Imprimir acórdão
Processo n.º 106/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e outros, ora recorridos, intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, contra B. e outros, ora recorrentes, pedindo, no essencial, seja declarada a existência do direito dos Autores aos legados, deixados em substituição fideicomissária, instituídos no testamento de C., e à herança, aberta por óbito deste último, relativamente à “metade dos restantes títulos ou dinheiro que foram adquiridos na constância do matrimónio” pelo testador e sua mulher.
Alegaram, em síntese, para tanto, que o referido C., de quem são sobrinhos, legou-lhes, em substituição fideicomissária, por testamento, os bens certos e determinados que ora reivindicam, e, bem, assim, instituiu-os como herdeiros da reclamada metade do remanescente, em termos que foram autorizados pela sua mulher, que nele teve intervenção, pelo que, sendo válidas tais disposições testamentárias, assiste-lhes o direito cujo reconhecimento ora peticionam.
Seguiu a acção, após a fase dos articulados, seus termos processuais, após o que foi proferida sentença, julgando-a procedente e improcedente, por não provado, o peticionado pelos RR., em sede reconvencional.
Os RR., inconformados, dela apelaram para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão de 18 de Maio de 2010, julgou improcedente a apelação, confirmando, em consequência, embora com diversa fundamentação, a sentença recorrida.
Ainda inconformados, interpuseram recurso de revista deste último acórdão, mas, mais uma vez, sem sucesso, pois que o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 16 de Dezembro de 2010, negou a revista.
Interpõem, agora, deste último Acórdão, o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação, segundo esclarecimento prestado nos termos do n.º 5 do artigo 75.º da referida lei, da inconstitucionalidade da «interpretação normativa que o Acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça adopta do n.º 1 do art.º 1730.º do CC, no sentido de que seria admissível estipulação em contrário à regra da metade prevista no citado nº 1 do art.º 1730.º por via de declaração de autorização prestada por um cônjuge no texto do testamento do outro cônjuge, conferindo-lhe deste modo natureza confirmativa», por violação das disposições conjugadas dos artigos 13.º (princípio da igualdade) e 36º, n.º 3 (igualdade dos cônjuges no seio da família), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O Tribunal recorrido, por despacho de 5 de Fevereiro de 2011, admitiu o recurso, tendo os recorrentes, notificados para o efeito, apresentado alegações onde concluem:
I. O regime familiar e sucessório consagrado entre nós encontra o seu fundamento último no respeito pelos princípios constitucionais cristalizados designadamente, na Constituição da República Portuguesa. Entre esses princípios, avultam o da tutela da dignidade dos membros da família e o da igualdade dos cônjuges (cf. artigo 36.º, n.º 3 da CRP) – princípio este que surge como corolário da directriz geral em matéria de igualdade, prevista no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
II. O Direito da Família é pautado pelo predomínio de normas imperativas, como tais, derrogáveis por vontade dos particulares.
São, pois, interesses supra privados que justificam muitos dos constrangimentos normativos ao nível do Direito matrimonial, e que se impõem quer em nome de um dos cônjuges em relação ao outro (evitando qualquer relação de ascendente ou de influência de um cônjuge relativamente ao outro), quer em homenagem à continuidade do património conjugal e familiar. Em particular, as normas do Direito da Família, mesmo no próprio plano da lei civil, visam tutelar, e de modo fundamental, a família conjugal na relação dos cônjuges entre si, procurando em particular evitar o perigo de «supremacia psicológica de um dos cônjuges sobre o outro, seja pela vontade mais fraca de um deles, seja pelos laços de afecto que a convivência matrimonial reforça entre eles». Neste sentido, a imperatividade funda-se, em boa medida, numa lógica de protecção de um cônjuge perante o outro. É isto que legitima a indisponibilidade de muitas das situações jurídicas familiares. Como refere certeiramente JORGE DUARTE PINHEIRO, pode bem afirmar-se, a este propósito, que «uma lógica de protecção preside a todo o Direito da Família: tutela de um cônjuge perante o outro, contra a desigualdade e a violência na constância do matrimónio (...)».
III. O Direito da Família não prescinde, pois, de uma relação estreita com a Lei Fundamental, que delimita “o âmbito em que o legislador ordinário pode mover-se”. Numa palavra, a disposição dos bens mortis causa está sujeita à observância dos limites que resultam, designadamente, do estatuto das relações patrimoniais dos cônjuges – entre os quais, o princípio da protecção legal da meação.
IV. A regra da meação na divisão do património comum tem natureza imperativa, não podendo ser derrogada por vontade das partes. A referida conclusão não se apoia apenas em elementos literais, sistemáticos ou teleológicos imanente à lei, sendo ainda um corolário da protecção constitucional conferida aos cônjuges nas relações patrimoniais. O legislador interveio manifestamente norteado pela preocupação de protecção de um cônjuge relativamente ao outro. É este desiderato fundamental que está na base do princípio de proibição de negócios que tenham por objecto a meação do outro cônjuge no património comum, bem como das limitações aos actos negociais entre cônjuges que possam conduzir ao enriquecimento de um em prejuízo do outro e a um desequilíbrio final das relações patrimoniais e das meações no património comum. Previnem-se, assim, situações de facto caracterizadas por um quadro de desequilíbrio, assente em negócios ruinosos para o outro cônjuge. Numa palavra, previne-se que um dos cônjuges possa sair beneficiado no momento da partilha, designadamente por força do ascendente exercido sobre o outro cônjuge. Significa isto que o artigo 1730.º do Código Civil – que tem uma natureza essencialmente preventiva, procurando obstar a transferências (directas e indirectas) entre as massas patrimoniais – pretende vedar distribuições desigualitárias do património comum – mesmo que assentes em estipulações dos cônjuges.
V. As considerações anteriores permitem evidenciar que o princípio da protecção da meação se fundamenta em interesses de ordem pública, superiores e distintos dos interesses individuais dos cônjuges, e que não podem ser apartados do postulado da igualdade dos cônjuges (cf. artigo 36.º, n.º 3 da CRP - princípio que tem, desde 1977, consagração expressa no plano da lei ordinária – cf. artigo 1671.º do Código Civil). É este valor, com alicerce constitucional, que imprime imperatividade à solução legal prevista no artigo 1730.º do Código Civil.
VI. A injuntividade do comando legal autoriza a conclusão no sentido de que não está em questão o reconhecimento de uma faculdade, cuja observância fique dependente do arbítrio das partes. Pelo contrário, a regra da meação no património comum tem natureza indisponível: devem, por isso, ser considerados ilícitos, porque contrários ao Direito e à ordem pública alicerçada constitucionalmente, os actos negociais praticados por um dos cônjuges ou por ambos, mediante convenção, que traduzam uma limitação da igualdade de direitos que corresponde a cada cônjuge.
VII. Não pode, pelo exposto, reconhecer-se validade a um acto de autorização pelo cônjuge meeiro ofendido: fundando-se a “regra da metade” na tutela de interesses indisponíveis, relacionados com a protecção do cônjuge mais fraco, não pode o Direito – constitucionalmente comprometido – tolerar qualquer “renúncia” ou “confirmação” de um acto de oneração da meação de um dos cônjuges pelo outro.
VIII. Atenta a natureza imperativa e indisponível da “regra da metade”, tão-pouco existe fundamento jurídico para a aplicação da norma do artigo 2309.º do Código Civil: não foi praticado qualquer acto de “confirmação” – que nunca seria admitido nesta hipótese.
IX. Logo, se não se vislumbram obstáculos normativos à instituição de uma substituição fideicomissária sobre a meação do TESTADOR no património comum, diversamente, já não pode admitir-se qualquer fideicomisso ou outro instrumento que abranja também os bens que caberiam ao CÔNJUGE na qualidade de meeiro. Numa palavra, os fideicomissos instituídos têm de se conter no âmbito da quota disponível do testador. Só nesta medida ficam legitimados os constrangimentos e restrições ao poder de disposição do fiduciário.
X. As considerações anteriores são suficientes, para numa leitura constitucionalmente comprometida, se poder afirmar, no caso em apreciação, que o TESTADOR ultrapassou os limites impostos pelo Direito à faculdade de disposição mortis causa dos bens, na medida em que dispôs não só da sua meação no património comum, bem como da meação do CÔNJUGE.
XI. Em qualquer caso, e uma vez que as Instâncias repudiaram uma interpretação da formação legal aplicável em conformidade com a Constituição, forçoso é igualmente concluir que a conclusão que obteve vencimento no Tribunal da Relação de Lisboa e no Supremo Tribunal de Justiça não resiste a um juízo de inconstitucionalidade à luz das coordenadas constitucionais relevantes, entre as quais: i) a afirmação da igualdade de medida de direitos (e de vinculações) de cada um dos cônjuges (cf. artigo 36.º, n.º 3 da CRP) e ii) a consagração da propriedade privada como direito fundamental, acompanhada da garantia de livre transmissibilidade, pelo respectivo titular, em vida e por morte dos bens que se encontrem na sua esfera jurídica.
XII. O princípio da igualdade dos cônjuges constitui coordenada fundamental das relações jurídico-familiares, seja de natureza pessoal seja no plano patrimonial.
XIII. Do postulado da igualdade dos cônjuges resulta que quer um quer o outro cônjuge são titulares dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, não podendo no respectivo exercício ser condicionados ou restringidos pela vontade do outro cônjuge. O princípio da igualdade dos cônjuges visa garantir, em última análise, a não discriminação em função do sexo e, concretamente, impedir relações (tuteladas pelo Direito) de ascendência ou de subordinação de um cônjuge relativamente a outro. Proíbe-se, pois, na base do princípio da igualdade, a obtenção de vantagens ilegítimas por um dos cônjuges e a imposição de desvantagens ilegítimas ao outro cônjuge, isto é, sem um fundamento material bastante. Ou seja, como esclareceu o Tribunal Constitucional, do artigo 36.º, n.º 3, resulta a exigência «de que se não venham a estabelecer, no plano mais recôndito da vida familiar, elos de subordinação e dependência (juridicamente tutelados) de um cônjuge em relação ao outro».
XIV. No caso da Consulta, o testamento e a deixa testamentária estavam, como evidenciado, sujeitos aos limites decorrentes das normas imperativas. Esses limites decorrem não só regras legais previstas no Código Civil, mas também das normas e princípios constitucionais que, no caso de serem ofendidos, determinam a invalidade das estipulações negociais. Há, pois, uma complementaridade entre a Constituição e o Direito Civil, especialmente, em matéria de relações matrimoniais, atenta a existência de um princípio especial da igualdade dos cônjuges cuja aplicação se impõe directamente por força da Constituição.
XV. Concretamente, a imperatividade da regra da meação encontra o seu fundamento primário e último no princípio da igualdade dos cônjuges. Nesta medida, a admissibilidade da predisposição por acto unilateral de um dos cônjuges do destino de todo o património conjugal, mesmo para além da sua meação na comunhão conjugal, contraria a regra da metade e, nessa medida, viola o princípio constitucional da igualdade dos cônjuges (previsto no artigo 36.º, n.º 3 da Constituição), que lhe imprime o fundamento último.
XVI. De facto, identificada a razão de ser do princípio da igualdade dos cônjuges no propósito de defesa dos cônjuges entre si e, particularmente, na defesa da “parte mais fraca” da relação matrimonial, facilmente se compreende que foi propósito do legislador – quer constitucional, quer ordinário – não consentir na interferência da vontade dos cônjuges no sentido da introdução de desvios a esse princípio, evidenciados, no plano concreto, numa modificação do regime de bens ou das regras que presidem à disposição dos bens, em vida, bem comum à partilha (e à sucessão mortis causa). Com efeito, a tutela da pessoa de cada um dos cônjuges reclama que a qualquer um dos cônjuges seja reconhecida a faculdade de disposição dos bens de que seja titular, em vida e por morte.
XVII. Se assim é, não pode a violação do princípio da igualdade dos cônjuges ser sanada por uma hipotética confirmação, com o sentido de renúncia àquela garantia e imperativo constitucional. Ora, não podendo individualizar-se, no caso em análise, na “declaração de autorização” do CÔNJUGE um acto de confirmação do vício de estipulação testamentária, nem uma renúncia à regra da meação, tem de se concluir pela inconstitucionalidade material da norma que se extrai do artigo 1730.º do Código Civil (aplicável ao caso da Consulta por força da remissão do artigo 1734.º do mesmo diploma) com a interpretação adoptada pelas Instâncias.
XVIII. Por último, a predisposição dos bens que integravam a comunhão conjugal pelo TESTADOR – para lá dos limites impostos por lei à sucessão testamentária é ainda susceptível de configurar uma ofensa ao direito de propriedade privada.
XIX. O direito fundamental de propriedade compreende o direito à transmissão dos bens de que se seja titular, com respeito pelas limitações legais. Daí que se possa afirmar a existência de uma «íntima ligação entre a propriedade privada e a sua transmissibilidade, em vida e por morte» e, em conformidade, que «o Direito das Sucessões tem garantia constitucional».
XX. Ora, também nesta perspectiva, pode afirmar-se que, em certo sentido, é ainda a tutela constitucional da propriedade privada que subjaz à imperatividade da regra da meação, nas relações patrimoniais dos cônjuges, bem como à existência das referidas restrições à sucessão testamentária, concretamente, à limitação do objecto do testamento aos bens compreendidos na quota disponível do testador.
XXI. A disposição testamentária que predetermina o destino do património conjugal, por morte, primeiro do TESTADOR e depois do CÔNJUGE, e que tem por objecto não só os bens de que o TESTADOR tinha a livre disponibilidade, mas também os que seriam destinados ao CÔNJUGE, na qualidade de meeiro (com direito a reclamar metade do património comum, nos termos do artigo 1730.0), constitui um equivalente funcional a um acto de «expropriação privada», em termos não consentidos pelo Direito.
Os recorridos contra-alegaram, excepcionando, no essencial, a não verificação dos pressupostos processuais do conhecimento do objecto do recurso, pelas razões que sintetizam do seguinte modo:
1) A análise da questão de inconstitucionalidade suscitada no presente recurso leva-nos sucessivamente a três espécies de problemas: (i) se a questão de inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo; (ii) se se trata de inconstitucionalidades imputadas directamente a decisões judiciais ou de inconstitucionalidades normativas; (iii) se o objecto do recurso está recortado nos termos exigidos pela Constituição e pela Lei de Processo do Tribunal Constitucional.
2) Relativamente ao primeiro leque de problemas concluímos que a questão não foi suscitada durante o processo. O que foi levantado, como se desenvolverá mais adiante, foi a inconstitucionalidade imputada directamente a decisões judiciais e não inconstitucionalidade de normas jurídicas.
3) Em todo o processo, a Parte recorrente imputou reiteradamente a inconstitucionalidade à violação das disposições legais pelo “Acórdão recorrido”, à “inconstitucionalidade dos arestos recorridos”.
4) Mesmo quando se poderia admitir a suscitação da inconstitucionalidade de uma norma como acontece no XXVII das Conclusões do recurso diz-se que “os arestos recorridos sustentam um entendimento da lei da qual resulta a violação da regra de metade, prevista no art. 1730º do CC, incorrendo no vício de inconstitucionalidade material...'. Ou seja: se interpretarmos bem, são os arestos que “incorrem no vício de inconstitucionalidade material”.
5) O Tribunal Constitucional carece de legitimidade para apreciar a inconstitucionalidade de decisões judiciais.
6) Relativamente ao objecto, muitas das questões discutidas referem-se a eventuais inconstitucionalidades de negócios jurídico-privados. A inconstitucionalidade de negócios jurídicos privados gera invalidade, mas o esquema jurídico adequado para apreciar o eventual desvalor jurídico não é o sistema de fiscalização de inconstitucionalidade, mas os meios jurídicos proporcionados pelo recurso aos tribunais ordinários.
7) A eventual invocação implícita de inconstitucionalidade de uma norma ou segmento de norma também depara com dificuldades.
8) Na verdade, as discussões civilísticas — doutrinais e jurisprudenciais — demonstram que o que poderia estar em causa era a interpretação dada ao art. 2309° do Código Civil quanto aos efeitos da confirmação e não o art. 1730º que estabelece a nulidade de actos violadores da disciplina normativa de participação dos cônjuges no património comum. É o efeito irradiante do regime de confirmação, plasmado, de forma implícita no art. 2309°, que poderia colocar um problema de interpretação normativa de um segmento de lei. Não foi esse, porém, o objecto do recurso.
9) Por todas estas razões — não suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, errada imputação de inconstitucionalidade às próprias decisões judiciais para efeito de recurso, inexacto recorte do objecto do recurso — o recurso não preenche os requisitos exigidos pela Constituição e a lei.
10) Por fim, a invocação de direitos fundamentais (direito de igualdade, direito de propriedade) concretamente lesados por decisões jurisdicionais também não é legítima, pois não existe no ordenamento português qualquer acção ou recurso de amparo especificamente respeitante à defesa de direitos violados autonomamente por decisões judiciais.
Os recorrentes, notificados das contra-alegações, não exerceram, no que respeita à matéria de excepção, o seu direito processual de resposta.
2. Cumpre apreciar e decidir, antes de mais, se assiste aos recorridos razão quando sustentam que o recurso não está em condições processuais de ser, quanto ao fundo, objecto de conhecimento.
Defendem os recorridos, além do mais, que os recorrentes, nas alegações do recurso de revista interposto no Supremo Tribunal de Justiça, peça processual onde o deveriam ter feito, não suscitaram, pela forma adequada, a questão de inconstitucionalidade normativa que constitui objecto do recurso de constitucionalidade, tendo, ao invés, no que ao questionado artigo 1730.º do CC respeita, se limitado a invocar a inconstitucionalidade da própria decisão recorrida e não da leitura interpretativa que os recorrentes ora lhe atribuem.
É sabido, e o Tribunal Constitucional tem-no reiteradamente sublinhado, que a observância do ónus de prévia suscitação legalmente imposto como condição de conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade pressupõe, por parte do recorrente, a identificação da questão de inconstitucionalidade em termos que, por claramente delimitados nos seus contornos normativos, vinculem o Tribunal recorrido a formular juízo de inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade que a tenha por objecto (artigos 70.º, n.º 1, e 72.º, n.º 2, da LTC).
Tratando-se, como é o caso, de dada interpretação normativa, uma tal exigência assume particular acuidade, pois que compete ao recorrente enunciar perante o Tribunal recorrido uma tal questão de inconstitucionalidade, reportando-a, com clareza e rigor, ao critério normativo, pertinente à resolução do caso sub judicio mas dele autonomizável, que o tribunal de cuja de decisão se recorre extraiu, por via interpretativa, de fonte legal.
Ora, não se afigura que os recorrentes tenham, como sustentado pelos recorridos, dado cabal cumprimento a uma tal exigência processual.
Com efeito, não havendo dúvidas de que o ponto essencial de discórdia manifestado pelos RR, ora recorrentes, nas alegações do recurso de revista que apresentaram perante o Supremo Tribunal de Justiça, com pertinência para o presente recurso de constitucionalidade, respeita ao regime de nulidade da concreta disposição testamentária que o falecido C. efectuou, em violação do disposto no artigo 1730.º do CC, em favor dos AA, ora recorridos, a verdade é que não se vislumbra no discurso argumentativo por aqueles usado para contestar a bondade das razões fundantes do decidido pela Relação a invocação, como fundamento de modificação do julgado, de questão de inconstitucionalidade que, a tal respeito, ultrapasse o patamar decisório consubstanciado no concreto tratamento de direito substantivo dado aos factos provados pela sentença recorrida.
Na verdade, embora tenham invocado, em sede de alegações do recurso de revista, a violação dos princípios constitucionais da igualdade, designadamente da igualdade conjugal (artigos 13.º e 36.º, n.º 3, da CRP), não a reportaram, com a clareza e rigor processualmente exigíveis, à interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendem agora ver aferida em função dos mesmos critérios ou parâmetros de constitucionalidade mas à própria decisão recorrida e ao juízo estritamente judicativo nela formulado.
Com efeito, decorre das únicas passagens das alegações e conclusões do recurso de revista, abaixo transcritas, onde equacionaram uma tal violação, que os juízos de inconstitucionalidade aí enunciados são carecidos de conteúdo normativo, determinado ou determinável, por formulados, ou em discurso difuso e hipotético, ou por referência aos contornos particulares do caso e à concreta decisão que os apreciou, e não a uma qualquer interpretação, de alcance geral e abstracto, claramente enunciada, que tenha por fonte legal a norma do n.º 1 do artigo 1730.º do CC.
Assim, reportando-se à «regra da metade» consagrada no citado normativo legal, aí alegam os ora recorrentes que «esta Regra está sujeita (…) à protecção que a Constituição da República Portuguesa confere aos Direitos e Deveres Fundamentais – art.º 13.º – Princípio da Igualdade, bem como aos Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais, em especial à igualdade dos cônjuges no seio da família – art.º 36.º, n.º 3 da CRP. O que equivale a dizer que qualquer negócio jurídico (v.g. testamento) – art.º 2179.º, nº 1) em sentido contrário ou qualquer interpretação da Lei que permitisse ou validasse uma estipulação em contrário ou qualquer interpretação da Lei que permitisse ou validasse uma estipulação (v.g. testamentária) modificativa da “regra da metade”, seria materialmente inconstitucional, nula nos termos gerais dos artsº. 280.º e 294.º do CC e, como tal, a respectiva nulidade é invocável a todo o tempo. De onde se retira que a inconstitucionalidade é imputada a um negócio jurídico privado quando formulado em certo sentido, e não propriamente a uma interpretação normativa de um certo preceito legal que ao caso fosse aplicável.
Por outro lado, a arguição de inconstitucionalidade (por efeito da violação de normas ou princípios constitucionais ou da lesão de direitos fundamentais) surge directamente referenciada à decisão judicial recorrida, e não incide sobre o critério ou padrão normativo que tenha sido aplicado por essa decisão. É o que resulta dos seguintes excertos:
«Ao invés, houve violação legal, constitucional e ordinária, no douto Acórdão recorrido quando, a dado passo (…), este admite que através do mecanismo de uma pretensa “confirmação”, prevista [no] nº 1 do art.º 2309º do CC, a Maria Judite teria suprido a nulidade da “disposição em sentido diverso” a que alude a parte final do nº 1 do art.º 1730º do CC, e quando (…) declara caduca a acção de nulidade do testamento por força do art.º 2308º do CC, quando estas normas constam do Capítulo VII do Livro IV (Direito das Sucessões) do Código Civil e, portanto, só se aplicam às nulidades especiais do Direito das Sucessões, que não à protecção da meação conjugal (…).
E, mais adiante, em sede conclusiva:
XXIV. A Constituição da República Portuguesa na conjugação do art.º 13º (Princípio da Igualdade) com o art.º 36º, nº 3 (Igualdade dos Cônjuges no Seio da Família) confere uma protecção constitucional à “regra da metade”, que abrange nomeadamente a prevista no citado art.º 1730º do CC, pelo que aquelas disposições foram violadas pelo douto Acórdão recorrido. (….)
XXVII. Os arestos recorridos sustentam um entendimento da Lei do qual resulta a violação da “regra da metade” prevista no nº 1 do art.º 1730º do CC, incorrendo no vício de inconstitucionalidade material (Artºs. 13º e 36º, nº 3 da CRP), o que desde já se invoca aqui para todos os efeitos legais.
XXVIII. Esse entendimento interpretativo de cariz claramente inconstitucional surpreende-se no douto Acórdão recorrido, quando este admite (…) a violação da regra da metade praticada no testamento de C., quando este lega bens que se vêm a revelar que ultrapassam a sua própria meação e atingem a meação da viúva meeira D., afirmando porém que a nulidade daí decorrente podia ser objecto de confirmação pela D., na pendência do casamento e no texto do testamento do marido C. (Cfr. 2º parágrafo da p. 66 do douto Acórdão recorrido – “Na verdade, a D. interveio no testamento, dando o seu assentimento às disposições feitas pelo marido e conformou-se com elas (…)”.
E foi por, justificadamente, não vislumbrar no alegado pelos recorrentes qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que o Supremo Tribunal de Justiça, mantendo-se no mesmo plano de abordagem dos recorrentes, se limitou a apreciar a constitucionalidade da própria decisão recorrida e não dos seus fundamentos normativos, considerando, aliás, em termos particularmente expressivos, que o que aí se decidiu, porque reportado à concreta situação apreciada, não significa qualquer afirmação de princípio susceptível de afectar ou comprometer, em tese geral, os valores constitucionalmente tutelados:
«(…) Invocam os recorrentes a inconstitucionalidade da decisão sob recurso, por violar o direito à igualdade dos cônjuges do art.º 36º nº 3 da Constituição da República.
Mas não têm razão.
Por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, porque a disposição voluntária de um direito patrimonial que é disponível não é violadora de qualquer direito à igualdade.
Em segundo lugar, porque a denegação em concreto de um direito significa apenas que tal direito não é reconhecido no caso concreto e não que o mesmo não seja reconhecido no plano dos princípios, nomeadamente os constitucionalmente garantidos.»
Ora, não tendo o Tribunal recorrido formulado qualquer juízo de inconstitucionalidade normativa, por não ter sido suscitada pelos ora recorrentes, como lhes competia (artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC), questão de inconstitucionalidade que, por claramente delimitada no seu conteúdo normativo, a isso obrigasse, não pode o presente recurso prosseguir para apreciação de mérito, por inobservância do ónus legal de prévia suscitação, o que, atenta a natureza cumulativa dos pressupostos processuais de conhecimento do objecto do recurso, prejudica, por inútil, a apreciação do mais excepcionado pelos recorridos (artigo 660.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do artigo 69.º da LTC).
3. Pelo exposto, decide-se, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do presente recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades conta.
Lisboa, 28 de Setembro de 2011. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.