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Processo n.º 678/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, A. e esposa, B., vieram interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) Antes de entrarmos na análise dos pressupostos de admissibilidade do recurso, impõe-se esclarecer que a apresentação de alegações apenas se encontra legitimada, após a notificação para esse efeito, ordenada por despacho do relator, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 5, da LTC.
No presente caso, os recorrentes apresentaram as alegações juntamente com o requerimento de interposição de recurso, pelo que o fizeram de forma prematura (cfr., nesse sentido, os Acórdãos deste Tribunal Constitucional, com os n.os 39/99, 15/01, 61/09, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Uma vez que, no caso sub iudice, será proferida decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, pelas razões que melhor exporemos infra, e não despacho convidando à produção de alegações - situação em que seria admissível valorar a peça processual respetiva já junta aos autos, notificando-se apenas a parte da possibilidade de apresentar nova peça de substituição ou aditamento, tudo em obediência ao princípio de economia processual – consigna-se, desde já, que não poderão as alegações ser valoradas para qualquer efeito, sob pena de se desvirtuar o sentido útil do n.º 5 do referido artigo 78.º.
Esclarece-se que não será ordenado o desentranhamento da peça processual que suporta as alegações, uma vez que estas, embora delimitadas de forma inequívoca, não se encontram fisicamente autonomizadas do requerimento de interposição de recurso (maxime, na peça inicialmente enviada, por fax).
(…) Feito este esclarecimento prévio, detenhamo-nos agora sobre a apreciação dos requisitos de admissibilidade do recurso.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Assim, importa analisar se tais requisitos se encontram preenchidos, no presente caso.
(…) No requerimento de interposição de recurso – autonomizado das alegações, nos termos explicitados – os recorrentes referem pretender a fiscalização da constitucionalidade de uma “interpretação”, alegadamente feita pelo tribunal a quo, do artigo 27.º, n.º 1, alínea i) e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Não enunciam, porém, o conteúdo de tal critério normativo.
Incumprem, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Não obstante a referida omissão não ser abstratamente insuprível, em obediência aos princípios de economia e celeridade processuais, não é equacionável, in casu, facultar aos recorrentes a possibilidade de suprirem tal deficiência, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, porquanto, ainda que os mesmos aperfeiçoassem, de forma satisfatória, o requerimento de interposição de recurso, sempre o mesmo não prosseguiria, por falta de pressupostos de admissibilidade do recurso, como melhor analisaremos.
Na verdade, tornava-se necessário, para que o recurso fosse admissível, que os recorrentes tivessem suscitado, previamente, de forma adequada, perante o tribunal a quo, uma questão de constitucionalidade, relativa à específica interpretação normativa - extraível do artigo 27.º, n.º 1, alínea i) e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – utilizada como ratio decidendi pelo acórdão recorrido.
Ora, analisada a resposta dos recorrentes ao convite ao cumprimento do princípio do contraditório relativamente ao parecer do Ministério Público datado de 19 de março de 2013 - peça processual em que deveriam ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade que pretendessem ver apreciada – verifica-se que os recorrentes se reportam à inconstitucionalidade da interpretação do artigo 27.º, n.º 1, alínea i) e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “no sentido de entender que, apesar de um tribunal apelidar uma decisão de mérito de sentença, a qual remete para um regime de recurso jurisdicional, poder vir um tribunal superior subsequentemente considerar que essa qualificação não está afinal correta, e que nessa medida a reação jurisdicional não se poderia afinal ter conformado com a qualificação dada pelo próprio tribunal que praticou o ato”. Tal questão – independentemente de qualquer outra apreciação sobre a sua formulação – não encontra reflexo na fundamentação da solução dada ao caso pelo acórdão recorrido.
De facto, o enunciado da questão de constitucionalidade, que os recorrentes apresentam, é construído com base na apreciação subjetiva que os mesmos fazem dos factos que reputam como relevantes, independentemente de qualquer preocupação em fazer corresponder esse enunciado à literalidade da disposição legal que selecionam - o artigo 27.º, n.º 1, alínea i) e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – ou ao critério normativo convocado pelo acórdão recorrido.
Na verdade, os recorrentes enfatizam, no enunciado da questão, a existência de uma contradição entre a qualificação de uma dada decisão, assumida pelo tribunal que a profere, e a que vem a ser considerada, pelo tribunal superior que a aprecia em recurso. Tal alegada contradição, porém, não resulta do acórdão recorrido, que não altera ou contradiz a qualificação de sentença da decisão proferida, em 14 de maio de 2012.
A afirmação precedente resulta demonstrada se atentarmos no seguinte excerto do acórdão recorrido:
“(…) a decisão recorrida, do relator do tribunal de 1ª instância, através do qual se proferiu sentença, tem de ser entendida como emitida no âmbito daquela alínea i) do n.º 1 do artigo 27º do CPTA.
(…)
Em suma, o relator do processo, o juiz a quem foi atribuído o processo em 1ª instância, tem poderes para proferir todas as decisões que estão enumeradas no n.º 1 do artigo 27º do CPTA, e ainda, detém todos os “demais poderes que lhe são conferidos” pelo CPTA. Aqui se incluem quer poderes para proferir simples despachos (…) quer para proferir sentenças, as decisões que julgam causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa (…) E de todas essas decisões cabe reclamação para a conferência nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, não obstante a referência nesse número 2 a “despachos”.
Consequentemente, nos termos do artigo 27º, nº1, al. i), do CPTA, da sentença em apreço cabia reclamação para a conferência (…) e não directamente recurso jurisdicional.”
Nestes termos, independentemente de qualquer outra apreciação sobre a questão de constitucionalidade suscitada, previamente, pelos recorrentes – nomeadamente sobre se detém verdadeira natureza normativa – resulta claro que a mesma não encontra reflexo na fundamentação do acórdão recorrido, estando, desde logo por essa razão, prejudicada a sua coincidência com a respetiva ratio decidendi.
Pelo exposto, atenta a demonstrada não verificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, face à natureza cumulativa dos mesmos, mostra-se ociosa a apreciação dos restantes, concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do recurso e consequente não conhecimento do seu objeto.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifestam os reclamantes a sua discordância, relativamente ao teor da decisão sumária, referindo que o acórdão recorrido alterou a qualificação da decisão proferida em 14 de maio de 2012, considerando “que a mesma constitui uma decisão do Relator, através da qual se proferiu sentença, e não uma sentença em sentido verdadeiro e próprio, proferida pelo Juiz singular, pese embora com preterição das regras de competência em função do valor da causa.”
Explicitam que “não existe qualquer coincidência entre um despacho de um Juiz Relator de um Tribunal Colectivo que julga do mérito da causa e uma sentença de um Juiz singular ainda que proferida com preterição das regras de competência em relação ao valor da causa.”
Argumentam ainda que a mera invocação do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não é idónea para operar a qualificação da decisão como decisão de Juiz Relator, da qual cabe reclamação para a conferência e não diretamente recurso jurisdicional.
Concluem, desta forma, que o tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do referido artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, e que a questão de constitucionalidade suscitada flui claramente do acórdão recorrido, coincidindo com a respetiva ratio decidendi.
Pelo exposto, peticionam a revogação da decisão sumária reclamada e o prosseguimento dos autos.
4. O Ministério Público, em resposta, pugna pelo indeferimento da reclamação.
Refere que, no parecer emitido no Tribunal Central Administrativo Sul, foi levantada a questão da admissibilidade do recurso interposto para aquele tribunal, invocando o Ministério Público o Acórdão uniformizador de jurisprudência do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, de 5 de junho de 2012. Na resposta que os recorrentes apresentaram a tal parecer, suscitaram uma questão de constitucionalidade a propósito do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, colocando o acento tónico na qualificação ou nomen iuris atribuída à decisão proferida pelo relator.
Porém, o Tribunal Central Administrativo Sul adotou, na decisão recorrida, posição diversa, deixando claro ser indiferente a qualificação da decisão, cabendo, assim, reclamação para a conferência das decisões do relator, sejam elas quais forem, desde que não sejam de mero expediente.
A decisão recorrida seguiu, aliás, o entendimento do Acórdão uniformizador de jurisprudência já referido, pelo que os recorrentes tiveram todas as condições para poderem suscitar adequadamente a questão de constitucionalidade, na resposta ao parecer aludido, apresentado pelo Ministério Público.
Por último, acrescenta o Ministério Público que a constitucionalidade da interpretação normativa efetivamente aplicada já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 846/2013, que não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “interpretada com o sentido de que das sentenças proferidas no âmbito de ações administrativas especiais de valor superior à alçada, julgadas pelo tribunal singular ao abrigo da referida alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência”.
Pelo exposto, finaliza, pedindo o indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelos reclamantes não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, a questão suscitada previamente pelos reclamantes, perante o tribunal a quo, não coincide com o critério normativo convocado como ratio decidendi pelo acórdão recorrido.
Independentemente de qualquer outra apreciação específica sobre tal questão – nomeadamente sobre se detém verdadeira natureza normativa – é manifesto que a mesma é construída com base na pressuposição de alteração da qualificação jurídica de determinada decisão, operada pelo tribunal de recurso, relativamente à qualificação assumida pelo tribunal que a proferiu. Tal circunstância determina, decisivamente, o distanciamento da questão suscitada, relativamente à argumentação do acórdão recorrido e, particularmente, ao respetivo fundamento jurídico decisório.
De facto, para o acórdão recorrido, a decisão do relator do tribunal de 1.ª Instância, apesar de corresponder a uma sentença, insere-se no âmbito da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cabendo da mesma reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2 do mesmo diploma.
A qualificação da decisão não assume, assim, relevo, nem é verdade que o acórdão recorrido a altere.
Pelo exposto, sendo certo que a fundamentação aduzida na decisão reclamada merece a nossa concordância, damos a mesma por reproduzida e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação.
III - Decisão
6. Nestes termos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 30 de dezembro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 25 de março de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.