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Processo n.º 290/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., S.A., deduziu, no Tribunal Tributário de Lisboa, impugnação judicial da liquidação de IRC n.º 8310037392, referente ao exercício de 1997, e da liquidação de IRC n.º 8310037391, referente ao exercício de 1998.
O Tribunal Tributário de Lisboa, por sentença de 25 de Março de 2009, julgou verificada a excepção de caducidade do direito de acção e, consequentemente, absolveu a Fazenda Pública do pedido de nulidade, anulação e ineficácia das aludidas liquidações de IRC referentes aos exercícios de 1997 e 1998.
Inconformada, a Impugnante A., S.A., interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul que, por acórdão de 9 de Março de 2010, negou provimento ao recurso.
A Impugnante recorreu deste acórdão para o Supremo Tribunal Administrativo, tendo tal recurso não sido admitido por despacho de 12 de Maio de 2010.
A Impugnante requereu a aclaração desta decisão, o que foi indeferido por despacho de 14 de Julho de 2010.
A Impugnante apresentou então reclamação da decisão de não admissão do recurso e, por despacho da Conselheira Relatora proferido em 16 de Dezembro de 2010, tal reclamação foi desatendida.
Após ter requerido a aclaração deste último despacho e de tal lhe ter sido indeferido, a Impugnante recorreu para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
« 1. A ora recorrente não se conformando com o decidido no douto despacho, de 2010.12.16, e no douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 2010.09.03, vem deles recorrer para o Venerando Tribunal Constitucional, nos termos dos arts. 69º e segs. da Lei do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro.
2. O presente recurso tem como fundamento as questões de inconstitucionalidade material dos arts. 34º do CPT, do art. 9º da LGT e dos arts. 36º e 37º do CPPT, na interpretação e com o sentido normativo que lhes foi atribuído in casu, por violação dos arts. 20.º, 103.º e 268.º/3 e 4 da CRP.”
Notificada para explicitar quais as interpretações dos preceitos indicados sustentadas nas decisões recorridas, cuja constitucionalidade pretendia ver sindicada, a Recorrente fê-lo da seguinte forma:
“I. DAS INCONSTITUCIONALIDADES MATERIAIS CONCRETAMENTE INVOCADAS
I.1. DA INCONSTITUCIONALIDADE NA APLICAÇÃO DAS REGRAS SOBRE PRESCRIÇÃO DA PRESTAÇÃO TRIBUTARIA - ARTIGOS 34º do CPT, 48.º DA LGT e 175.º DO CPPT
Nos n.ºs 2 e 3 artigo 34.º do CPT – Código do Processo Tributário, aplicável in casu, estabelecia-se que o prazo de prescrição da prestação tributária se conta desde o início do ano seguinte àquele em que aquele facto tiver corrido a obrigação tributária, a qual se interrompe com a reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e a instauração da execução.
A recorrente invocou a prescrição desse poder de tributar, alegando concretamente:
• Que reclamou graciosamente, em devido tempo, das correcções à matéria colectável dos exercícios de 1997 e 1998 e bem assim do imposto (IRC) adicionalmente liquidado, acrescido de juros compensatórios no decurso do ano de 2003;
• Que a decisão expressa, de indeferimento da referida reclamação graciosa, foi tomada apenas em 20 de Março de 2006 pela Direcção de Finanças de Lisboa tendo esse indeferimento sido comunicando precisamente no dia 28 desse mês, conforme consta provado nos autos;
• Que o processo de reclamação graciosa esteve parado mais de um ano por facto não imputável ao contribuinte; e
• Que à data da entrada em vigor da Lei nº 53-A/2006, de 29.12 e da consequente revogação do nº 2 do artigo 49º da LGT já o prazo de um ano tinha decorrido integralmente; e, ainda,
• Que embora o regime substantivo da prescrição aplicável seja o previsto no CPT, o prazo prescricional é o prazo de oito anos previsto na LGT, nos termos e com os fundamentos do artigo 279.º do Código Civil, para onde de resto remete o n.º 1 do artigo 5º do Dec. Lei n.º 398/98.
Consequentemente, a ora recorrente deixou plenamente alegada e provada a prescrição da obrigação tributária, que oportunamente invocou para todos os efeitos legais.
A qual, não obstante ser de conhecimento oficioso, não foi apreciada por nenhum dos Tribunais recorridos.
Mais invocou, e provou, a ora recorrente que a idêntica conclusão se chegaria ainda que o Douto Tribunal recorrido aplicasse aos factos o regime previsto no art. 48.º da LGT (e não o do CPT), mas essa invocação não foi, do mesmo modo, objecto de decisão do Douto Tribunal recorrido.
Pelo que, embora haja invocado plenamente a prescrição da dívida tributária ocorreu em 31.12.2006 e 31.12.2007, respectivamente, não logrou que a sua pretensão expressa de que a mesma fosse objecto de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 175.º do CPPT, fosse apreciada.
Não tendo suscitado o Douto Tribunal recorrido a aplicação do artigo 48.º da Lei Geral Tributária, o que constitui a violação de uma garantia fundamental constante do disposto no artigo 103.º da CRP, assim como os princípios da igualdade e da justiça material.
Termos em que a decisão em apreço padece de inconstitucionalidade material, por violação, nomeadamente, do 103.º da CRP, assim como dos princípios da igualdade e da justiça material.
I.2. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DE NORMAS, POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 103.º, 266.º E 268.º N.º 3 E N.º 4 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA E DA VIOLAÇÃO DO DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS POR ERRADA INTERPRETAÇÃO DOS ARTIGOS 36.º E SEGS. DO CPPT, 66.º E SEGS. DO CPA
A recorrente invocou, ainda, nas petições iniciais apresentadas no Tribunal Tributário de 1.ª Instância e no requerimento de recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo Sul, que o comportamento do órgão da administração fiscal era violador do 268.º da CRP, em especial quando ali se determina que “os actos administrativos estão sujeitos a notificação, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.”
Assim, um comportamento da administração fiscal que viola as regras legais sobre o dever específico de notificação dos actos lesivos de direitos, consubstanciados:
• na absoluta omissão de formalidades essenciais imperativas, em ambos os supra referidos procedimentos de notificação,
• na realização de outras formalidades de forma incompleta ou defeituosa,
• na violação do direito ao efeito suspensivo da liquidação previsto no artigo 91.º n.º 2 da LGT,
E que, de forma substantiva, não permitiu que o destinatário tivesse um conhecimento claro e completo dos actos que com aquelas se pretendia dar a conhecer e o impediu, na prática, de exercer o direito de recurso previsto no artigo 91.º da LGT e de exercer os seus mais legítimos direitos de defesa, violando claramente esse direito fundamental.
Ora, a recorrente sempre invocou, e provou, ter apenas tomado conhecimento informal, em JANEIRO DE 2003, das duas liquidações adicionais de IRC dos anos de 1997 e 1998.
Não obstante haver feito prova desse facto, foi erradamente, e de forma reiterada, dado como provado nas doutas sentenças recorridas que “o impugnante teve conhecimento das liquidações EM DEZEMBRO DE 2002 e dos fundamentos de facto e de direito desses actos tributários, na medida em que refere expressamente que foi notificada das liquidações de IRC através dos documentos de cobrança n.º 8310037392, 831007391” (cfr. fls. 2, primeiro parágrafo do Acórdão do TCA Sul e Sentença do Tribunal tributário de 1.ª Instância, fls. 2, primeiro parágrafo).
Assim se considerando procedente a excepção da intempestividade da impugnação judicial e consequente caducidade do direito à acção.
Sucede que tais factos não correspondem à verdade.
Antes, porém, constitui um relevante erro de julgamento, no qual laborou igualmente o Tribunal Central Administrativo Sul, porque:
• o envio postal daquelas notas de liquidação não foi acompanhado do envio da fundamentação dos actos que se pretendia dar a conhecer;
• a administração fiscal tentou alegadamente realizar a notificação dessa fundamentação através do sistema de notificação pessoal, a qual, para além de se encontrar enviada de ilegalidades, não chegou ao conhecimento da ora recorrente.
Ora, como é patente, a recorrente não teve acesso à fundamentação dos actos de liquidação, pelo que invocou que não se pode, de forma alguma, considerar-se regularmente notificada do acto de liquidação em Janeiro de 2003 (artigos 36.º do CPPT e 66.º e 68.º e segs. do CPA).
Mas nem o Tribunal Tributário de 1.ª instância, nem o Tribunal Central Administrativo Sul, relevam o facto de a impugnante haver solicitado, por certidão isenta, os fundamentos do procedimento administrativo de notificação, a qual lhe foi passada nos termos requeridos.
Embora esse constitua um facto da maior relevância na contagem dos prazos para reclamar ou recorrer.
O que constitui uma clara violação do artigo 37º do CPPT, o qual dispõe expressamente que “pode o interessado.., dentro do prazo para reclamação, recurso ou impugnação... requerer... a passagem de certidão... isenta de qualquer pagamento.”
Pois que, tendo sido efectivamente passada certidão à recorrente, conforme requerera, tal passagem equivale à assunção de que a anterior notificação dos actos que a administração fiscal pretendeu levar ao seu conhecimento não foram por ela realizados nos termos legalmente previstos.
Assim, o entendimento sufragado pelo Tribunal Recorrido não tem nenhum apoio no disposto no artigo 37º n.º 1 do CPPT, nem tal entendimento se compagina com o princípio constitucionalmente consagrado do direito à tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem.
Face ao que dispõe a Constituição da República Portuguesa, não é de prescindir de uma comunicação formal do acto ao interessado, com indicação dos requisitos exigidos na lei, como condição de eficácia em relação a eles dos actos susceptíveis de afectar a sua esfera jurídica, quer se tratem, ou não, de direitos legalmente protegidos.
Consequentemente, à luz do disposto nos artigos 77º, em especial o seu n.º 6, da LGT, 36.º e segs. do CPPT e 268.º da CRP, a eficácia do acto está dependente de notificação com a respectiva fundamentação e, sem tal notificação integral, os actos não são eficazes em relação ao destinatário se não forem validamente notificados (neste sentido, DIOGO LEITE DE CAMPOS e JORGE LOPES DE SOUSA, LGT anotada, 3ª edição, 2003, e entre muitos outros, os Acs. do STA de 17.9.1995, recurso n.º 17875 Ap. DR de 14.8.1997, pág. 13112 e de 4.3.1993, recurso n.º 24169, BMJ n.º 365, pág. 426, Ap. DR. de 7.5.1993, pág. 1095, a contrario).
Sucede que, in casu, tal certidão foi passada à recorrente apenas em 23 de Maio de 2006, enviada através do ofício n.º 2823 de 29 de Maio de 2006, objecto de registo nos CTT em 2 de Junho de 2006, pelo só desde essa data estava o impugnante em condições de conhecer o teor e a fundamentação dos actos que se pretendia levar ao seu conhecimento, mas também de todos os demais actos lesivos dos seus legítimos interesses e direitos.
Pelo que o prazo para a dedução de impugnação judicial só então correu termos, tendo a impugnação deduzida pela recorrente sido interposta tempestivamente.
A interpretação que resulta do Douto Acórdão e Sentença recorridos equivalem, na prática, à denegação dessa tutela.
No caso em apreço, o acto só se tornou plenamente eficaz depois do conhecimento do teor da identificada certidão, pelo que a tese desenvolvida das Doutas sentenças é inconstitucional por patente violação dos direitos fundamentais, oportunamente invocados, constantes dos artigos 268.º da CRP.
O entendimento em sentido contrário, de que não teria havido ofensa de direitos fundamentais, veiculado em ambas as decisões dos Tribunais “a quo” traduz um sentido e um resultado interpretativo que ofende claramente esse direito a uma tutela jurisdicional efectiva, cuja reparação aqui e pretende.
I.3. DA PRÁTICA DE OUTROS ACTOS LESIVOS DE INTERESSES CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS
A Recorrente invocou, ainda, nomeada e especificamente, de forma autonomizada, a falsidade de documentos, a falsidade de datas e de factos, bem como a violação dos princípios da boa-fé e da transparência, do dever de verdade e da justiça e, ainda, a violação das regras de competência dos órgãos envolvidos no que respeita à notificação dos fundamentos da matéria tributável e do imposto adicionalmente liquidado.
Mais invocou a falsidade das declarações produzidas pelos agentes da administração fiscal que pretensamente intervieram, como é o caso das constantes nos artigos 76.º a 83.º da petição inicial, que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais.
Invocando e provando que tais diligências e actos se não puderam realizar nas datas e nos temos invocados, não sendo materialmente possível a sua realização com a conformação que os agentes administrativos lhe quiseram dar.
Violações essas que não foram reparadas na interpretação restritiva e errada que o Douto Tribunal recorrido fez do disposto nos artigos 103.º, 266.º n.º 1 e 268.º da CRP.
Densificando mal, por consequência os princípios fundamentais da protecção da confiança, da justiça, da igualdade, do direito a uma tutela jurisdicional efectiva que aqui se denega, bem como do direito fundamental a que a liquidação e cobrança do imposto nos estritos termos e prazos estabelecidos por lei, e ou determinados a partir de uma matéria tributável irregularmente constituída ou fixada.
I.4. DA DENEGAÇÃO DO RECONHECIMENTO DO VÍCIO DE NULIDADE E CONSEQUENTE INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS DOS ARTIGOS 77.º DA LGT – LEI GERAL TRIBUTARIA, 35.º, 36.º, 37.º 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º E 43.º DO CPPT – CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO, 133.º DO CPA – CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
As violações dos preceitos supra referidos não foram consideradas como consubstanciadoras do vício de nulidade dos actos lesivos praticados, com pretenso fundamento no entendimento de que os alegados vícios não consubstanciariam nulidades, mas meras ilegalidades (de liquidação e de notificação) do procedimento – cfr. fls 3, 4.º parágrafo, da Sentença do TT de 1.ª Instância e Acórdão do TCA Sul de 9.3.2010.
Tal entendimento não é, porém, de aceitar porque o mesmo se traduz numa visão redutora do conceito de ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, inaceitável face à ordem de valores instituída.
Efectivamente, a tese defendida de que os vícios concretamente invocados, que afectam os actos de fixação de mataria colectável, de liquidação e de notificação de impostos adicionalmente liquidados, consubstanciam meras ilegalidades não colhe.
Na verdade,
Ao considerar improcedente o invocado vício de nulidade absoluta das formalidades de (1) notificação do acto de fixação da matéria tributável por métodos, e bem assim,
Ao considerar que os vícios do procedimento de notificação dos (2) actos de liquidação adicional de IRC não ofendem o disposto nos artigos 77º da LGT – Lei Geral Tributária, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º e 41.º do CPPT – Código de Procedimento e de Processo Tributário, 37.º, 38.º, 40.º, 42.º 43.º e 133.º do CPA – Código de Procedimento Administrativo
e, consequentemente,
Não conhecendo o recurso interposto pela ora recorrente com fundamento no facto de os vícios do procedimento de notificação consubstanciarem “meras” violações do princípio da legalidade e, por isso não ofenderem o conteúdo essencial de um direito fundamental,
Os Tribunais “a quo” interpretam tais vícios como acarretando a mera anulabilidade desses actos e procedimentos administrativos e, consequentemente, entendem que os mesmos não ofendem o conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos e para ao efeitos previstos, entre outros, na al. d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA.
Entendimento com o qual a recorrente se não conforma em virtude do que se dispõe de forma expressa e inequívoca nos artigos 77.º da LGT – Lei Geral Tributária, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º e 43.º do CPPT – Código de Procedimento e de Processo Tributário e 133.º do CPA – Código de Procedimento Administrativo e 241.º e segs. do Código do Processo Civil sobre o dever de notificar na forma prevista na Lei.
Pois que nulos são os actos que contendem com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Os Tribunais “a quo”, ao realizarem uma tal interpretação das regras legais sobre o dever de notificar e sobre as formalidades da notificação, declarando meramente anulável e não nulo um comportamento gravemente defeituoso do órgão do poder público que tinha interesse em levar certo acto lesivo ao conhecimento do particular, realizam interpretação que ofende o direito fundamental a conhecer, na forma prevista na lei, os actos administrativos que afectem direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Como bem o salienta o Conselheiro Benjamim Rodrigues, a escolha da sanção da nulidade (absoluta) representa também uma opção quanto à protecção que se quer dar aos valores da segurança jurídica dos sujeitos a quem o acto pode aproveitar, no sentido de se não permitir essa consolidação em qualquer momento fundada na causa fulminada com a nulidade (cfr. declaração de voto de vencido ao Acórdão do STA (Plenário), processo n.º 22251, publicado nos Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 43, Janeiro / Fevereiro de 2004).
Neste mesmo sentido alinha a posição preclara de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE ao afirmar que a nulidade não constitui uma categoria excepcional, tornando inevitável, perante o princípio da juridicidade assente numa cultura de direitos dos cidadãos e com a intensificação dos poderes de fiscalização judicial da actividade administrativa, o entendimento de que se devem considerar nulos os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental ou o núcleo de princípios constitucionais básicos (Anotação ao Acórdão do STA (Plenário), processo n.º 22251, publicado nos Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 43, Janeiro / Fevereiro de 2004).
Assim, entende o ilustre Professor que devem ser considerados nulos todos os actos que sofram de vícios de tal modo graves que tornem inaceitável a produção dos respectivos efeitos, isto é, todos aqueles em que seja possível realizar um juízo valorativo de gravidade.
Assim como, no raciocínio expendido por Vieira de Andrade, é nulo um acto que obrigue certo particular a pagar um imposto em violação do disposto no artigo 103.º da CRP, assim também se deveria considerar nulo o acto ou procedimento pelo qual o dever de notificar se realiza com grave atropelo sobre as regras constituintes, porque, em ambos os casos não está apenas em causa o direito de propriedade, mas um direito de cidadania que impõe que o destinatário de certo acto possa dele tomar conhecimento segundo um procedimento realizado de forma que lhe salvaguarde tal dimensão.
Consequentemente, face ao exposto, deverá conhecer-se e declarar-se a inconstitucionalidade material das normas dos seguintes artigos:
1. Dos artigos 34.º do CPT, 48.º da LGT e 175.º do CPPT quando interpretadas no sentido da não oficiosidade do conhecimento da prescrição do direito ao imposto;
2. Dos artigos 36.º e segs. do CPPT e 66.º e segs. do CPA em virtude do entendimento expresso de que:
a) A absoluta omissão de formalidades essenciais imperativas, em ambos os supra referidos procedimentos de notificação (da fixação da matéria colectável e de notificação de liquidação do imposto),
b) A realização de formalidades de notificação de forma incompleta ou gravemente defeituosa,
c) A violação do direito ao efeito suspensivo da liquidação previsto no artigo 91.º n.º 2 da LGT, que foi realizada enquanto ainda decorria o prazo para contestar a fixação da matéria colectável que lhe serve de fundamento,
3. Bem como dos artigos 102.º do CPPT, em virtude do entendimento de que a falsidade de documentos, a falsidade de datas e de factos, a falsidade das declarações produzidas pelos agentes da administração fiscal e a subsequente violação dos princípios da boa-fé e da transparência, do dever de verdade e da justiça e, ainda, a violação das regras de competência dos órgãos envolvidos no que respeita à notificação dos fundamentos da matéria tributável e do imposto adicionalmente liquidado,
Quando interpretados no sentido de tais vícios não constituírem nulidades do procedimento que ferem direitos fundamentais, mas apenas meros vícios legais susceptíveis de ser meramente punidos com a sanção da simples anulabilidade, por tal interpretação constituir, entre outros, PATENTE VIOLAÇÃO DOS ARTºS 103.º, 266.º E 268.º N.º 3 E 4 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA E DA VIOLAÇÃO DO DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NELA CONSAGRADOS.
O recurso em apreço foi interposto em tempo (art. 75º, nº 1 da L.O.F.P.T.C.), os recorrentes têm legitimidade e interesse processual (art. 72º, nº 1, al. b) e nº 2 da L.O.F.P.T.C.) e as questões em apreço são actuais e úteis.
Nestes termos deverão os autos prosseguir com a admissão do recurso, e:
a) Ser concedido integral provimento ao recurso e, consequentemente
i. Ser declarada a inconstitucionalidade da norma do artº 34.º do CPT, 48.º da LGT e 175.º do CPPT quando interpretadas no sentido da não oficiosidade do conhecimento da prescrição do direito ao imposto,
ii. Ser declarada a inconstitucionalidade da norma do artº 36.º e segs. do CPPT e 66.º e segs. do CPA quando interpretadas no sentido de os vícios supra apontados não constituírem nulidades do procedimento que ferem direitos fundamentais mas meros vícios legais susceptíveis de ser meramente punidos com a sanção da simples anulabilidade, por tal interpretação constituir violação clara, entre outros, dos artºs 103.º, 266.º e 268.º n.º 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa e bem assim como da tutela jurisdicional efectiva dos direitos fundamentais nela consagrados.
b) Ser ordenado, nos termos do art. 80º da L.O.F.P.T.C., o reenvio do processo ao Tribunal de onde provieram, a fim de ser efectuada a devida aplicação dos normativos violados com a interpretação dada por esse Venerando Tribunal Constitucional.»
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
“Tendo sido notificada para clarificar as interpretações normativas cuja constitucionalidade pretendia ver sindicadas, a Recorrente, no requerimento apresentado na sequência de tal notificação, esclareceu que deverá ser “declarada a inconstitucionalidade material das normas dos seguintes artigos:
1. Dos artigos 34.º do CPT, 48.º da LGT e 175.º do CPPT quando interpretadas no sentido da não oficiosidade do conhecimento da prescrição do direito ao imposto;
2. Dos artigos 36.º e segs. do CPPT e 66.º e segs. do CPA em virtude do entendimento expresso de que:
a) A absoluta omissão de formalidades essenciais imperativas, em ambos os supra referidos procedimentos de notificação (da fixação da matéria colectável e de notificação de liquidação do imposto),
b) A realização de formalidades de notificação de forma incompleta ou gravemente defeituosa,
c) A violação do direito ao efeito suspensivo da liquidação previsto no artigo 91.º n.º 2 da LGT, que foi realizada enquanto ainda decorria o prazo para contestar a fixação da matéria colectável que lhe serve de fundamento,
3. Bem como dos artigos 102.º do CPPT, em virtude do entendimento de que a falsidade de documentos, a falsidade de datas e de factos, a falsidade das declarações produzidas pelos agentes da administração fiscal e a subsequente violação dos princípios da boa-fé e da transparência, do dever de verdade e da justiça e, ainda, a violação das regras de competência dos órgãos envolvidos no que respeita à notificação dos fundamentos da matéria tributável e do imposto adicionalmente liquidado,
Quando interpretados no sentido de tais vícios não constituírem nulidades do procedimento que ferem direitos fundamentais, mas apenas meros vícios legais susceptíveis de ser meramente punidos com a sanção da simples anulabilidade, por tal interpretação constituir, entre outros, PATENTE VIOLAÇÃO DOS ARTºS 103.º, 266.º E 268.º N.º 3 E 4 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA E DA VIOLAÇÃO DO DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NELA CONSAGRADOS.”
E referiu ainda, em conclusão, o seguinte:
“Nestes termos deverão os autos prosseguir com a admissão do recurso, e:
a) Ser concedido integral provimento ao recurso e, consequentemente
i. Ser declarada a inconstitucionalidade da norma do artº 34.º do CPT, 48.º da LGT e 175.º do CPPT quando interpretadas no sentido da não oficiosidade do conhecimento da prescrição do direito ao imposto,
ii. Ser declarada a inconstitucionalidade da norma do artº 36.º e segs. do CPPT e 66.º e segs. do CPA quando interpretadas no sentido de os vícios supra apontados não constituírem nulidades do procedimento que ferem direitos fundamentais mas meros vícios legais susceptíveis de ser meramente punidos com a sanção da simples anulabilidade, por tal interpretação constituir violação clara, entre outros, dos artºs 103.º, 266.º e 268.º n.º 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa e bem assim como da tutela jurisdicional efectiva dos direitos fundamentais nela consagrados.
[…]”
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Em primeiro lugar, a Recorrente pretende ver sindicada a constitucionalidade das normas constantes dos artº 34.º do CPT, 48.º da LGT e 175.º do CPPT, quando interpretadas no sentido da não oficiosidade do conhecimento da prescrição do direito ao imposto.
Da leitura da decisão recorrida não se verifica que tal interpretação tenha sido por ela sustentada.
Lê-se no acórdão recorrido que “a sentença recorrida não pode padecer do vício de omissão de pronúncia como a recorrente veio invocar na matéria da sua conclusão E), já que ao julgar procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de accionar nada mais lhe era lícito conhecer, não fazendo mesmo qualquer sentido que, decidindo-se que o direito de deduzir a impugnação judicial já se esgotara e que o acto administrativo de liquidação se encontrava consolidado por falta de oportuna reacção contra o mesmo em tempo e forma próprias, se fosse a conhecer de quaisquer vícios que o mesmo pudesse enfermar, em violação dessa consolidação, desta forma ferindo gravemente a certeza e a segurança na definição dos direitos”.
O que refere no excerto acima transcrito é que, tendo-se decidido na sentença da 1.ª instância que o direito [da Recorrente] de deduzir impugnação judicial se esgotara, por se ter julgado procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de accionar, nada mais era lícito conhecer, o que incluía a invocação da excepção da prescrição dos créditos tributários em causa (o que não equivale a interpretar a norma do art. 34.º do CPT no sentido da “não oficiosidade do conhecimento da prescrição do direito ao imposto”).
Em segundo lugar, a Recorrente refere que pretende ver sindicada a interpretação dos artigos 36.º e segs. do CPPT, 66.º e segs. do CPA, e 102.º do CPPT, no sentido de “os vícios supra apontados [absoluta omissão de formalidades essenciais imperativas, a realização de formalidades de notificação de forma incompleta ou gravemente defeituosa, a violação do direito ao efeito suspensivo da liquidação previsto no artigo 91.º n.º 2 da LGT, a falsidade de documentos, a falsidade de datas e de factos, a falsidade das declarações produzidas pelos agentes da administração fiscal e a subsequente violação dos princípios da boa-fé e da transparência, do dever de verdade e da justiça e, ainda, a violação das regras de competência dos órgãos envolvidos no que respeita à notificação dos fundamentos da matéria tributável e do imposto adicionalmente liquidado] não constituírem nulidades do procedimento que ferem direitos fundamentais mas meros vícios legais susceptíveis de ser meramente punidos com a sanção da simples anulabilidade”.
Ora, da leitura da decisão recorrida não se pode concluir que, em momento algum, o Tribunal Central Administrativo Sul tenha feito aplicação do critério normativo apontado pela Recorrente.
Na decisão recorrida refere-se o seguinte:
“Na verdade, a citada norma da alínea f) do n.º1 do art.º 102.º do CPPT, faz desencadear o termo inicial para a contagem do prazo de 90 dias para a dedução da impugnação judicial do conhecimento dos actos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores, o que nela se não pode subsumir qualquer erro ou vício, eventualmente ocorrido na notificação da liquidação, como bem se fundamenta na sentença recorrida, e que a ora recorrente nenhum vício veio articular tendente à sua subsunção nessa citada alínea, desde logo por a notificação em si, não constituir qualquer acto lesivo, como a norma exige, para que a impugnação possa ser deduzida ao seu abrigo e fundando-se nesse termo a quo, sabido que esta (a notificação), mais não é do que o acto pelo qual se leva um facto ao conhecimento de uma pessoa ou se chama alguém a juízo – art.º 35.º, n.º1 do CPPT – não constituindo qualquer acto que ofenda um seu direito ou interesse legalmente protegido (pode sim ofender, não o acto de notificação, mas sim o acto notificado, que ao contribuinte lhe impõe uma qualquer imposição, no caso, um tributo).
Por outro lado, como constitui jurisprudência corrente, quer deste Tribunal quer do STA, a falta de notificação da liquidação ou quaisquer erros ou vícios que este acto de notificação possa conter, porque posteriores e exteriores ao próprio facto comunicado, não pode contender com a validade/invalidade deste, mas tão só com a sua eficácia, e não pode constituir qualquer vício invalidante da liquidação, que é o que no fundo a ora recorrente pretende vir a obter (a sua integral anulação), não se reconduzindo à categoria de acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos a que o interessado possa deduzir impugnação judicial – cfr. art.º 95.º, n.º1 da LGT – pelo que com base no conhecimento em vícios ou erros existentes nessa notificação jamais os mesmos poderiam fundar uma causa de pedir/pedido de anulação do facto comunicado (no caso, a liquidação de IRC).”
A decisão recorrida limita-se, pois, a sustentar que para efeitos de contagem do termo inicial do prazo para a dedução de impugnação judicial de acto de liquidação tributária, o disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 102.º, do CPPT, não abrange o conhecimento de vícios do acto de notificação dessa liquidação, mas apenas do próprio acto de liquidação, o que é bem diferente desses vícios não integrarem uma nulidade do acto de notificação.
Ora, dado o carácter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efectiva aplicação pela decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada.
É necessário, pois, que a interpretação acusada de inconstitucionalidade tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Verificada a falta de aplicação efectiva, pelo tribunal a quo, das interpretações normativas indicadas pela Recorrente, importa concluir que não está preenchido este requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, devendo, assim, ser proferida decisão sumária de não conhecimento, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
A Recorrente, reclamou desta decisão, com os seguintes argumentos:
Como fundamento para a decisão de não conhecer do recurso, considera o Meritíssimo Juiz Conselheiro Relator, nomeadamente, que “dado o carácter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efectiva aplicação pela decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada”.
Sucede que, ao invés do que doutamente decidiu o Venerando Juiz Conselheiro Relator, efectivamente a decisão recorrida aplicou a norma cuja constitucionalidade se pede que seja sindicada.
Com efeito, para além de ter suscitado, devida e oportunamente, questões de inconstitucionalidade normativa, sempre se terá de reconhecer que à Recorrente era impossível suscitar a inconstitucionalidade de determinada interpretação de uma norma, antes de tal interpretação ser adoptada, afirmada e plasmada em decisão judicial.
Daí que o recurso de fiscalização concreta tenha sido intentado após a prolação de douto acórdão pelo TCA Sul – em que foi efectuada interpretação de uma norma, materialmente inconstitucional – na medida em que este douto aresto havia aplicado interpretação normativa cuja inconstitucionalidade havia sido oportunamente suscitada no decurso do processo, nomeadamente nos artigos 28.º, 30.º e 31.º das alegações de recurso para o Tribunal Central Administrativo, bem assim como na Parte II, ponto 45, e nas conclusões do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão do Venerando TCA Sul.
Na verdade, a questão decidenda no Acórdão do TCA era a de saber se os vícios imputados ao acto de notificação das liquidações adicionais constituem actos lesivos de molde a poder firmar no seu conhecimento o termo inicial para a contagem do prazo de para a dedução da impugnação judicial.
Conforme dele resulta de forma expressa a fls. 3.
Sucede que, tal Acórdão assenta num vício quanto a um pressuposto essencial, de que a impugnante tinha prazo para deduzir tal impugnação judicial, isto é, apenas deduzira vícios integrados na anulabilidade ou nulidade relativa.
O que não é verdade, na medida em que a impugnante sempre invocou a nulidade absoluta do procedimento de notificação, estribando-se, como decorrência lógica, nos artigos l02.º n.º 2 do CPPT e 133.º do CPA, a qual, como é consabido, pode ser invocada a todo o tempo.
Tal como se comprova pela leitura dos artigos 5.º, 11.º, 20.º, 58.º, 70.º 117.º, 120.º, 122.º.
Bem como das conclusões e ainda do pedido formulado na sua petição inicial cujo âmbito é qualquer ilegalidade – artigo 99.º do CPPT.
Mais invocou a sua consequente ineficácia em relação ao acto de liquidação cujo conteúdo se pretendia dar a conhecer.
Ora, ao efectuar uma interpretação dos fundamentos de facto e de direito invocados pela impugnante na petição inicial que os reconduz, de facto, ao vício da mera anulabilidade, bem sabendo ou não podendo deixar de tomar conhecimento que impugnante reiteradamente invocara também a nulidade absoluta, apegado à formalidade estrita da invocação expressa da al. f) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, sem atender ao seu reiterado conteúdo,
O TCA no seu Acórdão, não só se revela excessivamente formalista, esquecendo o princípio da substância sobre a forma, como efectua uma interpretação e aplicação dos preceitos legais e da matéria de facto que atinge um resultado interpretativo que é contrário à Constituição por ofender direitos fundamentais invocados.
Conforme constitui jurisprudência pacífica do Venerando Supremo Tribunal Administrativo, “por força dos princípios antiformalista, «pro actione» e «in dubio pro habilitate instanciae» ou «in dubio pro favoritate instanciae», e concretamente ao nível da interpretação das peças processuais, devem as mesmas ser interpretadas de forma a assegurar a possibilidade de exercício dos direitos processuais dos interessados e não optar por uma interpretação que conduza à impossibilidade de ser assegurada tutela judicial da sua pretensão” (v. Ac. STA de 2006.07.26, Proc. 0450/06, in www.dgsi.pt).
Ora, tal como já o havia feito o Tribunal Tributário de 1ª Instância, o TCA Sul conclui no sentido da intempestividade da impugnação sem curar se esgrimir e delimitar uma questão fundamental que antecedia aquela sobre a qual se pronunciou: de a delimitar a bondade e a procedência da invocação da nulidade absoluta do procedimento.
Pois que:
a) “Os princípios anti formalista, “pro actione”, ou “pro habilitate instantiae” exigem uma intervenção proactiva do juiz ao nível da regularização dos pressupostos processuais, de modo a possibilitar o exame do mérito da causa e pôr de lado interpretações ritualistas e baseadas numa interpretação das normas processuais preponderantemente dogmática e conceptualista sem atender aos fins do processo, às garantias de efectividade da tutela dos cidadãos nem à necessidade de garantir a máxima utilidade ao elevado custo económico e social da organização judiciária” (v. Ac. STA, de 2005.06.14, Proc. 459/05, in www.dgsi.pt)
b) “Os princípios anti formalista e pro actione postulam a adopção, no que respeita, designadamente, à petição de recurso contencioso, de interpretação que, atendendo ao conteúdo de tal peça processual, não seja meramente ritualista e formal e se revele como a mais favorável ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, possibilitando o exame do mérito das pretensões deduzidas” (v. Ac. STA, de 2004.07.10, Proc. 634/04, in www.dgsi.pt)
c) “Os imperativos decorrentes dos princípios anti formalista e pro actione devem conduzir o juiz a adoptar uma interpretação da peça processual que olhando ao seu conteúdo e com ele se compaginando possa obviar a uma situação de não conhecimento das questões de fundo, acolhendo o princípio do in dubio quo habitate instanciae, ultrapassando, se for caso disso, meros erros de qualificação” (v. Ac. STA de 1997.07.10, Proc. 35738 in www.dgsi.pt).
Caso em que, só depois de substantivamente analisada a questão essencial da nulidade invocada poderia determinar:
a) Se havia prazo para recorrer ou se esse direito poderia ser exercido a todo o tempo;
b) Em caso afirmativo, se a impugnante respeitou esse prazo.
Com isso, como se tem vindo a invocar, o TCA Sul, na linha do Tribunal Tributário de 1ª Instância (TT), limitou, ilegalmente, o âmbito da sua análise que não se cingia, como bem se vê, à questão da tempestividade – mas, e previamente, à questão de saber se havia prazo para recorrer ou se, no caso, esse direito podia ser exercido a todo o tempo, como a impugnante vem pugnando.
E, assim, alcança um resultado interpretativo que ofende o conteúdo essencial dos direitos fundamentais invocados, v. g. o direito de acesso à justiça.
Além disso, sem condescender, quer o TCA, quer o TT, violam aqueles imperativos constitucionais ao interpretar a al. f) do artigo 102.º do CPPT no sentido de que a mesma se refira apenas a actos de liquidação stricto sensu, com exclusão de quaisquer outros actos, o que não resulta da sua letra nem do seu espírito.
A invocação específica do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT tem como fundamento a circunstância de terem existido formalidades várias, verdadeiros actos jurídicos - do procedimento de notificação (pessoal e postal), relatadas ao longo de toda a petição inicial, de que a impugnante só chegou a conhecer DEPOIS de ter deduzido a Reclamação Graciosa, isto é, de actos que não cabem em nenhuma das outras alíneas do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.
Por ser claro, quanto a essas formalidades, que a “notificação” como acto pelo qual se leva a conhecimento de alguém certo acto, não ocorrera – a impugnante não foi efectivamente alcançada, isto é, não chegou a ser destinatária das mesmas, que não atingiram a sua esfera jurídica.
De facto, desconhecia-as em absoluto.
E foi só através da fundamentação expressa que serviu de indeferimento à reclamação graciosa que os serviços vieram invocar a pretensa prática de formalidades que a impugnante até então desconhecia.
Ora, não pode considerar-se que decorre prazo para exercer direitos sobre actos cujo conteúdo se desconhece em absoluto!
Tal conhecimento de actos lesivos, porque tinham finalidade constitutiva da eficácia de actos que a impugnante desconhecia, são lesivos de interesses legalmente protegidos, e devem, por isso, ter relevo autónomo (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, CPPT anotado Áreas, 2006, p. 739 e segs.).
Finalmente, o acórdão do TCA limitou-se a reiterar a intempestividade da impugnação deduzida, fazendo seus os argumentos do TT, mesmo em face da invocação da omissão de pronúncia – o TT nunca se pronunciou sobre a existência ou não de nulidade nos actos praticados.
Ao considerar, acriticamente, que havendo indeferimento expresso da reclamação graciosa, o prazo para impugnar seria de apenas 15 dias – artigo 102.º n.º 2 CPPT - já como vício acessório, a anulabilidade (nulidade relativa) do procedimento, desconsiderou as nulidades invocadas como fundamento autónomo.
Todavia, não é de crer que se deva aplicar o prazo de 90 dias para impugnar quando, como foi o caso, a impugnante, após conhecer os fundamentos do indeferimento expresso da reclamação graciosa, SOLICITOU E OBTEVE CERTIDÃO ISENTA dos fundamentos desconhecidos, ao abrigo do artigo 37.º do CPPT.
Facto que o TCA (e o TT de 1ª Instância) bem conhecia, por estar expressamente invocado em todas as peças processuais anteriores, denegando também por esta via, o acesso à justiça e a violação concreta do conteúdo essencial de direitos fundamentais.
Assim, ainda que houvesse prazo para impugnar – e não há, como se invocou – facto que nenhum tribunal até agora apreciou – sempre se teria que entender que a exigência legal de que a contagem desse prazo só deve iniciar-se depois de haver garantias de que o destinatário tomou conhecimento do seu teor e fundamentos, ou deles poderia ter tomado (artigo 37.º do CPPT), se deve considerar válida quando seja manifesto que o contribuinte só teve conhecimento das formalidades praticadas depois de ter exercido o direito de reclamar e lançou mão dessa garantia.
Isto é, não há razões para crer que a garantia fundamental que o artigo 37.º do CPPT pretende acautelar não se mantenha ao longo de todo o procedimento de defesa, se aquele que arroga o direito de exigir certo imposto (no caso, a administração fiscal) não fizer prova no processo de haver notificado regularmente o contribuinte.
No caso, a administração fiscal não realizou tal prova já que não rebateu documentalmente a invocação reiterada da impugnante sobre a nulidade e desconhecimento dessas formalidades.
Os actos de notificação e de liquidação de imposto pretensamente notificada – sem o haver sido – mas desconhecidas do seu destinatário, que sobre as mesmas não tinha o menor conhecimento, são actos acto lesivos pois delas se retiram efeitos jurídicos,
Quando tais efeitos não se podem retirar.
Sendo que um desses efeitos principais é o de constituir alguém como devedor de certa prestação da qual não tem conhecimento.
Assim, reitera-se que ao expressar o entendimento que resulta do seu acórdão, o TCA efectua uma interpretação dos factos e do regime da al. f) do artigo 102.º CPPT que viola o conteúdo essencial dos direitos fundamentais invocados, carecendo de ser censurada e corrigida.
A sustentação do TCA de que, para efeitos de contagem do termo inicial para a dedução de impugnação judicial do acto de liquidação, a al. f) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT não abrange os vícios da notificação dessa liquidação, mas apenas do próprio acto de liquidação, constitui, em si mesma, uma sustentação que viola o conteúdo essencial de direitos fundamentais porque:
• Não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal;
• Reconduz a questão do direito ao recurso à questão de saber se foram cumpridos prazos para recorrer, quando a impugnante invocou fundamentos que, pela sua gravidade e reiteração, prescindem desses prazos;
• Desconsidera os vícios geradores de nulidade, expressa e reiteradamente invocados e as suas consequências ou efeitos na estabilidade da ordem de valores fundamentais instituída;
• Revela-se violadora dos princípios antiformalista, «pro actione» e «in dubio pro habilitate instanciae» ou «in dubio pro favoritate instanciae», e concretamente ao nível da interpretação das peças processuais, devem as mesmas ser interpretadas de forma a assegurar a possibilidade de exercício dos direitos processuais dos interessados e não optar por uma interpretação que conduza à impossibilidade de ser assegurada tutela judicial da sua pretensão;
• Tem como efeito a atribuição às normas invocadas pela impugnante de sentido interpretativo que viola ilegitimamente o direito de acesso à justiça e as demais normas e princípios constitucionais abundantemente invocados;
Pelo que tal acórdão revela, em si mesmo, uma interpretação da lei que é a fonte do resultado interpretativo inconstitucional, só reparável se for determinada a sua reformulação, pelo que está inequivocamente preenchido o requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º n.º 1 al. b) da LTC.
Nesta conformidade, salvo o devido respeito, o Mmº Juiz Conselheiro Relator incorre em erro ao considerar que se verifica “a falta de aplicação efectiva, pelo tribunal a quo, das interpretações normativas indicadas pela recorrente”.
Finalmente, dever-se-á notar que sendo esse Douto Tribunal Constitucional o garante último da legalidade e da efectiva conformidade das normas e das decisões judiciais com a Constituição, não poderá (não deverá) satisfazer-se com preciosismos formais que impeçam o efectivo conhecimento de ilegalidades e de inconstitucionalidades, aliás, in casu, absolutamente evidentes.
Termos em que deverá ser julgada procedente a presente RECLAMAÇÃO, revogando-se a decisão sumária do Mmº Juiz Conselheiro Relator, de não conhecimento do recurso, por outra que decida que deve conhecer-se do recurso, nos termos do disposto no artº 78º-A, nº 5, seguindo os autos os seus ulteriores termos até final, como é, aliás, de elementar JUSTIÇA
A Recorrida respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
A Recorrente, no requerimento apresentado após convite para esclarecer quais os critérios normativos sustentados na decisão recorrida que pretendia ver fiscalizados pelo Tribunal Constitucional, pediu que fosse declarada a inconstitucionalidade:
- do artigo 34.º do CPT, 48.º da LGT e 175.º do CPPT, quando interpretadas no sentido da não oficiosidade do conhecimento da prescrição do direito ao imposto,
- e do artigo 36.º e seguintes do CPPT e 66.º e seguintes do CPA, quando interpretadas no sentido de os vícios na notificação da liquidação do imposto não constituírem nulidades do procedimento que ferem direitos fundamentais, mas meros vícios legais susceptíveis de ser meramente punidos com a sanção da simples anulabilidade.
A decisão reclamada entendeu não conhecer destas duas questões de constitucionalidade, com fundamento em que as interpretações normativas acima enunciadas não integravam a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Na reclamação apresentada a Recorrente manifesta a sua discordância apenas relativamente ao não conhecimento da segunda questão acima enunciada.
Ora, conforme resulta evidente da leitura da decisão recorrida, nomeadamente do excerto transcrito na decisão reclamada, esta limitou-se a sustentar que, para efeitos de contagem do termo inicial do prazo para a dedução de impugnação judicial de acto de liquidação tributária, o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, não abrange o conhecimento de vícios do acto de notificação dessa liquidação, mas apenas do próprio acto de liquidação, não se tendo pronunciado sobre se os apontados vícios da notificação determinavam a sua nulidade ou mera anulabilidade, como aliás se reconhece na própria reclamação.
O Recorrente invoca agora na reclamação a inconstitucionalidade desta posição adoptada pelo acórdão recorrido, mas essa invocação, efectuada neste momento, já não é susceptível de alterar validamente o objecto do recurso, de forma a permitir o seu conhecimento.
Na verdade, não é possível alterar validamente o objecto do pedido de fiscalização de constitucionalidade, na reclamação deduzida à decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Nesta altura apenas está em apreciação a correcção da decisão reclamada face ao pedido formulado no requerimento de interposição de recurso, e, tendo-se verificado que a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade foi invocada no requerimento de interposição de recurso corrigido não integrava efectivamente a ratio decidendi do acórdão recorrido, deve ser confirmada a decisão de não conhecimento do mérito do recurso, atenta a sua natureza instrumental.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A., S.A.
Custas da reclamação pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Julho de 2011. – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.