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Processo n.º 882/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, foi interposto recurso, pela Herança ilíquida aberta por óbito de A., ao abrigo do artigo 69.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. Tal recurso foi considerado inadmissível, por Decisão Sumária de 5 de Maio de 2011, com base nos seguintes fundamentos:
“(…) Nos termos do artigo 75.º A da LTC, o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade deve indicar a alínea do n.º 1 do artigo 70.º ao abrigo da qual o recurso é interposto, assim como a norma, cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende ver apreciada, e ainda, sendo o recurso interposto ao abrigo da alínea b), a norma ou princípio constitucional violado, bem como a peça processual em que o recorrente suscitou, previamente, a questão que constitui objecto do recurso.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, que a indicação dos elementos referidos constitui um requisito formal de apreciação do recurso e não apenas o cumprimento de um dever de cooperação com o Tribunal.
Ora, no presente caso, o requerimento de interposição de recurso é omisso quanto à menção de quaisquer dos aludidos elementos.
Considerando que a única situação, abstractamente equacionável – face ao teor da decisão recorrida – como justificativa do presente recurso, seria a prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, será à luz deste normativo que analisaremos a questão dos requisitos formais do requerimento de interposição de recurso e dos pressupostos da admissibilidade do mesmo.
Assim, começando pela questão do assinalado incumprimento dos requisitos formais, previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º A da LTC, afirmamos, desde já, que o mesmo não é de molde a legitimar, in casu, qualquer convite ao aperfeiçoamento, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do mesmo normativo.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º A, n.ºs 5 e 6, da LCT, só tem sentido útil quando faltam apenas requisitos formais do requerimento de interposição do recurso, carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam verdadeiros pressupostos de admissibilidade do recurso, insupríveis por essa via. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – deve o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional nºs 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.)
É exactamente esta última hipótese que se verifica in casu.
De facto, na presente situação, a prolação de convite ao aperfeiçoamento careceria de sentido útil, porquanto a recorrente não suscitou previamente, junto do tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade, a propósito de uma concreta norma ou interpretação normativa, que tenha vindo a ser adoptada como ratio decidendi, ou seja, como fundamento determinante da solução do caso dada pelo acórdão recorrido.
Tal omissão constitui insuprível falha de um pressuposto de admissibilidade do recurso, como explicitaremos, de seguida.
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Apenas o cumprimento integral de tais pressupostos pode garantir a admissão do recurso e viabilizar a sua apreciação de mérito.
Nestes termos, a falha de um dos pressupostos torna ociosa a discussão sobre os restantes.
Concentremos, assim, a nossa atenção sobre o pressuposto referente ao ónus, que recai sobre o recorrente, de suscitar previamente – em termos tempestivos e procedimentalmente adequados – a questão de constitucionalidade que pretende ver dirimida, junto do tribunal a quo, antes da prolação da decisão recorrida.
O cumprimento de tal ónus pressupõe que a questão da constitucionalidade seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, directa e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Exige-se, pois, não apenas uma precisa delimitação e especificação da questão, que se pretende vir a constituir objecto de ulterior recurso de constitucionalidade, mas igualmente uma fundamentação, minimamente concludente, com indicação precisa do preceito ou bloco de preceitos, em que assenta a norma ou interpretação normativa, que se reputa violadora da Constituição.
Apenas cumprido que esteja tal requisito de identificação e substanciação argumentativa, é exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. acórdãos do TC nºs 708/06 e 630/08, disponíveis no sítio da internet já referido).
Ora, em nenhum momento, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães – peça processual em que a recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade normativa que pretenderia ver ulteriormente apreciada - é autonomizado qualquer critério normativo, susceptível de vir a ser utilizado na decisão a proferir pelo mesmo tribunal como ratio decidendi, e, concomitantemente, problematizada a sua constitucionalidade.
Na verdade, a recorrente começa por referir, abstractamente, princípios constitucionais conformadores do conceito de “justa indemnização”.
Após análise crítica dos critérios utilizados na decisão arbitral, conclui a recorrente que “a sentença (…) recorrida, ao ter aderido ao laudo subscrito pela maioria dos Srs. Peritos (…) violou os preceitos constantes dos arts. 23º e 28º do Código das Expropriações e, também, o disposto no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa”. Desta forma, deixa claro que o vício de desconformidade constitucional é assacado à própria decisão jurisdicional e não a um qualquer autonomizado critério normativo, entendido como regra abstracta destinada a uma aplicação potencialmente genérica.
Refere ainda a recorrente que “não foi considerada qualquer quantia referente aos encargos que a expropriação acarreta ao expropriado”, acrescentando que “a justa indemnização tem que considerar um valor que indemnize os gastos e encargos que o expropriado naturalmente terá como consequência da expropriação. Sob pena de a indemnização não ser justa, colocando-o em desvantagem em relação a quem não foi expropriado em violação do princípio da igualdade”.
Após uma análise comparativa com outros ordenamentos jurídicos, conclui a recorrente que “ a decisão recorrida (…) viola os princípios da legalidade, proporcionalidade, igualdade e o direito constitucional à propriedade privada.”
De todo o modo, ainda que se considerasse convenientemente suscitada uma problemática de constitucionalidade normativa – não obstante a não identificação, desde logo, do preceito de direito positivo em que assenta o critério normativo - a verdade é que o acórdão da Relação de Guimarães expressamente afirma a inexistência de “justificação ou prova alguma nos autos”, relativa aos danos e encargos supra aludidos, deixando claro que, independentemente do entendimento sobre a inclusão abstracta de tais categorias no valor da indemnização devida pela expropriação, sempre a discussão sobre tal questão resultaria inócua, no presente caso, por falta de prova de tais danos e encargos.
Assim, atendendo ao carácter instrumental da presente espécie de recursos - traduzido na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto – estaria prejudicada a admissibilidade de eventual recurso com tal objecto, por a sua solução deixar intocado o sentido da decisão recorrida.
Face às considerações expendidas, conclui-se pela não admissibilidade do recurso.”
É desta Decisão Sumária que a recorrente vem agora reclamar.
3. A reclamante refere que o único requisito de admissibilidade do recurso, que não cumpriu, foi o relativo à menção da alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, ao abrigo do qual recorria.
Com base em tal asserção, defende que deveria ter sido proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, discordando da conclusão, plasmada na decisão reclamada, de que tal convite seria inútil, por incumprimento do ónus de suscitação, junto do tribunal a quo, de qualquer questão de constitucionalidade normativa, que, tendo vindo a ser adoptada como ratio decidendi, pudesse fundamentar ulterior recurso para o Tribunal Constitucional.
Segundo a reclamante, a questão de constitucionalidade, que pretende ver apreciada, foi suscitada nas alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo sido correctamente identificada na decisão reclamada e constituindo fundamento determinante para a solução a dar ao caso.
Notificada a reclamada, veio a mesma pugnar pelo indeferimento da reclamação e confirmação da Decisão Sumária proferida.
Fundamentando tal posição, afirma a reclamada que o requerimento de interposição do recurso se encontra estruturado como uma mera pretensão de reapreciação de decisão desfavorável, não observando qualquer dos requisitos específicos previstos no artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, nem reflectindo a compreensão da verdadeira natureza do recurso de constitucionalidade que, no nosso sistema, apenas pode ter por objecto normas e não decisões judiciais.
De facto, segundo a reclamada, a recorrente não suscitou qualquer questão de natureza normativa, perante o tribunal a quo, limitando-se a impugnar a decisão judicial de 1.ª Instância, nomeadamente imputando-lhe a violação de disposições legais e constitucionais.
Deste modo, conclui pela correcção da Decisão Sumária proferida, acrescentando que, tal como se refere em tal decisão, a discussão pretendida pela recorrente é inócua para a solução do processo-base, porquanto a decisão recorrida considerou não existir prova de danos e/ou encargos, que deveriam ser incluídos no montante da justa indemnização. Assim, ainda que houvesse uma confirmação do entendimento pugnado pela recorrente, não existiria possibilidade de repercussão útil sobre a decisão do tribunal a quo e a solução do caso concreto.
II – Fundamentos
4. Como resulta do teor da reclamação e do seu confronto com os fundamentos exarados na Decisão Sumária reclamada, a reclamante não aduziu qualquer argumento que abalasse a correcção do juízo efectuado.
Na verdade, não obstante o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ser omisso, não apenas quanto à menção da alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, em que se fundamenta o recurso, mas igualmente quanto aos restantes requisitos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A do mesmo diploma, certo é seria inútil qualquer convite ao aperfeiçoamento, face à insuprível falha de um pressuposto de admissibilidade do recurso, que sempre ditaria o seu não conhecimento.
De facto, ao contrário do que refere a reclamante, não foi autonomizado, nas alegações do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, qualquer critério normativo, susceptível de vir a ser utilizado na decisão a proferir pelo mesmo tribunal como ratio decidendi, e, concomitantemente, problematizada a sua constitucionalidade.
Analisada a peça processual em referência, conclui-se que o juízo de desconformidade constitucional é, invariavelmente, imputado à própria decisão jurisdicional posta em crise, o que ressalta dos excertos seleccionados pela decisão reclamada.
Acresce que as reflexões de constitucionalidade que a reclamante expende, a propósito da inclusão de encargos, no conceito de justa indemnização – ainda que tivessem sido acompanhadas por uma correcta delimitação de uma verdadeira questão normativa atinente a tal problemática – não poderiam fundamentar qualquer ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, porquanto, de acordo com a decisão recorrida, não foi feita prova, no caso concreto, da existência dos alegados danos e encargos, o que redunda na insusceptibilidade de qualquer sindicância de constitucionalidade normativa, a esse propósito, se repercutir utilmente na solução do caso concreto.
Nestes termos, reafirmando e dando por reproduzida toda a fundamentação constante da decisão reclamada, resta apenas concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do recurso e, em consequência, pelo indeferimento da reclamação da decisão sumária, proferida nestes autos a 5 de Maio de 2011.
III – Decisão
5. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Julho de 2011. – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.