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Processo n.º 418/11
1ª Secção
Relator: Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Notificado do Acórdão n.º 296/2011, o reclamante A. apresentou um requerimento a pedir a aclaração e a consequente reforma do aresto, nos seguintes termos:
1. Nos presentes autos o arguido/recorrente, A., suscitou 2 (duas) questões de constitucionalidade:
1.ª – Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade do conjunto normativo dos artigos 55º, n.º 2, 249º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), 357º, n.º 2, e 356, n.º 7, todos, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que os órgãos de polícia criminal podem depor na audiência de julgamento sobre declarações incriminatórias que ouviram de um arguido que recusou depor na audiência quando as declarações foram prestadas antes de ele ter sido constituído como arguido e mesmo antes de ter sido instaurado inquérito.
§ – Porque tal conjunto normativo, na interpretação que lhe foi dada, viola o princípio constitucional da imediação, directamente resultante do princípio do Estado de Direito (artigo 2º da CRP), e, outrossim, o princípio nemo tenetur se ipsum accusare (proibição da auto-incriminação), do qual decorre o direito constitucional ao silêncio, que constitui o cerne das garantias de defesa consagradas pelo artigo 32º, n.º l, da CRP. e
2.ª – Pretende-se, ainda, ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, tal como foi feita pelo Tribunal da Relação do Porto, no sentido de que a atenuação especial da pena está afastada quando o arguido faz uso do seu direito ao silêncio na audiência de julgamento,
§ – Por violação do direito constitucional ao silêncio, incluído nas garantias da defesa previstas no artigo 32º, n.º l, da CRP.
2. Relativamente às questões colocadas, entendeu o Tribunal que as mesmas não foram suscitadas perante o tribunal recorrido, in casu, o Tribunal da Relação do Porto,
3. Em termos de apresentarem uma questão de inconstitucionalidade normativa capaz de preencher o requisito do nº 2 do artigo 72º da LTC.
Ora,
4. A questão que se visa aclarar prende-se com o facto – em nada despiciendo, no entender do arguido/recorrente – de a segunda (2.ª) questão de constitucionalidade colocada ter sido percepcionada ou entendida pelo Tribunal Constitucional, como uma questão nova face às motivações do recurso da decisão de primeira instância,
5. Tal e qual como o arguido/reclamante a considerou, entre outras, no item XI da sua reclamação:
“XI. E o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto apresenta ainda uma questão nova face à decisão de 1ª instância, desde logo anotada pelo arguido/reclamante e que suscitou ela própria uma nova questão substantiva de constitucionalidade suscitada em todos os articulados subsequentes, quando na pág. 64 se afirma a propósito da interpretação do artigo 31º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, não haver lugar à aplicação da atenuação especial da pena quando o arguido faz uso do seu direito ao silêncio na audiência de julgamento:
(…)
“Alega o recorrente A. que foi o denunciante da situação, tendo transmitido às autoridades a existência da situação.”
(…)
Ora, embora corresponda à verdade que foi o arguido A. que procurou as entidades policiais, a quem descreveu toda a situação, conduzindo-os até ao arguido B. a quem entregara os produtos estupefacientes, a fim de procederem à sua entrega às autoridades, estes factos não têm, em nossa opinião, o relevo que os recorrentes pretendem atribuir-lhes. Com efeito, desconhece-se a motivação que os determinou a entregar a “droga” às autoridades policiais. Aliás, a explicação sobre esse facto apenas os arguidos a poderiam dar. Mas, tendo optado por não prestar declarações, renunciaram o seu contributo para a descoberta da verdade e, consequentemente, à possibilidade de o tribunal atribuir algum relevo à “colaboração com as autoridades policiais”, designadamente atenuando especialmente as respectivas penas ao abrigo do disposto no artigo 31º, do Dec-Lei n.º 15/93, de 22.1.”
6. Sendo esta uma questão que apenas surgiu ex novo com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, então não recaía sobre o arguido/recorrente o ónus de a ter suscitado previamente (mormente, na motivação de recurso para a Relação), por a mesma ser, nessa data, inexistente.
7. Quando na reclamação para o Tribunal Constitucional o arguido/recorrente enfatiza o carácter novo desta questão de constitucionalidade, o que fez foi precisamente invocar e demonstrar a novidade daquela!
Ora,
8. A decisão sobre a reclamação apresentada, parece, ao que se crê, não ter equacionado este aspecto absolutamente distintivo – e fulcral – das 2 (duas) questões de constitucionalidade suscitadas.
9. Razão pela qual se requer a presente aclaração. Por dever de patrocínio, acresce ainda que
10. O Acórdão, a ser aclarado em termos de proceder à diferenciação supra enunciada, conduzirá à sua reforma, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 669.º do Código de Processo Civil, o que, desde já, se requer. [...]
2. À reclamação respondeu o representante do Ministério Público, propondo o seu indeferimento.
3. Cumpre decidir.
O recorrente apresentara em 10 de Janeiro de 2011, na Relação do Porto, um requerimento a recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido naquela Relação em 2 de Dezembro de 2009. Nesse requerimento, o interessado declarou querer ver apreciada a inconstitucionalidade do seguinte:
i) – artigos 55º, n.º 2, 249º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), 357º, n.º 2, e 356, n.º 7 do Código de Processo Penal, na interpretação de que os órgãos de policia criminal podem depor na audiência de julgamento sobre declarações incriminatórias que ouviram de um arguido que recusou depor na audiência quando as declarações foram prestadas antes de ele ter sido constituído como arguido e mesmo antes de ter sido instaurado inquérito, tal como foi feita quer pelo tribunal de primeira instância, quer pelo Tribunal da Relação do Porto.
ii) – artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, tal como foi feita pelo Tribunal da Relação do Porto, no sentido de que a atenuação especial da pena esta afastada quando o arguido faz uso do seu direito ao silêncio na audiência de julgamento.
Por despacho de 25 de Março de 2011, decidiu-se, na Relação, não receber o recurso fundamentalmente pelas seguintes razões:
[...] Contudo, em momento algum do seu recurso para este Tribunal da Relação, o recorrente apresenta qualquer questão de constitucionalidade normativa, sendo certo que a admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional prevista na al. b) do n.º 1 do art. 70º da LTC depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Só no recurso que agora apresentou para o Tribunal Constitucional é que o recorrente veio suscitar verdadeiramente uma questão de inconstitucionalidade normativa. Porém, como decidiu o Ac. do TC nº 194/2009 de 28.04.2009 “não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações”.
Acresce que os recursos agora interpostos por ambos os arguidos para o Tribunal Constitucional são manifestamente extemporâneos. [...]
Foi então interposta reclamação que veio a dar origem ao Acórdão n.º 296/2011, pelo qual o Tribunal Constitucional decidiu indeferir a reclamação e confirmar a decisão da Relação de não admissão da interposição do recurso.
O reclamante pretende – agora – ser esclarecido sobre o verdadeiro fundamento do aresto em análise quanto à 2ª questão de inconstitucionalidade invocada uma vez que, segundo diz, «surgiu ex novo com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto», razão pela qual «não recaía sobre o arguido/recorrente o ónus de a ter suscitado previamente (mormente, na motivação de recurso para a Relação), por a mesma ser, nessa data, inexistente»; o acórdão reclamado teria decidido mediante uma justificação aparentemente incapaz de abranger as duas hipóteses.
No acórdão ponderou-se:
«[...] devendo a suscitação de questão de inconstitucionalidade normativa consistir na acusação dirigida a uma concreta norma jurídica que não poderá ser aplicada por ofender a Constituição, certo é que da transcrita alegação nada resulta que possa ser entendido como a suscitação de uma tal questão – apta a abrir a via do recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC – relativa à pretendida inconstitucionalidade [...]»
Pretendeu-se, em suma, arrumar numa fórmula abrangente a solução do caso, tendo em conta que, na reclamação então em análise, o reclamante sumariara a sua pretensão desta forma:
[...] XLIII. O presente recurso impende sobre a decisão recorrida do Tribunal da Relação do Porto quanto ao mérito de todas as questões de constitucionalidade levantadas no processo que culminou na condenação injusta, desmesurada e ilegal dum cidadão, ao arrepio do respeito dos mais elementares direitos, liberdades e garantias protegidos pela nossa Lei Fundamental e pelo nosso Estado de Direito Democrático.
XLIV. Resulta do que vai dito, que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional teve origem na última decisão prolatada (e que não admitia qualquer outro recurso ordinário, assim constituindo o momento adequado e legalmente imposto para recorrer para o dito Tribunal).
XLV. O recorrente invocou a inconstitucionalidade do acórdão do tribunal de primeira instância, por violação do princípio constitucional da imediação e do direito constitucional ao silêncio (ver as conclusões I a IV, XLIV, XLVII a L do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal da Relação do Porto e a página 17, 18, 19 e 20 do mesmo requerimento, com expressa menção dos artigos 2.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, como fundamento da inconstitucionalidade),
Na sequência da interpretação do conjunto normativo resultante dos artigos 129.º, 356.º e 357.º do CPP, tal como ele foi interpretado e aplicado pelo tribunal de primeira instância.
XLVI. Posteriormente, e perante a decisão do Tribunal da Relação do Porto, invocou a inconstitucionalidade da aplicação por este e pelo tribunal a quo de conjuntos normativos interpretados de forma inconstitucional. Cfr., para o efeito, págs. 2 e seguintes da motivação e conclusões LVI, LIX, LX, LXI, LXII, LXIV, LXV e LXIX do Recurso para o STJ.
XLVII. A decisão do Tribunal da Relação do Porto aplicou os conjuntos normativos identificados nas conclusões referidas no item anterior e pronunciou-se sobre a inconstitucionalidade arguida pelo recorrente no recurso da decisão de primeira instância.
XLVIII. Pois desta aplicação interpretação e decisão do Tribunal da Relação do Porto que versa o recurso para o Tribunal Constitucional.
XLIX. Recurso esse que, reitere-se, só agora se podia efectuar.
L Ora, ao recorrente não pode ser sonegado o direito de ver apreciadas todas as questões de constitucionalidade suscitadas, correcta e tempestivamente, num processo onde, ainda por cima, estamos na iminência de coarctar a um ser humano o seu bem mais supremo, para além do da vida, ou sela o da sua própria liberdade.
LI. O recorrente, aliás, actuou dentro da mais escrupulosa boa fé processual, evitando quaisquer incidentes ou expedientes dilatórios.
LII. Veja-se a esse propósito os itens 31 a 34 da reclamação interposta pelo recorrente para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça: [...]
LIII. Motivo pelo qual só após o esgotamento de todas as vias judiciais ordinárias é que recorreu ao Tribunal Constitucional.
LIV. Esta peculiaridade processual que advém do facto de o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional não terem conhecido qualquer questão, além da admissibilidade do recurso não pode criar na Justiça e nos seus operadores uma espécie de lavar de mãos quanto a questões cruciais no domínio dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Em súmula, e numa única frase,
LV. O direito ao recurso de constitucionalidade foi, manifesta e indevidamente, preterido no caso sub judice.
LVI. O recorrente apresentou tempestivamente o seu recurso para o Tribunal Constitucional, cumprindo os requisitos legalmente exigidos.
LVII. Em respeito pelo disposto na Constituição da República Portuguesa e na Lei.
LVIII. Negar o conhecimento e o pronunciamento do Tribunal Constitucional no caso sub judice equivaleria, salvo melhor opinião,
LIX. A uma restrição inadmissível do direito de acesso aos tribunais previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
LX. Bem como das garantias de defesas e do direito ao recurso previstos no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e no artigo 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
LXI. E do próprio princípio da confiança e efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, como vertentes do princípio do Estado de Direito, previsto no artigo 2 da Lei Fundamental.
Venerandos Conselheiros do Tribunal Constitucional,
LXII. O recorrente foi alvo de uma decisão injusta,
LXIII. E sustentada na aplicação de normas interpretadas com evidente desrespeito pela Constituição da República Portuguesa, Mas,
LXIV. Pior do que ter uma decisão adversa aos seus interesses,
LXV. Ê sentir a impotência de obter, pelo menos, um julgamento sobre as suas razões.
LXVI. Sendo o Tribunal Constitucional o último reduto da defesa e protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos [...]
A fórmula decisória adoptada quis significar que qualquer uma das questões suscitadas no presente recurso não apresentava natureza normativa, sendo (qualquer uma delas) inidónea para constituir o seu objecto. Não se trata, portanto, de uma falta de suscitação – seria incompreensível que o Tribunal o afirmasse perante um caso de manifesta suscitação – mas de falta de natureza normativa das questões invocadas no requerimento de interposição do recurso.
E o certo é que a questão relativa à aplicação do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro pela Relação do Porto se reporta – manifestamente – à tarefa do tribunal e não à norma aplicada, como não poderia deixar de ser, uma vez que a aplicação do preceito no caso implicaria obrigatoriamente a ponderação de elementos de facto, a valorizar e a interpretar de acordo com uma actividade jurisdicional insindicável pelo Tribunal Constitucional.
4. Decide-se, por isso, indeferir a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Julho de 2011. – Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.