consubstanciados no julgamento e na sentença proferida pelo Tribunal a quo, atentando-se no disposto no artigo 40.º do Código de Processo Penal.
3.3. Requerido o esclarecimento desta decisão pela demandante civil, por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de setembro de 2013 foi o mesmo indeferido.
3.4. A demandante civil interpôs então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido por decisão da relatora do Tribunal da Relação de Évora de 22 de outubro de 2013.
3.5. Deste despacho reclamou a demandante civil ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal, tendo a reclamação sido indeferida por decisão do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de dezembro de 2013.
3.6. A demandante civil apresentou então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, em requerimento com o seguinte teor:
«1. No processo nº 953/09.3TASTR, a recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça contra o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21-5-2013 (sobre cujo sentido foi ainda proferido o acórdão de 17-9-2013 do mesmo tribunal da relação).
2. O Tribunal da Relação de Évora rejeitou o recurso aplicando a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal em detrimento do n.º 3 do artigo 400.º conjugado com a al. b) do n.º 1 do art. 432.º do mesmo diploma.
3. A recorrente reclamou do despacho que rejeitou o seu recurso perante o Presidente do Supremo Tribunal, ao abrigo do artigo 405.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.
4. No artigo 23 dessa reclamação deduzida perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a recorrente / reclamante preconizou de modo claro que a interpretação do complexo normativo constituído pelos artigos 400.º, n.º 1, alínea c), n.º 2 e n.º 3 e 432.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal adotada pela Relação era uma «interpretação normativa» inconstitucional.
5. O despacho proferido em 10-12-2013 nos autos em epígrafe ao indeferir a reclamação do despacho de rejeição de recurso do Tribunal da Relação de Évora teve como ratio decidendi a referida interpretação normativa imputada de inconstitucional.
6. O objeto do presente recurso de inconstitucionalidade é a interpretação do complexo normativo constituído pelos artigos 400.º, n.º 1, alínea c), n.º 2 e n.º 3 e 432.º, n.º 1 al. b), do Código de Processo Penal na redação vigente desde a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual o recurso do demandante civil em ação cível enxertada no processo penal contra acórdão do Tribunal da Relação que anulou sentença condenatória da primeira instância na indemnização civil com base em razões processuais relativas à ação cível enxertada pode ser rejeitado por a decisão não ter conhecido do mérito da ação, não se relevando que esse recurso seria admissível em processo civil independentemente do conhecimento do objeto do processo pelo acórdão da relação que anula a sentença da primeira instância.
7. Entende-se que a aludida interpretação viola o princípio da proteção da confiança imanente ao Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, bem como os artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição.
8. O despacho proferido em 10-12-2013 nestes autos é insuscetível de reclamação ou recurso ordinário para outra instância dos tribunais judiciais.
9. O presente recurso é interposto ao abrigo, nomeadamente, dos artigos 70.º, n.º 1 al. b), n.º 2 e n.º 3, 71.º, n.º 2, 72.º, n.º 1 al. b), e n.º 2, 75.º, n.º 1, 75.º-A, n.ºs 1 e 2, 76.º, n.º 1, 78º, n.º 3 e 79.º-C, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.»
3.7. Em 8 de janeiro de 2013 o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu a decisão reclamada, de não admissão do recurso, com o seguinte teor:
«A assistente A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 70.º, n.º 1, a1ínea b), da LTC do decisão que lhe indeferiu a reclamação, para que seja apreciada a interpretação do complexo normativo constituído pelos arts. 400.º, n.ºs 1, a1ínea c) 2 e 3 e 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, por violação dos arts. 13.º, n.º 2 e 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição.
A reclamante alega no recurso interposto para o Tribunal Constitucional que suscitou a questão da inconstitucionalidade no ponto 23 da reclamação.
Conhecendo,
Na decisão que indeferiu a reclamação foi entendido não se conhecer da inconstitucionalidade invocada, por não existirem decisões inconstitucionais, tendo em conta que tal vício só pode reportar-se a uma norma, seu segmento quando aplicadas (e sendo “ratio decidendum”) na decisão posta em crise.
Com efeito, para a1ém de no nosso sistema jurídico o recurso de inconstitucionalidade só pode incidir sobre normas e não sobre decisões judiciais, como resulta do n.º 1 do art.º 260º da Constituição, a reclamante apenas invocou no ponto 23 da reclamação que «... a hipotética rejeição do recurso por interpretação restritiva das regras acima analisadas, constituiria uma restrição do direito ao recurso» em violação dos arts. 20.º, n.ºs 1 e 4 e 13.º, n.º 2, da Constituição.
Face ao disposto no n.º 2 do art. 72º da LTC, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
E na reclamação não foi suscitada adequadamente qualquer questão de inconstitucionalidade.
No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2001 – DR, II Série de 14.11.2001 entendeu-se “... que uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o principio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstrato, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um ato administrativo.
Neste entendimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não se considera suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade.
Pelo exposto, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.»
4. A reclamante pretende impugnar a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação deduzida contra o despacho que não admitira o recurso para aquele tribunal, peticionando a apreciação da conformidade constitucional dos artigos 400.º, n.º 1, alínea c), n.º 2 e n.º 3 e 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal na redação vigente desde a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, na interpretação segundo a qual “o recurso do demandante civil em ação cível enxertada no processo penal contra acórdão do Tribunal da Relação que anulou sentença condenatória da primeira instância na indemnização civil com base em razões processuais relativas à ação cível enxertada pode ser rejeitado por a decisão não ter conhecido do mérito da ação, não se relevando que esse recurso seria admissível em processo civil independentemente do conhecimento do objeto do processo pelo acórdão da relação que anula a sentença da primeira instância.”
5. A decisão reclamada suporta a não admissão do recurso de constitucionalidade na ausência de suscitação perante o Tribunal a quo em termos processualmente adequados da questão de constitucionalidade que constitui o objeto do recurso, como imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC, para que assista legitimidade à recorrente.
Diga-se, desde já, que essa decisão mostra-se inteiramente correta, apesar do esforço argumentativo da reclamante.
6. Com efeito, a reclamante não colocou em crise perante o Tribunal a quo qualquer interpretação normativa extraída do preceituado nos artigos 400.º, n.ºs 1, alínea c), 2 e 3 e 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal,
Tomando a reclamação apresentada ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Penal, verifica-se que a reclamante não enunciou, de forma direta, clara e percetível, o exato sentido normativo dos referidos preceitos legais que tem por violador da Lei Fundamental; antes limitou-se a alegar que “a hipotética rejeição do recurso por interpretação normativa restritiva (sem qualquer suporte na jurisprudência pretérita nem doutrina) das regras acima analisadas, constituiria uma restrição do direito ao recurso” em violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 13.º, n.º 2, da Constituição, o que não consubstancia suscitação perante o tribunal recorrido de questão de normativa de constitucionalidade, incidente sobre regra abstrata, potencialmente aplicável a uma generalidade de situações e suscetível de vir a ser utilizado na decisão a proferir, em termos de o vincular ao seu conhecimento.
Na verdade, a recorrente, ora reclamante, dirige a sua discordância diretamente a um sentido decisório – “hipotética rejeição do recurso” -, que tem por incorreto face ao ordenamento infraconstitucional, abstendo-se por completo de especificar qual o sentido ou dimensão normativa cuja aplicação deveria ser recusada, por desconforme com a Constituição.
Cumpre, pelo exposto, confirmar a decisão reclamada.
III. Decisão
7. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se, de acordo com a dimensão do impulso processual e o critério seguido neste Tribunal Constitucional, a taxa de justiça em 20 (unidades de conta).
Notifique.
Lisboa, 6 de março de 2014. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.