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Processo n.º 165/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Os presentes autos, vindos do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, tiveram origem num processo criminal, em fase de Inquérito, em que o Ministério Público determinou a aplicação do segredo de justiça, nos termos do artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (na versão em vigor, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto).
Conclusos os autos ao juiz de Instrução Criminal, para validação da referida decisão do Ministério Público, foi proferido o seguinte despacho:
“O Ministério Público determinou a aplicação aos autos do segredo de justiça, de acordo com o disposto no art. 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (na versão em vigor, introduzida pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto), em face da natureza dos factos em investigação e requereu a sua validação.
Para este efeito estabelece tal disposição que o juiz de instrução deve validar a decisão do Ministério Público de sujeição dos autos a segredo de justiça, durante o inquérito.
No entanto, não é possível aceitar a validade de tal norma na parte em que exige a validação pelo juiz de instrução da decisão do Ministério Público de sujeição de autos a segredo de justiça.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2008, 2.ª edição actualizada, p. 242, nota 11, o art. 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal em vigor, é inconstitucional na medida em que confere ao juiz de instrução o poder de validar, ou seja, sindicar, o juízo do Ministério Público de sujeição do processo a segredo de justiça, em inquérito, particularmente, como é o caso deste processo, quando se visa apenas proteger de forma abstracta a investigação.
De acordo com o disposto no art. 219.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição é ao Ministério Público que compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática, sendo que, para tal fim, goza de um estatuto próprio e de autonomia.
Ao juiz de instrução apenas estão cometidas constitucionalmente funções de garantia do processo criminal, designadamente quanto a actos ofensivos dos direitos e liberdades do arguido, bem como a instrução do processo criminal, sempre com respeito pela estrutura acusatória do processo (art. 32.º, n.º 5, da Constituição).
Ora, não existe qualquer requerimento relativo a direitos, liberdades e garantias nos autos, sendo que a decisão a proferir por este tribunal, de acordo com o mencionado art. 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, seria genérica e de concordância ou não com a necessidade de sujeição do processo a segredo de justiça como forma de evitar a perturbação do inquérito.
Não cabe a este Tribunal a realização de juízos genéricos de constitucionalidade, tão-só a apreciação em concreto da conformidade das normas em aplicação, de acordo com os superiores parâmetros da Constituição (art. 204.º da Constituição).
E, nessa medida, em face das disposições referidas, parece flagrante a contradição entre as funções cometidas constitucionalmente ao juiz de instrução, bem como a própria estrutura acusatória do processo, e o exigido do juiz de instrução pelo art. 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na medida em que esta disposição obriga a uma implicação ou conivência do juiz de instrução genericamente no decurso e nas finalidades do inquérito, matéria que, por sua vez, é constitucionalmente atribuída, de forma exclusiva, ao Ministério Público, entidade dotada de autonomia.
Entende este Tribunal, por isso, que é ao Ministério Público que cabe, de forma exclusiva, efectuar qualquer juízo genérico sobre a sujeição dos autos a segredo de justiça como forma de evitar o que a tal entidade preconizará como os adequados actos de inquérito e o seu bom andamento processual, não tendo o juiz de instrução de, genericamente, sindicar tal opção.
Em face do exposto:
a) recuso a aplicação do disposto no art. 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal na parte em que exige que o juiz de instrução deve genericamente validar a decisão do Ministério Público de sujeição dos autos a segredo de justiça, durante o inquérito e com referência aos interesses da investigação, com fundamento na respectiva inconstitucionalidade; e
b) em consequência, indefiro a requerida validação do segredo de justiça, mantendo-se os autos sujeitos a este segredo por tal ter sido decidido pelo Ministério Público.”
2. Desta decisão, datada de 17 de Fevereiro de 2011, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC), “na parte em que recusou aplicar o disposto no artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal com fundamento na sua inconstitucionalidade, por entender que a mesma viola os princípios constitucionais do estatuto próprio e autonomia do Ministério Público, artigos 219.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e princípio da estrutura acusatória do processo penal, artigo 32º, n.º 5, da CRP”, relativamente ao segmento em que “exige que o juiz de instrução deve genericamente validar a decisão do Ministério Público de sujeição dos autos a segredo de justiça, durante o inquérito e com referência aos interesses da investigação.”
Admitido o recurso, o Ministério Público, junto deste Tribunal Constitucional, apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“1. A regra geral da publicidade do inquérito – de que o regime estabelecido no artigo 86º, nº 3, do CPP, constitui uma excepção – não é constitucionalmente aceitável.
2. Por isso, a norma do nº 3 do artigo 86º do CPP na parte em que exige que o Juiz de instrução deve genericamente validar a decisão do Ministério Público da sujeição dos autos a segredo de justiça, durante o inquérito e com referência aos interesses da investigação, é inconstitucional, por violação dos artigos 20º, nº 3, 32º, nº 5, e 219º da Constituição.
3. Mas mesmo que se não questione a regra geral da publicidade do inquérito, aquela intervenção do juiz de instrução não só se revela desadequada e desnecessária, como também violadora dos artigos 32º, nº 5 e 219º da Constituição, pelo que a norma do artigo 86º, nº 3, do CPP, na dimensão atrás referida, por violação daqueles preceitos constitucionais, é inconstitucional.
4. Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.”
II – Fundamentação
3. O despacho recorrido consubstancia-se numa decisão positiva de inconstitucionalidade relativa ao artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que exige que o Juiz de Instrução valide a decisão do Ministério Público de sujeição de processo crime, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a não inconstitucionalidade da norma em referência, nomeadamente no Acórdão n.º 110/2009, da 1.ª Secção.
Mais recentemente, nesta 2.ª Secção, foi proferido o Acórdão n.º 234/2011, relativamente à mesma norma. Os argumentos aduzidos neste último aresto, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, são transponíveis para a presente situação.
Nestes termos, reiterando-se a fundamentação aduzida no aludido Acórdão n.º 234/2011, renova-se o juízo de não inconstitucionalidade aí plasmado.
III – Decisão
4. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que exige que o Juiz de Instrução valide a decisão do Ministério Público de sujeição de processo crime, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça.
b) Julgar procedente o recurso e, em consequência, determinar a reformulação da decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Julho de 2011. – Catarina Sarmento e Castro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.