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Processo n.º 119/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. No incidente para qualificação da insolvência de A., Limitada, o Administrador da Insolvência propôs a qualificação da insolvência como fortuita, no que foi acompanhado pelo Ministério Público. Face a esta concordância, foi proferido despacho judicial a qualificar a insolvência como fortuita, ao abrigo do artigo 188.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
A Sociedade B., Limitada, credora que havia tido intervenção no incidente ao abrigo do n.º 1 do artigo 188.º do CIRE, interpôs recurso para a Relação do Porto, sustentando que a prova recolhida era suficiente para a qualificação da insolvência como culposa e suscitando a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 188.º, n.º 4, do CIRE.
O recurso não foi admitido, com fundamento em que a decisão era irrecorrível, nos termos do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE. A credora reclamou do despacho de indeferimento, ao abrigo do artigo 688.º do Código de Processo Civil (CPC), continuando a defender a inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 188.º, nos mesmos termos em que já anteriormente fizera.
Por despacho de 29 de Dezembro de 2010, proferido ao abrigo do n.º 4 do artº 688.º do Código de Processo Civil, a Relação deferiu a reclamação recusando a aplicação da norma do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE, com fundamento na inconstitucionalidade material, quando interpretada no sentido de que o juiz está vinculado a qualificar a insolvência como fortuita face aos pareceres do administrador de insolvência e do Ministério Público e revogou o despacho que não admitiu o recurso interposto pela reclamante, ordenando que fosse substituído por outro que admitisse tal recurso.
2. O Ministério Público, interpôs recurso desta decisão, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), visando a apreciação da constitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE.
Prosseguido o recurso, o Ministério Público apresentou alegações onde concluiu pela não inconstitucionalidade da norma e a consequente revogação da decisão recorrida, nos termos das seguintes conclusões:
“1. Os efeitos da qualificação da insolvência como culposa, são os constantes do artigo 189.º, n.º 2, do CIRE.
2. As medidas ali previstas têm natureza punitiva, visando o sancionamento de comportamentos de quem contribuiu para a insolvência, sendo certo que a qualificação como culposa ou fortuita não é vinculativa para efeitos de decisão de causas penais (artigo 185.º do CIRE).
3. Tendo em atenção essa finalidade e o estatuto do administrador da insolvência e do Ministério Público, a norma do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE, enquanto estabelece que, se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz profere decisão, irrecorrível, nesse sentido, não viola os artigos 20.º, n.ºs 1 e 2 e 202.º da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
4. Sendo os interesses dos credores salvaguardados pelas outras disposições do Código, se a medida a aplicar, afectar directamente os seus direitos – como, eventualmente, pode ocorrer com a prevista no artigo 189.º, n.º 2, alínea d), do CIRE –, tal terá de ser expressamente invocado e demonstrado, o que não se verificou.”
3. A interessada Sociedade B., Limitada contra-alegou sustentando a decisão recorrida e o entendimento de que a interpretação da norma no sentido de que o juiz está vinculado aos pareceres do Ministério Público e do administrador da insolvência é inconstitucional. Na prática, acrescenta, estar-se-ia a vincular o juiz, a quem cabe, em último instância, aferir da legalidade das actos do processo de insolvência, a um parecer ilegal, por violação manifesta do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE, uma vez que, se considera sempre culposa a insolvência quando se verificam os situações previstos nos alíneas a), b), c), d), e), g), h) do referido n.º 2 e presume-se a existência de culpa grave quando tenha sido incumprida, como sucedeu in casu, a obrigação prevista no alínea b) do referido n.º 3. No caso, não só foram alegados factos, como se demonstrou a verificação das situações previstas nas citadas alíneas, pelo que, quer o Ministério Público, quer o administrador da insolvência não poderiam deixar de qualificar a insolvência como culposa.
II. Fundamentos
4. O relator ouviu as partes sobre a possibilidade de não conhecimento do objecto do recurso, por poder entender-se que do despacho proferido ao abrigo do n.º 4 do artigo 688.º do CPC cabe reclamação para a conferência e, consequentemente, o recurso para o Tribunal Constitucional fica dependente do esgotamento desse meio de impugnação ordinária, como se decidiu no acórdão n.º 457/10, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Entende o Tribunal, concordando com a resposta do Ministério Público, que tal raciocínio só é válido relativamente a recursos (como, aliás, sucedia com o que foi apreciado no referido acórdão n.º 457/10) que estejam sujeitos à regra do esgotamento dos meios ordinários (cfr. n.ºs 2 e 3 do artigo 70.º da LTC), o que não sucede com os recursos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º, como é o caso presente.
Passa-se, pois, ao conhecimento do objecto do recurso.
5. Cumpre lembrar, por referência às alegações da recorrida, que não cabe ao Tribunal Constitucional determinar o sentido em que deve ser interpretado o n.º 4 do artigo 188.º do CIRE quando as posições convergentes do administrador da insolvência e do Ministério Público, na qualificação da insolvência como fortuita, contrariem as presunções estabelecida pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do mesmo Código. Designadamente, não compete ao Tribunal dizer se a norma deve ser interpretada restritivamente de modo a que, nessa hipótese, o incidente deva prosseguir (vid. Luis Carvalho Fernandes, “A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor”, Themis, ed. especial, 2005, págs. 81/104, maxime pag. 94). E em nenhuma circunstância lhe caberia apreciar a existência de factos aptos a conduzir, se provados, à qualificação da insolvência com culposa.
Assim, todas as considerações das contra-alegações da credora reclamante nestes domínios são irrelevantes.
Por outro lado, também não cabe ao Tribunal Constitucional averiguar se a pronúncia do tribunal a quo se manteve nos limites do tema da reclamação prevista no artigo 688.º do CPC, tal como a lei o estabelece (decidir sobre a admissibilidade do recurso), ou se excedeu esses limites, entrando na apreciação de uma questão que já respeitaria à questão de fundo (a vinculação do juiz ao sentido dos pareceres concordantes do administrador e do Ministério Público). Embora a norma do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE seja divisível em dois segmentos, contendo normas autónomas – aquele que respeita ao sentido da decisão a proferir perante pareceres concordantes de insolvência fortuita e aquele que respeita à irrecorribilidade dessa decisão –, o acórdão recorrido determinou a admissão do recurso com fundamento na inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE, sem qualquer distinção, embora com argumentos que apenas incidem sobre a solução normativa da primeira parte do preceito.
6. Cumpre, todavia, ao Tribunal proceder à delimitação do objecto do recurso.
Com efeito, o acórdão recorrido recusou aplicação à norma do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE, quando interpretada no sentido de que o juiz está vinculado pelos pareceres conformes do administrador da insolvência e do Ministério Público. O juiz teria sempre de homologar a qualificação da insolvência como fortuita desde que esse fosse o sentido concordante do parecer do administrador da insolvência e do Ministério Público.
Deve, porém, ponderar-se que a concordância destas entidades no sentido do carácter fortuito da insolvência pode verificar-se nemine discrepante ou ser contrariada por opinião de outros sujeitos processuais legitimados a intervir no incidente. No caso verifica-se esta segunda hipótese e isso confere à norma desaplicada uma dimensão qualificada que corresponde a uma hipótese normativa de menor extensão mas que coloca um problema de constitucionalidade específico. Aquela que consiste em o juiz dever qualificar a falência como fortuita, pondo termo ao incidente, perante os referidos pareceres convergentes, ainda que algum interessado tenha apresentado alegações em sentido contrário. Com efeito, essa foi a situação processual a que a norma foi aplicada e foi relevante na ponderação efectuada, apesar de a fórmula de recusa de aplicação ter aparentemente um alcance mais geral. Na verdade, o acórdão enunciou a questão do seguinte modo (itálico aditado): “interpretando-se o artº 188° nº 4 do CIRE, no sentido de que o juiz está vinculado à qualificação da insolvência como fortuita, mesmo nos casos em que um interessado tenha requerido a qualificação como culposa, retira-se ao tribunal a resolução do conflito de interesses, na medida em que o acto a proferir tem um conteúdo meramente formal, homologatório, e pré determinado pelos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público, os quais, com todo o devido respeito, não se integram na noção constitucional de ‘tribunal’ que acima expusemos”.
Portanto a dimensão normativa cuja constitucionalidade cumpre apreciar não é a de saber se é inconstitucional que o juiz da insolvência a deva qualificar como fortuita, sem examinar os respectivos pressupostos, se a tanto se inclinarem o Ministério Público e o administrador da insolvência, limitando-se a homologar essa qualificação, designadamente, quando nenhum interessado tenha apresentado alegações em sentido contrário. Mas se o é quando o juiz tenha de decidir nesse sentido apesar de essa posição ser contrária a pretensão formalmente manifestada no processo, ao abrigo do n.º 1 do mesmo artigo 188.º, por qualquer interessado legitimado para intervir no incidente.
7. Um dos objectivos da reforma do regime da insolvência operada pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, consiste na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares da empresa e dos administradores de pessoas colectivas. É essa a finalidade do novo “incidente de qualificação da insolvência”, que o preâmbulo do diploma confessa ser inspirado na “Ley Concursal” espanhola.
O incidente é aberto oficiosamente em todos os processos de insolvência, qualquer que seja o sujeito passivo, e não deixa de ser instaurado mesmo em caso de encerramento do processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as dívidas da própria massa, revestindo nesta hipótese a forma de “incidente limitado de qualificação da insolvência” (cfr. artigo 191.º do CIRE). O incidente destina-se a apurar, sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil (artigo 185.º do CIRE), se a insolvência é fortuita ou culposa. Considera-se culposa a insolvência quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao processo de insolvência (n.º 1 do artigo 186.º do CIRE).
Assim, na sentença em que declara a insolvência é aberto o incidente de qualificação da insolvência (com a excepção prevista no artigo 187.º), que pode ser pleno ou limitado, sendo a primeira modalidade a aplicável ao comum das situações e aquela que no caso foi seguida.
A tramitação do “incidente pleno”, encontra-se regulada no artigo 188.º, que dispõe:
“Artigo 188.º
Tramitação
1 – Até 15 dias depois da realização da assembleia de apreciação do relatório, qualquer interessado pode alegar, por escrito, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
2 – Dentro dos 15 dias subsequentes, o administrador da insolvência apresenta parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for o caso, as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa.
3 – O parecer vai com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias.
4 – Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz profere de imediato decisão nesse sentido, a qual é insusceptível de recurso.
5 – No caso contrário, o juiz manda notificar o devedor e citar pessoalmente aqueles que, segundo o administrador da insolvência ou o Ministério Público, devam ser afectados pela qualificação da insolvência como culposa para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias; a notificação e as citações são acompanhadas dos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público e dos documentos que os instruam.
6 – O administrador da insolvência, o Ministério Público e qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições pode responder-lhe dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no número anterior.
7 – É aplicável às oposições e às respostas, bem como à tramitação ulterior do incidente da qualificação da insolvência, o disposto nos artigos 132.º a 139.º, com as devidas adaptações.”
Se bem que a qualificação comporte um momento declarativo (cfr. artigo 189.º, n.º1), o que é materialmente relevante são as consequências jurídicas que de tal qualificação podem resultar. E estas só decorrem da qualificação da insolvência como culposa, não implicando a qualificação como fortuita, isto é, quando se concluir pela inexistência de dolo ou culpa grave na génese ou agravamento da situação do insolvente (n.º 1 do artigo 186.º), outra consequência senão o encerramento do incidente com a inerente paz jurídica daqueles contra quem pudesse dirigir-se, relativamente às medidas que contra eles, por essa via, poderiam ser decretadas.
Efectivamente, é da qualificação da insolvência como culposa que resultam consequências jurídicas relevantes, de carácter sancionatório para os visados e reflexamente vantajosas para os credores. Nos termos do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, a qualificação da insolvência como culposa implica que o juiz imponha às pessoas afectadas por essa qualificação:
“Artigo 189.º
Sentença de qualificação
1 – (…)
2 – Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) (…)
b) [Declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 173/09];
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
3 – (…).”
8. Na decisão recorrida, após considerações sobre o princípio da reserva do juiz e as vantagens patrimoniais que podem advir para os credores da qualificação da insolvência como culposa, diz-se:
“Existe, por isso, um conflito de interesses a decidir de acordo com critérios exclusivamente jurídicos, aplicando as disposições legais que prevêem os comportamentos susceptíveis de acarretar a qualificação da insolvência como culposa.
Daí que, interpretando-se o artigo 188.º, n.º 4 do CIRE, no sentido de que o juiz está vinculado à qualificação da insolvência como fortuita, mesmo nos casos em que um interessado tenha requerido a qualificação como culposa, retira-se ao tribunal a resolução do conflito de interesses, na medida em que o acto a proferir tem um conteúdo meramente formal, homologatório e pré determinado pelos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público, os quais, com todo o devido respeito, não se integram na moção constitucional de “tribunal” que acima expusemos.
Ora, tratando-se de mera homologação, como vimos, não podemos admitir que não é susceptível de impugnação em via de recurso, o que significaria que o normativo em causa veda, de forma injustificada, o acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva por parte dos interessados na qualificação da insolvência como culposa.”
A qualificação da insolvência como culposa acarreta as consequências que já se referiram. Sancionam-se, por essa via e sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal que concorra, comportamentos de quem contribuiu para a insolvência. Sanção que assume uma finalidade simultaneamente repressiva e preventiva, sobretudo quando o insolvente seja uma empresa, visando acautelar práticas lesivas do interesse geral, designadamente, por serem atentatórias ou colocarem em perigo o funcionamento eficiente dos mercados, objectivo que está assumido entre as “incumbências prioritárias” que o Estado deve assegurar [artigo 81.º, alínea f) da Constituição].
É certo que o carácter dominantemente sancionatório das medidas e a transcendência do seu escopo relativamente aos credores do insolvente, não elimina totalmente o interesse destes na qualificação da insolvência como culposa. Basta ver que uma das medidas que o juiz deve impor é a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. Ora, esta perda de créditos sobre a insolvência ou sobre a massa é potencialmente vantajosa para os credores, que assim vêm acrescida a probabilidade de obter satisfação para o seu crédito, ou de o ver satisfeito em maior percentagem.
Trata-se, todavia, sempre de um efeito indirecto ou reflexo. Com essa medida não se visa determinar a responsabilidade da pessoa por ela afectada perante os credores, perante a empresa insolvente ou perante a massa. Essa responsabilidade permanece e pode ser objecto de acções autónomas (artigo 185.º). Nem com a sua não decretação fica prejudicada a possibilidade de os interessados, se para tanto tiverem fundamento, impugnarem esses mesmos créditos que poderiam vir a ser declarados perdidos se a situação do devedor fosse qualificada como insolvência culposa. O legislador adoptou uma medida gravosa de perda de direitos, para ser imposta sem necessidade de demonstração de relação de causalidade entre a aquisição do crédito declarado perdido e a específica actuação em função da qual o visado é considerado responsável pela insolvência culposa. Essa medida acresce à inibição para o exercício do comércio ou para o desempenho dos cargos referidos na alínea b) do mesmo preceito e tem uma finalidade acentuadamente de prevenção geral. Os interesses individuais dos credores não podem considerar-se directamente salvaguardados pelas medidas constantes do artigo 189.º, mas sim pelos meios gerais de tutela que conservam e por todos os outros mecanismos previstos no Código, regime este que, atenta a finalidade do processo de insolvência (artigo 1º do CIRE), se afasta, por vezes, do regime geral, sem que tal, por si só, leve à verificação de qualquer inconstitucionalidade (Acórdãos nºs 395/06, 576/06 e 50/09).
Assim, tendo as medidas aplicáveis na situação de insolvência culposa natureza essencialmente sancionatória e de interesse geral de preservação da sã actividade económica, não é arbitrário e, sobretudo, não priva os credores da possibilidade de defesa de uma posição jurídica própria o facto de a lei dispor de tal modo que a legitimidade para fazer prosseguir o incidente em ordem à qualificação da insolvência como culposa acabe por ser restrita ao Ministério Público e ao administrador da insolvência. Esta selectividade dos sujeitos legitimados para fazer prosseguir o incidente não é arbitrária ou desrazoável. O Ministério Público, tendo em atenção o seu estatuto constitucional e legal de defesa da legalidade em geral, necessariamente exterior aos interesses particulares que se movimentam no processo de insolvência. O administrador da insolvência, como órgão executivo da insolvência a quem compete prosseguir os interesses comuns dos “proprietários económicos da empresa” em que a declaração de insolvência torna os credores, pelos interesses reflexos que a declaração pode trazer para a massa e pelo seu estatuto de servidor da justiça e do direito, devendo manter sempre a maior independência e isenção, não prosseguindo quaisquer objectivos diversos dos inerentes ao exercício da sua actividade (artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho).
9. Deste modo, tendo em atenção a natureza das medidas aplicáveis, a sua finalidade e o estatuto quer do administrador da insolvência, quer do Ministério Público, havendo uma convergência de opinião no sentido de que a falência deve ser qualificada como fortuita, a solução legislativa que consiste em o juiz ter de “aceitar” um tal entendimento e a irrecorribilidade dessa decisão, não viola qualquer preceito constitucional, designadamente o artigo 20.º, nºs 1 e 2 e 202.º da Constituição.
Não viola o n.º 1 do artigo 20.º (direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos), porque a finalidade do incidente e dos efeitos que da qualificação da insolvência como culposa podem decorrer é a tutela do interesse geral e, só reflexamente, o interesse comum dos credores. Não o de cada credor individualizado, que não sofre com o encerramento do incidente privação de qualquer meio de defesa judicial do seu crédito ou de impugnação dos créditos concorrentes, incluindo os daqueles que poderiam ser atingidos por tal qualificação. Deste modo, não sendo o credor individualmente afectado nos seus direitos e interesses legalmente protegidos com a qualificação da insolvência como fortuita, a Constituição não impõe que lhe seja assegurada legitimidade para fazer prosseguir o incidente de qualificação da insolvência.
E tal solução também não viola o princípio da reserva do juiz ou reserva de jurisdição, consagrada no n.º 1 do artigo 201.º, ou a definição de função jurisdicional que se retira do n.º 2 do mesmo artigo 201.º da Constituição.
O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., pág. 509, “a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que actuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade). Só aos tribunais compete administrar justiça e, dentro dos tribunais, é ao juiz que tal compete.
Porém, essa reserva não impede, antes pressupõe, que a intervenção e os poderes de pronúncia do juiz sejam condicionados a pressupostos processuais, designadamente de legitimação para pedir que seja dirimido determinado conflito de interesses públicos e privados. Ora, do que verdadeiramente se trata, quando o juiz é chamado a proferir uma decisão homologatória da qualificação da insolvência como fortuita nos termos do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE, perante a posição concordante do Ministério Público e do administrador da insolvência, é de reconhecer a inexistência de uma pretensão relevante de qualificação da situação de quebra como culposa e de aplicação de sanções aos responsáveis (cfr. n.º 5 do mesmo artigo 188.º).
Mesmo na referida interpretação (cfr. interpretando restritivamente a vinculação o juiz aos pareceres, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2008, pág. 619), a lei não comete a outra entidade que não o juiz competência para dirimir conflitos e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, nem priva o juiz desse poder ou dessa função. Apenas reconhece e extrai as consequências processuais de, finda a fase preparatória do incidente de qualificação da insolvência oficiosamente aberto (n.ºs 1 a 3 do artigo 188.º), as entidades legitimadas para prossegui-lo entenderem que não há razões de facto ou direito que justifiquem pedir a qualificação da insolvência como culposa e a aplicação das sanções inerentes. É o conflito que não se manifesta, não o poder de dirimi-lo que é atribuído a outra entidade ou retirado ao juiz.
10. E ainda que se não acompanhe o que anteriormente se disse e se considere que a referida intervenção homologatória do juiz viola as mencionadas normas e princípios constitucionais, ao menos quando algum interessado tenha manifestado entendimento contrário ao adoptado pelas entidades referidas no n.º 4 do artigo 188.º do CIRE, não se segue que o vício afecte a norma na sua totalidade. Designadamente, tal vício não implicará a inconstitucionalidade do segundo segmento do preceito, a parte em que estabelece a irrecorribilidade da decisão do juiz da insolvência, que é o abrangido pelo dispositivo do acórdão. Uma coisa é averiguar se o incidente deve prosseguir, apesar de nem o Ministério Público nem o administrador da insolvência o promoverem. Outra coisa é saber se a decisão do juiz que ponha termo ao incidente tem de ser recorrível.
Ora, esta questão (duplo grau de jurisdição) é distinta e coloca problemas de constitucionalidade diversos daqueles que consistem em saber quem tem direito a pedir tutela jurisdicional e a que condições e limites está sujeita a pronúncia do juiz de 1ª instância sobre determinada matéria (acesso ao tribunal ou ao primeiro juiz). A eventual inconstitucionalidade da primeira parte do preceito, justificaria constitucionalmente a abertura de recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do juiz de 1ª instância (consoante o sentido da decisão deste e observados os correspondentes pressupostos), mas não interfere com a necessidade de assegurar recurso para um tribunal superior da ordem judiciária.
Efectivamente, o duplo grau de jurisdição apenas está consagrado expressamente como uma das garantias de defesa em processo penal contra decisões condenatórias ou que afectem a liberdade do arguido (artigo 32.º, n.º1, da CRP). Além do âmbito penal, é considerado por alguma doutrina e jurisprudência, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, como inerente à protecção contra decisões que imponham restrições a direitos liberdades e garantias pessoais (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pág 200). Fora desses domínios específicos, o legislador dispõe de uma larga margem de conformação do direito ao recurso, seja quanto à definição das decisões jurisdicionais susceptíveis de impugnação e aos condicionamentos da recorribilidade, seja quanto aos demais aspectos da sua regulação. O que não significa que o legislador possa proceder arbitrariamente a essa conformação, devendo observar na disciplina dos recursos os princípios constitucionais gerais, designadamente as exigências impostas pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade e, em particular, as exigências do processo equitativo. O Estado que organiza um duplo grau de jurisdição tem o dever de lhe assegurar o acesso e o desenvolvimento no respeito das garantias do processo equitativo, como tem sido reconhecido pelos órgãos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, apesar de afirmarem que, em matéria civil, o artigo 6.º da CEDH não requer a existência de jurisdições superiores (cfr. Jacques van Compernolle e Achille Saletti, Le Double Degré de Juridiction, Étude de droit comparé, ed. BRUYLANT, Bruxelles, 2010, p. 4).
Ora, nada tem de arbitrário que se consagre a irrecorribilidade de decisões que conduzem à qualificação da insolvência como fortuita perante a convergência de posição daquelas entidades legitimadas neste domínio específico para defender o interesse geral da comunidade e o interesse comum dos credores. Mesmo que não cobre grande sentido invocar a este propósito a especial celeridade que caracteriza o processo de insolvência porque o incidente tem autonomia, não interferindo com a gestão da massa, a liquidação do activo ou a verificação de créditos, trata-se de decisões que não aplicam sanções, caindo no espaço geral de discricionariedade legislativa em matéria de recursos. Aliás, a situação inversa, de qualificação da insolvência como culposa é que pode justificar imperatividade constitucional de duplo grau de jurisdição pelas consequências agressivas que comporta (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª ed., pág. 661).
Em conclusão, a norma do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE não viola os artigos 20.º, n.ºs 1 e 2 e 202.º da Constituição, (i) quer no segmento em que estabelece que, se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz profere decisão nesse sentido mesmo que haja interessados que tenham manifestado posição diversa, (ii) quer no segmento em que considera tal decisão irrecorrível.
Consequentemente, a decisão recorrida não pode manter-se na parte em que recusou aplicação à referida norma, que não se julga inconstitucional.
III. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, determina-se a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Julho de 2011. – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.