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Processo n.º 635/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nestes autos, vindos do Tribunal do Trabalho de Leiria, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, invocando, como fundamento, a recusa de aplicação, por parte do tribunal a quo, da norma contida no artigo 13.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, por inconstitucionalidade decorrente da violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
2. A Autoridade para as Condições do Trabalho aplicou à aqui recorrida, “A., Lda.”, uma coima de 2.100,00 €, pela contraordenação prevista e punida nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 25.º da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, e do n.º 7 do artigo 15.º do Regulamento (CEE) n.º 3821/85, de 20.12, do Conselho, alterado pelo Regulamento (CEE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Março de 2006.
Inconformada, a arguida, aqui recorrida, impugnou judicialmente a decisão condenatória contra si proferida.
O Tribunal do Trabalho de Leiria absolveu a arguida, com fundamento na recusa de aplicação da norma constante do artigo 13.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, por considerar ser a mesma “materialmente inconstitucional e violadora dos princípios da culpa e de proibição da inversão do ónus da prova constitucionalmente consagrados no art. 32.º da CRP”.
3. É desta decisão que o Ministério Público interpõe o presente recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
Nas alegações apresentadas, conclui o recorrente, nos termos seguintes:
“(…)
Por todo o exposto ao longo das presentes alegações, julga-se, ao invés do decidido na sentença recorrida, não haver motivos para considerar inconstitucional o disposto no art. 13º, nºs 1 e 2 da Lei 27/2010, de 30 de Agosto.
(…)
No caso dos autos, o motorista da arguida, empresa transportadora “Transportes Amadeu Ramos Unipessoal, Lda.”, não era portador das folhas de registo de tacógrafo analógico, referentes aos últimos 28 dias do trabalho por si executado, pelo que foi levantado o correspondente auto de contra-ordenação, por parte da autoridade administrativa – ACT.
Em consequência, foi aplicada à arguida uma coima de € 2.100, dada a sua conduta negligente:
“A arguida infringiu o disposto no art.º 25.º n.º 1, al. b) da Lei 27/2010 de 30-08 e do n.º 7 do Art.º 15.º do Regulamento (CEE) n.º 3821/85, de 20/12, do Conselho, publicado no Jornal Oficial das Comunidades n.º L 370/85, de 31/12, alterado pelo Regulamento (CEE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Março de 2006, que determina que «o condutor deve estar em condições de apresentar, a qualquer pedido dos agentes encarregados do controlo, as folhas de registo da semana em curso e, as utilizadas pelo condutor nos 15 dias anteriores (…)
No entanto, após 1 de Janeiro de 2008, os períodos referidos nas subalíneas i) e iii) abrangerão o dia em curso e os 28 dias anteriores».
Assim, o não cumprimento da disposição legal supra citada, constitui contra-ordenação muito grave nos termos do n.º 1 do art.º 25.º da Lei 27/2010 de 30-08.
Nos termos do art.º 14.º, n.º 4, al. a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, os limites mínimo e máximo das coimas correspondentes a contra-ordenação muito grave têm os seguintes valores: 20 UC a 300 UC (€ 2.040,00 a € 30.600,00) em caso de negligência.(…)
Nestes termos, considerando todos os factos provados no presente processo e que da conjugação dos mesmos, embora não se possa concluir que a Arguida agiu com dolo, conclui-se que agiu com negligência.
A negligência é sempre punível nas contra-ordenações laborais, nos termos do art. 550º do Código do Trabalho.
Atendendo, ainda, às finalidades da disposição infringida – por um lado, a salvaguarda dos direitos do condutor relativos aos tempos de trabalho e de descanso e, por outro, a prevenção e segurança rodoviárias, e da negligência da arguida e a sua situação económica, propõe-se a aplicação à arguida da coima, pelo seu montante mínimo de € 2.100,00 (Dois mil e cem euros), acrescida das respectivas custas legais.”
(…)
Impugnada judicialmente a coima aplicada, foi, por sentença de 10 de Maio de 2013, do Tribunal de Trabalho de Leiria, recusada a aplicação da norma constante do art. 13º nºs 1 e 2 da Lei nº 27/2010, de 30 de Agosto, por materialmente inconstitucional, designadamente por:
“Ora, no caso sub iudice, dos factos descritos na decisão administrativa não resulta a imputação (quer objectiva quer) subjectiva da infracção à arguida, o que teria de ser baseado em factos concretos e precisos e não, como daquela se infere, em conclusões, juízos de valor e remissão para matéria de direito valendo-se da presunção de culpa «permitida» pela Lei.
Não resultando, assim, dos autos de contra-ordenação que tenha sido feita prova da culpa da entidade empregadora e estando nós no regime contra-ordenacional ao qual é aplicável subsidiariamente o regime penal, não prescindindo ambos da existência de culpa em concreto (não objectivada nem presumida) para uma eventual condenação tem a arguida que ser absolvida da prática da infracção que lhe foi imputada por falta de prova do elemento subjectivo da infracção e pelo juízo de inconstitucionalidade que defendemos quanto ao art 13° nos 1 e 2 do referido diploma por violação do princípio da culpa.
Com efeito bastou-se a decisão administrativa com o facto de o motorista infractor ser trabalhador da arguida para, e sem mais, aplicar o diploma em questão, considerando esta responsável, não exigindo qualquer comportamento ilícito ou culposo por parte daquela em termos de ser possível assacar-lhe a responsabilidade pela prática da contra-ordenação como autora, co-autora ou cúmplice. Baseou-se assim numa responsabilidade objectiva, motivo pelo qual entendemos dever a decisão ser revogada por aplicação de lei inconstitucional, arts 277° n° 1 e 2 da CRP.
Pelo que recusamos a aplicação da norma por materialmente inconstitucional e assim decidimos absolver a arguida.
Pelo exposto recusamos a aplicação da norma do art. 13º nºs 1 e 2 da Lei nº 27/2010 de 30 de Agosto por materialmente inconstitucional e violadora dos princípios da culpa e de proibição da inversão do ónus da prova constitucionalmente consagrados no art.º 32.º da CRP, pelo que, em consequência, absolvemos a arguida das contra-ordenações que lhe vêm imputadas.”
(…)
Estamos, porém, nos presentes autos, no âmbito do chamado Direito da Mera Ordenação Social, ou do Direito das Contra-Ordenações, concebido como um instrumento de intervenção administrativa de natureza sancionatória, no sentido de garantir maior eficácia à acção administrativa.
O Direito das Contra-Ordenações surge como um novo ramo de direito sancionatório, autónomo do Direito Penal, mas que com ele mantém profundas ligações.
Assim, o Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10 (RGCO), que define o regime geral do Direito de Mera Ordenação Social, no seu art.º 32º, define o Direito Penal como direito subsidiário e, por força do seu art.º 41º, no que ao regime processual se refere, determina que o Código de Processo Penal seja tido como direito subsidiário.
No entanto, a aplicação do processo criminal, enquanto direito subsidiário, tem como limite a salvaguarda do próprio regime do processo de contra-ordenação, como resulta da 1ª parte do n.º 1 do art.º 41.º do RGCO.
Pelo que, não obstante a aproximação existente, não se pode confundir o processo criminal com o procedimento contra-ordenacional, até pela natureza distinta de cada um desses ordenamentos e das respectivas sanções, que constituem medidas sancionatórias de carácter não penal.
Por outro lado, a autonomia do tipo de sanção, previsto para as contra-ordenações, repercute-se a nível adjectivo, não se justificando que sejam inteiramente aplicáveis, ao processo contra-ordenacional, os princípios que orientam o direito processual penal.
A diferente natureza dos processos impõe, ainda, que a invocação das garantias de processo criminal, em sede de procedimento contra-ordenacional, deva ser rodeada de especiais cautelas.
(…)
Ora, a arguida foi devidamente ouvida durante o processo contra-ordenacional e esteve em condições de se defender como entendeu, tendo mesmo impugnado, judicialmente, a coima que, no respectivo âmbito, lhe foi aplicada.
(…)
A aplicação de uma coima à arguida resulta, assim, do entendimento, aliás justificado, por parte da autoridade administrativa, de que:
a) o motorista infractor actuava, no dia da prática dos factos, no interesse, e sob a autoridade e direcção da arguida, uma vez que cabia a esta distribuir-lhe o serviço;
b) não se fazia, de facto, acompanhar dos discos de tacógrafo respeitantes aos últimos 28 dias de trabalho, que executara;
c) a arguida tinha o dever de organizar o trabalho dos seus motoristas no respeito das disposições legais em vigor, fornecendo-lhes, para o efeito, todas as instruções necessárias e mantendo controlos regulares adequados;
d) devia, por outro lado, assegurar que os seus motoristas zelassem pelo bom funcionamento e pela correcta utilização dos tacógrafos;
e) ao não evitar a prática da infracção, a arguida agiu, assim, com negligência, sempre punível no âmbito das infracções laborais;
f) a não imputação da responsabilidade contra-ordenacional à arguida, acabaria por levar à sua impunidade e desresponsabilização social, tanto mais indesejável, quanto é ela que beneficiaria, em primeiro lugar, do cometimento da infracção.
(…)
Por outro lado, a coima aplicada não se revelou inadequada, desproporcionada ou arbitrária, atendendo aos valores mínimo e máximo aplicáveis e ao facto de se tratar de uma contra-ordenação muito grave.
(…)
Não se poderá, pois, dizer, como o faz, temerariamente, a sentença recorrida, que a autoridade administrativa – ACT – considerou, sem mais, a arguida responsável pela contra-ordenação, “não exigindo qualquer comportamento ilícito ou culposo por parte daquela em termos de lhe ser possível assacar-lhe a responsabilidade pela prática da contra-ordenação”.
Bem pelo contrário, como se viu, a autoridade administrativa procurou definir, com precisão, as razões que a levaram a considerar a conduta da arguida, no mínimo, como negligente. E fê-lo com recurso a argumentação diversa e adequada.
(…)
É indubitável, ainda, ter sido intenção do Regulamento (CE) 561/2006 (cfr. supra nº 12 das presentes alegações),
“prever como princípio/regra a responsabilidade objectiva dos empregadores transportadores pelas infracções cometidas pelos respectivos trabalhadores; não obstante, aí se admitiu também que os Estados-Membros, no âmbito do poder/dever de regulamentação do quadro sancionatório, viessem a prever formas atenuadas dessa responsabilidade objectiva, mormente: (a) enquadrando-a no âmbito de uma verdadeira responsabilidade subjectiva, ao fazer depender a sua responsabilidade da violação, por si cometida, dos deveres previstos nos nºs 1 e 2 do art. 10º do Regulamento; (b) ou, consagrando embora a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento.”
(…)
Por outro lado, também se pode dar como adquirido, o facto de a Lei 27/2010, de 30 de Agosto, ter vindo (cfr. supra nº 13º das presentes alegações),
“estabelecer o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo de utilização de tacógrafos, na actividade de transporte rodoviário, assim criando o quadro sancionatório e dando, por consequência, execução aos arts. 10º, nº 3 e 19º do Regulamento 561/2006 (e revogando o DL 272/89, de 19.08), diploma esse que entrou e vigor aos 05.09.2010 e que é o aplicável ao caso em apreço.
Ora, o art. 13º da citada Lei veio dispor que:
1 – A empresa é responsável por qualquer infracção cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.
2 – A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) nº 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE) nº 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março.
3 – O condutor é responsável pela infracção na situação a que se refere o número anterior ou quando esteja em causa a violação do disposto no artigo 22º.
4 – (...)
Ou seja, a Lei 27/2010 veio consagrar uma das soluções previstas pelo art. 10º, nº 3, do Regulamento, qual seja uma forma mitigada da responsabilidade objectiva ou presumida, pois que, consagrando embora a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, veio, contudo, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento, para o que deverá demonstrar que organizou o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais.”
(…)
Não se crê, pois, que se possa considerar tal “forma mitigada da responsabilidade objectiva ou presumida”, relativamente à empresa transportadora, como inconstitucional, tal como decidido pela sentença recorrida, dado que a presunção de culpa pode ser ilidida pela mesma transportadora, comprovando, no caso concreto, que a responsabilidade da infracção lhe não pode ser atribuída.
Esta, a melhor solução para os fins pretendidos com o estabelecimento de tal presunção, desde logo, decorrentes das razões que levaram à publicação do Regulamento (CE) 561/2006, de 15 de Março: melhorar as condições de trabalho dos motoristas e reforçar a segurança rodoviária.
(…)
A jurisprudência deste Tribunal Constitucional vai em idêntico sentido, como decorre, por exemplo, da leitura do Acórdão 448/87, de 18 de Novembro, relativo à responsabilidade dos directores de periódicos relativamente a crimes de liberdade de imprensa por escritos não assinados.
Ora, também no caso dos presentes autos, estamos perante uma situação de presunção em que, podendo não ser possível imputar a responsabilidade a determinado agente, a mesma acaba por impender sobre agente diverso, neste caso, a empresa de transportes, ora arguida.
Por outro lado, está subjacente, a esta presunção, uma finalidade político-contra-ordenacional clara: impedir que se criem situações de impunidade no seio de uma actividade tão importante e essencial como é o transporte rodoviário de mercadorias, prevenindo acidentes e protegendo a saúde dos motoristas ao serviço das empresas, que a tal transporte se dedicam.
Acresce que, também no caso dos autos, se está perante uma situação em que houve menor diligência por parte da arguida, no controlo da actividade dos seus motoristas. Daí ser punida a sua negligência.
Por outras palavras, essa imputação de responsabilidade, perante uma conduta que poderia ter sido bastante mais diligente, não poderá ter-se por inadequada, nem desproporcionada ou excessiva.
Por último, trata-se, também, de uma presunção de um puro facto, que a empresa transportadora poderá ilidir.
Ora, tal presunção não se poderá ter por arbitrária, uma vez que impende, sobre a empresa transportadora, um especial dever objectivo de cuidado: o dever não só de distribuir o trabalho aos seus motoristas, como também o de orientar e controlar a respectiva actividade, actividade, essa, que integra potenciais riscos para terceiros.
Não se revela, por isso, excessivo, que a lei ponha, a cargo da empresa transportadora, o risco de uma sua eventual conduta imprudente ou imprevidente nesta matéria.
(…)
Tomando, como referência, o Acórdão 135/92, de 2 de Abril, também sobre abuso de liberdade de imprensa, no caso dos autos não estamos no âmbito do regime penal, mas contra-ordenacional, necessariamente menos exigente.
Depois, não se dispensa totalmente a exigência de culpa da empresa transportadora, uma vez que se pune a sua negligência.
A punição radica, por outro lado, em razões materialmente fundadas.
Por último, designadamente na fase de impugnação judicial, a empresa transportadora teve ampla oportunidade de se defender como entendeu, como se disse já, e, nessa medida, de contestar os fundamentos da coima que lhe havia sido aplicada pela autoridade administrativa.
(…)
Como referido no Acórdão 276/2004, de 20 de Abril, “a existência de presunções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis”, o que é, como se viu, o caso dos autos.
(…)
No seguimento do Acórdão 23/2010, de 13 de Janeiro, nos presentes autos, também a imputação da infracção, à empresa transportadora arguida, não tem origem numa responsabilidade inteiramente objectiva.
Resulta, antes, de uma responsabilidade por actuação, em nome da empresa transportadora, de um seu motorista, ou seja, assenta na culpa in elegendo ou in vigilando da empresa.
(…)
Acresce, que a solução proposta se mostra inteiramente conciliável com o disposto no novo Código do Trabalho, aprovado pela em que designadamente se determina:
Artigo550.º
Punibilidade da negligência
A negligência nas contraordenações laborais é sempre punível.
Artigo551.º
Sujeito responsável por contraordenação laboral
1 - O empregador é o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos.
2 - Quando um tipo contraordenacional tiver por agente o empregador abrange também a pessoa coletiva, a associação sem personalidade jurídica ou a comissão especial.
3 - Se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores.
4 - O contratante é responsável solidariamente pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante que execute todo ou parte do contrato nas instalações daquele ou sob responsabilidade do mesmo, pela violação de disposições a que corresponda uma infração muito grave, salvo se demonstrar que agiu com a diligência devida.
(…)
Entende-se, por isso, que este Tribunal Constitucional deverá conceder provimento ao presente recurso de constitucionalidade, não considerando inconstitucional o disposto no art. 13º, nºs 1 e 2 da Lei 27/2010, de 30 de Agosto.
E determinar, nessa medida, a revogação da sentença recorrida, do Tribunal do Trabalho de Leiria, de 10 de Maio de 2013.”
A recorrida não apresentou alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
4. O presente recurso tem como objeto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 13.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto.
O Tribunal Constitucional já apreciou a mesma norma, nomeadamente no âmbito dos Acórdãos com os n.os 45/2014 e 144/2014, este último desta 3.ª Secção (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Por concordarmos, no essencial, com a argumentação expendida no referido Acórdão n.º 45/2014, transcrevemos o seguinte excerto da fundamentação aduzida em tal aresto:
«A Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, veio estabelecer o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso, e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, transpondo a Diretiva n.º 2006/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, alterada pela Diretiva n.º 2009/5/CE da Comissão, de 30 de janeiro de 2009.
A regulamentação internacional nesta matéria teve como objetivos harmonizar as condições de concorrência entre empresas de transporte rodoviário e melhorar as condições de trabalho e a segurança rodoviária. Na verdade, tais regras visam melhorar as condições de trabalho dos condutores, atuando sobre os tempos de condução, as pausas e os repousos, promovendo, assim, o descanso dos condutores e, simultaneamente, diminuindo os riscos de sinistralidade rodoviária. Por outro lado, harmonizam as condições de concorrência entre as empresas, porque todas devem incorporar os encargos das condições de trabalho e da segurança rodoviária nos custos da respetiva atividade.
Estes objetivos são prosseguidos através da fixação de limites máximos aos tempos de condução, de durações mínimas de pausas e períodos de repouso, de proibição de certas modalidades de pagamento do trabalho suscetíveis de agravar o risco de fadiga e de acidente, bem como na imposição de controlos e sanções por infração àquelas regras, a cargo das autoridades públicas.
Anteriormente, esta matéria encontrava-se regulada no Decreto-Lei n.º 272/89, de 19 de agosto, o qual, preenchendo um vazio legislativo, visou dar cumprimento ao Acordo Europeu Relativo ao Trabalho das Tripulações dos Veículos Que Efetuem Transportes Internacionais Rodoviários (AETR), aprovado para ratificação pelo Decreto n.º 324/73, de 30 de junho, e aos Regulamentos (CEE) n.º 3820/85 e n.º 3821/85, ambos de 20 de dezembro de 1985. Neste diploma não existia um preceito que expressamente imputasse as infrações ao empregador ou ao trabalhador em matéria de tempos de condução e repouso, pelo que a jurisprudência e a doutrina pronunciavam-se pela responsabilização de quem tivesse o domínio do facto (vide João Soares Ribeiro, em “Responsabilidade contraordenacional dos trabalhadores por conta de outrem”, em Questões laborais, Ano I (1994), n.º 1, pág. 41-42).
A Lei n.º 116/99, de 4 de agosto, veio alterar esta situação, ao aprovar um novo regime geral das contraordenações laborais, em cujo artigo 4.º consagrava genericamente a responsabilidade da entidade patronal pelas infrações laborais. A jurisprudência dividiu-se entre a que considerava que o empregador, por via de uma responsabilidade presumida, seria o responsável pela contraordenação e a que entendia que, detendo o motorista o controle do veículo e estando ele também obrigado à observância das normas existentes nessa matéria, a responsabilidade do empregador dependia da prova da verificação da materialidade da infração e da culpa do mesmo na sua ocorrência.
Com a aprovação do Código de Trabalho de 2003, a consequente revogação da citada Lei n.º 116/99, e perante a inexistência de norma idêntica ao mencionado artigo 4.º, passou a entender-se ser necessária a demonstração da imputabilidade ao empregador da autoria material da contraordenação.
Em 11 de abril de 2007 entrou em vigor o Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, que, para além do mais, estabeleceu no 1.º parágrafo, do n.º 3, do artigo 10.º que as empresas de transportes são responsáveis por qualquer infração cometida pelos condutores da empresa, ainda que essa infração tenha sido cometida no território de outro Estado-Membro ou de país terceiro.
A jurisprudência voltou a dividir-se quanto à necessidade de concretização por normas internas daquela disposição regulamentar e consequentemente quanto à imputação legal ao empregador da responsabilidade pelas infrações cometidas em matéria de tempos de condução e repouso dos condutores de transporte rodoviário (vide uma resenha dessa jurisprudência, feita por João Soares Ribeiro, em “Tempos de condução, de repouso, e pausas no transporte rodoviário”, na Revista do Ministério Público, Ano 31, n.º 124, pág. 157-158).
Entretanto viria a ser aprovado o Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de junho, que, apesar de pretender regular alguns aspetos do tempo de trabalho dos trabalhadores móveis e prevendo no seu artigo 10.º, n.º 2, que o empregador é responsável pelas infrações ao disposto nesse diploma, no artigo 8.º, n.º 4, excecionou a sua aplicação aos condutores que estão obrigados ao uso de tacógrafo, quanto a algumas infrações, nomeadamente as que respeitavam aos intervalos de descanso e seu registo.
O Código do Trabalho aprovado em 2009 veio, no entanto, dispor de forma genérica no artigo 551.º, n.º 1, que o empregador é o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das suas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos.
É esta também a orientação do artigo 13.º, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, aqui em apreciação, onde se lê:
“1 — A empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.
2 — A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.
3 — O condutor é responsável pela infração na situação a que se refere o número anterior ou quando esteja em causa a violação do disposto no artigo 22.º.
4 — A responsabilidade de outros intervenientes na atividade de transporte, nomeadamente expedidores, transitários ou operadores turísticos, pela prática da infração é punida a título de comparticipação, nos termos do regime geral das contraordenações.”
Neste preceito consagra-se uma presunção iuris tantum de imputação da violação de um dever de comportamento à entidade patronal dos condutores de transporte rodoviário.
Entende-se que, se um condutor não observar algum dos deveres estabelecidos na presente lei, sendo essa inobservância tipificada como contraordenação, há uma presunção que a respetiva infração se deve à circunstância da entidade patronal não ter adotado as medidas necessárias que impedissem a ocorrência do evento contraordenacional. O estabelecimento dessa presunção dispensa a alegação e prova dos factos materiais donde se pudesse extrair a responsabilidade do empregador pelos atos do condutor que é seu trabalhador, mas não deixa de permitir que aquele possa demonstrar que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o condutor ao seu serviço pudesse ter cumprido a norma que inobservou, excluindo assim a sua responsabilidade.
Ora, conforme já tem referido este Tribunal, no âmbito das contraordenações, a imputação de um facto a um agente tem por referente legal e dogmático um conceito extensivo de autoria de matriz causal, conceito este segundo o qual é considerado autor de uma contraordenação todo o agente que tiver contribuído causal ou cocausalmente para a realização do tipo, ou seja, que haja dado origem a uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua ação ou omissão, o facto ilícito, podendo isso ocorrer de qualquer forma (cfr. Frederico Lacerda da Costa Pinto, em “O ilícito de mera ordenação social”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 1, pág. 25-26).
O relevo da opção legal por um conceito extensivo de autor no âmbito da responsabilidade contraordenacional, por oposição ao conceito restritivo de autoria que vigora, em regra, no domínio do direito penal, é especialmente percetível nas hipóteses em que, como na presente situação, os factos cometidos envolvem a estrutura orgânica e funcional de uma empresa.
Esta construção é uma decorrência lógica da existência no direito de mera ordenação social de normas de dever, cujo incumprimento é sancionado com coimas. Se o sistema impõe deveres a um leque alargado de destinatários é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar. Daí que, apurando-se a violação do dever legalmente estabelecido os destinatários do mesmo serão responsáveis por essa violação. “O critério de delimitação da autoria neste tipo de ilícito não é o do domínio do facto, mas sim o da titularidade do dever” (Frederico Lacerda da Costa Pinto na ob. cit., pág.48).
É nesta lógica que, em casos como este, a regra de imputação colocada pelo conceito extensivo de autor conduzirá à responsabilização da entidade dirigente titular do dever de garante sempre que se tenha verificado o resultado (a inobservância do dever) que ela se encontrava legalmente incumbida de evitar.
Impendendo sobre a entidade patronal, o dever legal de garantir o cumprimento das regras respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, ela é contraordenacionalmente responsabilizável, nos termos previstos no diploma em análise, não apenas nas hipóteses em que, por ação sua, tiver originado diretamente o resultado antijurídico, mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva, causal ou cocausalmente promotora do resultado típico presumida, quando a infração é cometida pelo condutor que se encontra ao seu serviço.
Competindo-lhe enquanto entidade patronal organizar o transporte rodoviário de modo a que o condutor ao seu serviço cumpra as normas que regulamentam essa atividade, designadamente as regras laborais, não se revela arbitrária, nem injustificada, a presunção de que a inobservância dessas regras por parte do condutor tem a sua causa na deficiente organização daquela atividade, estando nós perante o funcionamento de uma mera presunção relativa a factos.
Se uma construção deste tipo pode ser problemática no domínio do direito penal, já em sede de direito de mera ordenação social em que apenas está em jogo a aplicação de coimas, não suscita qualquer reserva, tanto mais que, neste caso, se permite que a entidade patronal afaste a sua responsabilidade contraordenacional, demonstrando que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o seu condutor pudesse ter cumprido a norma que inobservou, ilidindo assim aquela presunção.”
Concluímos, nestes termos, que a presunção, consagrada na norma em análise, de que a infração cometida pelo condutor ocorre em virtude de a «entidade patronal não ter adotado as medidas necessárias que impedissem a ocorrência do evento contraordenacional», com a dispensa de «alegação e prova dos factos materiais donde se pudesse extrair a responsabilidade do empregador pelos atos do condutor que é seu trabalhador», não deixando de permitir que «aquele possa demonstrar que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o condutor ao seu serviço pudesse ter cumprido a norma que inobservou, excluindo a sua responsabilidade», não é violadora do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição. Na verdade, atendendo às especiais características do direito de mera ordenação social, admite-se, ao contrário do que sucede relativamente ao direito criminal, a inversão do ónus da prova, sem que daí decorram problemas de constitucionalidade.
Pelo exposto, não se considera inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto.
III - Decisão
5. Nestes termos, decide-se:
- Não julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n. os 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto;
- e, em consequência, julgar procedente o presente recurso interposto pelo Ministério Público, mais determinando a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade formulado.
Sem custas.
Lisboa, 25 de março de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Carlos Fernandes Cadilha – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.