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Processo n.º 711/12
1.ª Secção:
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do acórdão daquele Tribunal, de 13 de setembro de 2012, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (na versão de 2009).
2. Os presentes autos foram instaurados como processo de contraordenação, nos quais veio a ser proferida, pela Autoridade para as Condições de Trabalho, decisão que condenou o A., Lda, a pagar a coima de €4500,00, e, bem assim, determinou B. e C. como responsáveis solidários com aquela pelo pagamento da coima aplicada.
Inconformados com tal condenação, a arguida e os seus sócios gerentes interpuseram recurso para o Juízo do Trabalho da Comarca do Baixo Vouga, que, por decisão de 29 de fevereiro de 2012, manteve integralmente a responsabilidade dos recorrentes. Seguiu-se o recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão de 13 de setembro de 2012, decidiu recusar, por materialmente inconstitucional, a aplicação da norma constante do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (na versão de 2009) e, destarte, absolver os sócios gerentes como responsáveis solidários pelo pagamento da coima.
3. Notificado nos termos do artigo 79.º da LTC, o Ministério Público concluiu as suas alegações da seguinte forma:
«(…)
1. Diferentemente do que ocorre com o artigo 7.º-A do RGIFNA e artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, não se vislumbra no n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho de 2009, que a responsabilidade solidária pelo pagamento das coimas, decorra de uma qualquer conduta própria e autónoma relativamente àquela que levou à aplicação da sanção à pessoa coletiva.
2. Na graduação da coima aplicada à pessoa coletiva, foram tidos em atenção, exclusivamente, os critérios que a ela diziam respeito e nenhuma circunstância que dissesse respeito ao administrador.
3. Assim, a norma constante do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho, que determina a responsabilidade solidária do representante legal da pessoa coletiva (administrador, gerente ou diretor) pelo pagamento da coima a esta aplicada, é inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
(…)»
4. Os recorridos não contra-alegaram.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. O objeto do presente recurso de constitucionalidade é a questão da conformidade constitucional da norma contida no n.º 3, do artigo 551.º, do Código de Trabalho (2009), na medida em que aí se estabelece, quanto ao sujeito responsável por contraordenação laboral, que, se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores. O tribunal recorrido recusou a aplicação deste segmento com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do artigo 30.º, n.º 3 da CRP.
Ora, a 1.ª Secção do Tribunal Constitucional já teve ensejo de se debruçar sobre questão em tudo idêntica, no acórdão n.º 201/14 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), tendo aí concluído pela não inconstitucionalidade do normativo em análise. Vale a pena atentar nos argumentos veiculados no mencionado aresto:
«(…)
7. Ainda que se desse por assente que a responsabilidade contida no artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho (2009) é de natureza contraordenacional, jamais essa qualificação, efetuada no plano do direito infraconstitucional, se revelaria só por si determinante para efeitos do juízo sobre a sua conformidade constitucional.
De acordo com uma certa leitura da jurisprudência do Tribunal Constitucional que analisámos (v. supra, ponto 5), a natureza da responsabilidade do agente teria sido decisiva para o juízo sobre a conformidade constitucional das normas em apreciação. Com efeito, teria sido pela circunstância de aí se ter afastado a natureza contraordenacional do título por que é responsabilizado o agente (tendo-se considerado aí prever-se antes uma forma de responsabilidade civil subsidiária), que o Tribunal, nos acórdãos n.os 129/2009 e 437/2011, se não teria determinado pela inconstitucionalidade das normas então em apreciação.
Simplesmente, não é essa a correta leitura da referida jurisprudência do Tribunal Constitucional. Desde logo, nos acórdãos n.os 129/2009 e 437/2011, ao afastar que as normas aí em apreciação se reconduzissem ao domínio contraordenacional, o Tribunal, logicamente, não tomou qualquer posição – não tinha de o fazer – sobre a questão da extensão da proibição constitucional de transmissão da responsabilidade penal à responsabilidade contraordenacional. Aliás, no acórdão n.º 129/2009, na senda do que já antes se escrevera no acórdão n.º 160/2004, o Tribunal Constitucional, ao afirmar que “[a norma do artigo 30.º, n.º 3 da Constituição] não pode servir de parâmetro uniforme para a responsabilidade penal e a responsabilidade contraordenacional”, deixou propositadamente a questão em aberto. Tal significa que a qualificação da responsabilidade – matéria que, de resto, respeita ao plano infraconstitucional – se não afigurou, de todo em todo, determinante para o sentido dessas decisões.
A isso acresce que, no acórdão n.º 481/2010, o fundamento do juízo de inconstitucionalidade não radica na natureza contraordenacional da responsabilidade em si mesmo considerada – que, nos termos desse aresto, ainda seria conforme à Constituição – mas noutros aspetos de regime.
Por último, a circunstância de se não afigurar determinante a qualificação como contraordenacional da responsabilidade é expressamente sublinhada no acórdão n.º 561/2011, pois, embora aí se tenha afastado estar-se perante uma situação de responsabilidade contraordenacional, acrescentou-se que, mesmo que se houvesse de entender o contrário, isto é, que a responsabilidade in casu assumia natureza contraordenacional, daí não decorreria que os princípios constitucionais fossem violados. Não o seria, porque, como aí se escreveu “[...] no domínio contraordenacional, não são automaticamente aplicáveis os princípios que regem a legislação penal, designadamente no que toca às exigências da autoria do ato-tipo para efeito de incriminação”.
Em suma, não decorre de todo em todo da jurisprudência constitucional o entendimento segundo o qual aí onde houver responsabilidade contraordenacional haverá violação da Constituição, designadamente no que se refere ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade penal (artigo 30.º, n.º 3).
(...)
10. A Constituição, ao determinar, no n.º 3 do artigo 30.º, que «[a] responsabilidade penal é insuscetível de transmissão», vem estabelecer um princípio que define a ordem constitucional da República e que, justamente por se tratar de um princípio, ainda que diretamente incidente no domínio do direito penal, a ele se não encontra confinado.
A caracterização da norma em questão como princípio é determinante para a correta resolução da questão de constitucionalidade.
Com efeito, se se partisse antes do entendimento segundo o qual o preceito constitucional contém uma regra, a resposta à questão de saber se a sua previsão normativa abrange ainda o domínio contraordenacional ou este dela está excluído seria decididamente neste último sentido. Desde logo, nos termos do texto do preceito constitucional apenas é expressamente proibida a transmissão da «responsabilidade penal». A isso acresce que nenhum cânone interpretativo permite que se chegue a um resultado interpretativo que estenda a proibição nela contida a uma responsabilidade de outra natureza (no que respeita à evolução do texto constitucional, v. as considerações feitas no já referido acórdão n.º 160/2004), sendo de difícil superação o argumento segundo o qual, se a Constituição quisesse estabelecer uma proibição de transmissão da sanção além do domínio penal, então não teria confinado a proibição à responsabilidade penal.
Simplesmente, o artigo 30.º, n.º 3 da Constituição não contém uma regra, mas antes um princípio.
Qualquer outro entendimento – que, partindo da sua qualificação como regra, se determinasse pela exclusão do domínio contraordenacional do seu âmbito de aplicação – estaria em contradição com o sistema normativo da Constituição no que se refere à extensão ao domínio contraordenacional dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal, tal como desenvolvida, ainda que de forma fragmentária, pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (v., supra, ponto 9).
Do princípio da unidade da Constituição decorre que a resolução da questão de constitucionalidade com a qual o Tribunal Constitucional é confrontado não fique dependente de uma leitura isolada de um determinado preceito constitucional – in casu, o artigo 30.º, n.º 3 –, antes se impondo uma interpretação integrada da Constituição enquanto sistema normativo unitário.
Aliás, foi precisamente esse método de interpretação (o que tem em conta o tópico da unidade da Constituição) que o próprio Tribunal sempre usou, relativamente à determinação do sentido das normas constitucionais com relevo penal. Assim, por exemplo, naquele conjunto de decisões em que foi afirmando que a política criminal de um Estado de direito não poderia deixar de ser uma política assente nos princípios da culpa, da necessidade das penas e das medidas de segurança, da subsidiariedade das penas e da humanidade (vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 83/95 e 548/2001), o Tribunal partiu, para fundamentar toda a sua construção, das ideias da dignidade da pessoa e de Estado de direito em sentido material, decorrentes dos artigos 1.º e 2.º da CRP. Ao fazê-lo, teve evidentemente em linha de conta a unidade do sistema normativo da Constituição. Como teve em linha de conta que as normas desse sistema que expressamente se referem ao domínio das penas e do processo judicial que as aplica têm a estrutura de princípios e não de regras. Tal decorre, não apenas da designação que sempre atribuiu aos “comandos” contidos nessas normas ou delas decorrentes (princípio da culpa, princípio da necessidade da pena, princípio da subsidiariedade), mas ainda do facto de se não ter eximido de proceder a balanceamentos e ponderações entre os valores jurídicos por esses princípios tutelados e outros valores, também com assento constitucional (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos nºs 288/98 e 617/2006).
Assim, se não restam dúvidas que as normas constitucionais com relevo penal têm a natureza e estrutura de princípios, também não restam dúvidas de que tais princípios valerão para o domínio contraordenacional, não “com o mesmo rigor” ou com o mesmo grau de exigência” com que valem para o domínio criminal, mas apenas na sua “ideia essencial”. Esta é pois a conclusão firme que se pode retirar da rica jurisprudência constitucional sobre o tema (v. supra, ponto 9).
11. Uma das características dos princípios é a sua capacidade de acomodação ou de adaptação face a outros que com eles conflituam.
No domínio do direito penal, a acomodação dos princípios constitucionais a outros valores que com eles conflituam deve fazer-se (desde logo, por via legislativa), tendo em conta o particular peso dos bens jurídicos individuais que as normas que consagram os primeiros tutelam. Por isso mesmo, tem-se entendido que o dever, que impende sobre o Estado, de emitir normas de proteção de bens jusfundamentaisnão pode sacrificar os princípios da culpa ou da necessidade e subsidiariedade das penas, atento o peso próprio que estes últimos encontram num sistema constitucional fundado na dignidade da pessoa (por exemplo, os já citados Acórdãos nºs 288/98 e 617/2006).
Diversamente se passarão as coisas no domínio contraordenacional, precisamente por aí velarem com “menos rigor” ou com “menos intensidade” os princípios que integram as normas da Constituição com relevo penal.
12. Tal significa que, prima facie, também no domínio contraordenacional valerá o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade, devendo tal princípio ser tido em conta na ponderação efetuada, desde logo, pelo legislador na configuração do ilícito contraordenacional.
Por sua vez, deve o Tribunal Constitucional, ao apreciar a conformidade constitucional de uma norma em matéria contraordenacional, verificar se, na ponderação efetuada em sede legislativa, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade foi devidamente integrado.
No que respeita ao critério de densidade de controlo, retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional já referida, que, no domínio contraordenacional, é de reconhecer um maior poder de conformação do legislador, o que vale por dizer que deve o Tribunal limitar-se a um controlo de evidência.
Ora, a norma sub judicio, ao comprimir, é certo, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade, fá-lo em observância de deveres estaduais de proteção ou de prestação de normas, impendentes sobre o legislador ordinário, destinados a proteger bens jusfundamentais face a potenciais agressões provindas de terceiros, que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c) da Constituição.
Com efeito, através da responsabilização dos respetivos administradores, dirigentes ou diretores pelo pagamento de coima aplicada à pessoa coletiva responsável pela contraordenação laboral, o legislador terá pretendido tornar mais eficaz a efetivação do sistema sancionatório num domínio em que a Constituição lhe comete expressamente deveres de proteção, ainda que sacrificando o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade.
Qualquer juízo sobre a razoabilidade da ponderação, efetuada pelo legislador ordinário, passa por pesar a intensidade do sacrifício imposto pela norma sub judicio ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade e a vantagem que através dela se obtém para efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c).
No que respeita ao primeiro aspeto, verifica-se que a norma sub judicio não sacrifica totalmente o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade. Com efeito, os sujeitos ficam apenas responsáveis pelo pagamento da coima, não lhes sendo transmitida a autoria do ilícito contraordenacional em si mesma considerada (v. supra, ponto 6).
A isso acresce que a transmissão da responsabilidade não opera entre indivíduos mas sim entre uma pessoa coletiva, entidade responsável pela contraordenação laboral, e titulares de órgãos executivos dessa mesma pessoa coletiva. Dada a conexão objetivamente existente entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da norma sub judicio, ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a compressão do princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer do seu núcleo.
Por sua vez, no que se refere à vantagem que através dela se obtém para efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), é admissível o entendimento segundo o qual o envolvimento, através da assunção coerciva da responsabilidade pelo pagamento da coima, dos administradores, gerentes ou diretores da pessoa coletiva responsável pela contraordenação-laboral, garante, diretamente, uma maior eficácia na cobrança efetiva da coima, e, através disso, indiretamente, uma mais elevada probabilidade de que a infração não chegará sequer a ser cometida, assim se protegendo melhor bens jusfundamentais.
Assim, porque não é possível, segundo um critério de evidência, asseverar que é desnecessário para efeitos de cumprimento dos referidos deveres de proteção o mecanismo de corresponsabilização pelo pagamento estabelecido no n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (2009), o Tribunal Constitucional não pode senão deferir perante o juízo formulado pelo legislador sobre a adequação e necessidade do regime legal.
13. O que acaba de ser dito relativamente ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade vale, por maioria de razão e face ao que atrás ficou dito (supra pontos 10 e 11) no que respeita ao princípio da culpa.
É certo que, nos termos da norma sub judicio, o terceiro fica solidariamente responsável pelo pagamento de uma coima, para a determinação da qual, seja a nível de moldura abstrata seja a nível de medida concreta (designadamente atendendo a fatores tais como a situação económica do agente ou o benefício económico que este retirou da prática da contraordenação), não foi ponderado qualquer elemento atinente à sua pessoa, assumindo o mesmo a totalidade do montante sancionatório que resultara da valoração da conduta de um outro sujeito, devedor originário.
Simplesmente, a assunção coerciva, porque fundada na lei, da responsabilidade pelo pagamento de uma sanção estritamente pecuniária, a que se não encontra associado qualquer efeito jurídico estigmatizante, não comprime o princípio da culpa em termos constitucionalmente desconformes, sobretudo atendendo às razões legislativas que servem de justificação para essa compressão, assentes em deveres estaduais de proteção de bens jusfundamentais.
Assim, face às obrigações impendentes sobre o legislador de observância dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal também no domínio das contraordenações, por um lado, e aquelas que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), por outro, a norma sub judicio realiza um equilíbrio constitucionalmente admissível.
(...)»
6. Sendo a fundamentação supra transcrita plenamente transponível para os presentes autos, cumpre, em aplicação da posição firmada na Secção, proferir idêntico juízo quanto à questão de constitucionalidade neles apreciada.
III. Decisão
7. Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (2009), quando aí se estabelece, quanto ao sujeito responsável por contraordenação laboral, que, se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores;
b) Conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 25 de março de 2014.- José da Cunha Barbosa – Maria de Fátima Mata-Mouros – João Caupers – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.