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Processo n.º 846/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
(Conselheira Maria Lúcia Amaral)
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., mãe de dois menores consigo residentes, veio requerer junto do Tribunal de Família e Menores de Braga que a pensão de alimentos devida pelo progenitor dos referidos menores, e que o mesmo não vinha pagando, fosse suportada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores [FGADM], do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, por se verificarem os requisitos exigidos pelo artigo 3.° do Decreto-Lei n° 164/99, de 13 de Maio, que regulamentou a Lei n° 75/98, de 19 de Novembro.
Após instrução do processo, decidiu o Tribunal de Família e Menores de Braga condenar o FGDAM a pagar a A. a pensão de alimentos relativa aos seus filhos menores.
Fê-lo nos seguintes termos:
Condena-se o FGADM a pagar mensalmente a A. a pensão de alimentos relativa aos filhos menores B., nascido a ../../2001, e C., nascido a ../../2006, a pensão de alimentos no montante mensal de 84 € por cada um deles, a que o devedor D. está legalmente obrigado.
Recusa-se, nos termos do art. 204º C.R.P., a aplicação da norma constante do art. 4º, 5 D.L. 164/99, de 13/5, por se considerar que a sua literal, e prospectiva, estatuição a torna inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 1º, 7º, 5 e 6, 8º, 13º, 63º, 3, 67º, 2 c) e g), 69º e 81º, a) e b) da Constituição da República Portuguesa e, ainda que desnecessário, dado o art. 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º, 1, 24º, 1 e 2, 51º, 1, 52º, 7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, nos precisos termos em que se acima se expôs.
Nos termos conjugados do disposto nos arts. 202º, 1 e 2 e 203º C.R.P., bem como artigos 8º, 1 e 3, 9º, 10º, 1 e 2 e 2006º C.C. (por referência ao art. 3º, 1 L. 75/98, de 19/11, art. 148º O.T.M. e arts. 1º, 7º, 5 e 6, 8º, 13º, 63º, 3, 67º, 2 c) e g) e 81º a) e b) C.R.P. e, ainda que desnecessário, dado o art. 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º, 1, 24º, 1 e 2, 51º, 1, 52º, 7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), por analogia, fixa-se o momento a partir do qual são devidas as prestações a cumprir pelo I.G.FS.S., F.G.A.D.M., como sendo a partir da petição, requerimento, de intervenção do F.G.A.D.M., em Maio de 2010, mês ao qual, e a partir do qual, os pagamentos do I.G.F.S.S. terão de se reportar.
O C.D.S.S. deverá, nos termos do art. 519º C.P.C. (pois recusa-se a aplicação do art. 4º, 5 D.L. 164/99, de 13/5, na sua literal e prospectiva disposição), comprovar aos autos, em 30 dias, ter iniciado o pagamento das prestações de alimentos mensais, devidas desde o requerimento de intervenção do F.G.A.D.M..
Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, por entender que, para efeitos do disposto no artigo 280.° da Constituição e 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, nela se continha uma recusa de aplicação da norma constante do n° 5 do artigo 4.° da Lei n° 164/99, de 13 de Janeiro.
Admitido o recurso no Tribunal, nele apresentou alegações o recorrente, sustentando que estavam no caso perfeitos os pressupostos formais de conhecimento do recurso e pugnando, a final, pela confirmação do juízo de inconstitucionalidade feito pela instância, por entender que a norma em questão, com a interpretação que fora recusada, violaria os artigos 69.°. n°1, e 63.°, n°s 1 e 3, da Constituição.
Os recorridos não contra-alegaram.
II – Fundamentação
2. Sobre questão idêntica à constante dos autos já se pronunciou diversas vezes o Tribunal Constitucional, no sentido do não recebimento do recurso interposto pelo Ministério Público.
Como se disse no Acórdão n° 238/11:
Decidiu-se, na sentença recorrida, condenar o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) a pagar mensalmente a A. a pensão de alimentos relativa à filha menor B. (…) com efeitos desde a data da apresentação do requerimento de intervenção do FGADM.
Para tanto, a decisão recorrida desaplicou a norma do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio (que impõe que o Centro Regional de Segurança Social inicie o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal), com os seguintes fundamentos:
Recusa-se, nos termos do artigo 204º C.R.P., a aplicação da norma constante do artigo 4º 5 D.L. 164/99, de 13/5, por se considerar que a sua literal e prospectiva estatuição a torna inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 1.º, 7.° 5 e 6, 13.º, 63.°3, 67.°2 c) e g), 69º e 81.°, a) e b) da Constituição da República Portuguesa e, ainda que desnecessário, dado o artigo 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º1, 24º1 e 2, 51º1, 52º7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
Nos termos conjugados do disposto nos arts. 202º1 e 2 e 203º C.R.P., bem como artigos 8º1 e 3, 9º, 10º, 1 e 2 e 2006º C.C. (por referência ao art. 3º1 L. 75/98, de 19/11, art 148º O.T.M. e arts. 1º, 7º 5 e 6, 8º, 13º, 63º 3, 67º2 c) e g) e 81º a) e b) C.R.P. e, ainda que desnecessário, dado o art. 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º1, 24º1 e 2, 51º1, 52º7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), por analogia, fixa-se o momento a partir do qual são devidas as prestações a cumprir pelo I.G.F.S.S., F.G.A.D.M., como sendo a partir da petição, requerimento, de intervenção do F.G.A.D.M., em Novembro de 2010 [...].
O C.D.S.S. deverá, nos termos do artigo 519º C.P.C. (pois recusa-se a aplicação do artigo 4º5 D.L. 164/99, de 13/5), comprovar aos autos, em 30 dias, ter iniciado o pagamento das prestações de alimentos mensais, devidas desde o requerimento de intervenção do F.G.A.D.M. […].
Cumpre, porém, preliminarmente, decidir se tal recusa se configura processualmente como tal, para o efeito de legitimar o conhecimento de mérito do objecto do recurso, sendo certo que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76º, nº 3, da LTC).
O Tribunal Constitucional, apreciando tal questão em processos provindos do mesmo tribunal a quo, com objecto substancialmente idêntico ao destes autos, tem, na sua maioria, entendido não haver lugar a uma verdadeira recusa de aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade, pelo tribunal recorrido (neste sentido, a decisão sumária n.º 121/10 e, reiterando-a, as decisões sumárias nºs. 162/10, 167/10, 182/10, 183/10, 184/10, 185/10, 186/10, 187/10, 188/10, 190/10, 191/10, 216/10, 221/10, 222/10, 224/10, 232/10, 264/10, 306/10 e 418/10 e, bem assim, o Acórdão n.º 370/10).
Apreciou-se, em tais decisões, a decisão de recusa, proferida pelo mesmo tribunal a quo, de “aplicação do artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2009 (publicado no D.R. 1ª Série, n.º 150, de 05 de Agosto de 2009), por inconstitucionalidade (por violação dos artigos 8.º, 24.º, 69.º, 13.º, n.º 2, 63.º, n.º 3 e 67º, n.º 2, alínea c) da Constituição da República Portuguesa)”, tendo-se concluído pelo não conhecimento do objecto do recurso com a seguinte a argumentação, expendida na decisão sumária n.º 121/10 e secundada pelas decisões que, debruçando-se sobre mesmo objecto, se lhe seguiram:
3. A norma do n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99 estabelece o seguinte: «O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal».
Resulta do teor da sentença recorrida, especialmente da parte final do seu segmento decisório, que o tribunal não efectuou uma recusa de aplicação da norma do artigo 4.°, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, com fundamento em inconstitucionalidade.
Pelo contrário, essa norma foi aplicada como ratio decidendi do caso, tendo sido ao abrigo da mesma que o tribunal recorrido determinou que o CDSS iniciasse o pagamento das prestações de alimentos em causa.
Simplesmente, a decisão recorrida não aplicou tal norma, na parte respeitante ao momento em que se devem iniciar os pagamentos, com a interpretação que foi fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 aí citado, mas sim com a interpretação que o tribunal recorrido entendeu ser a correcta. Entendimento, esse, fundado, em boa medida, em razões, desenvolvidamente expostas, situadas no plano do direito infraconstitucional.
Resulta, na verdade, da fundamentação da sentença recorrida que esta não acolhe a interpretação constante do Acórdão n.º 12/09 apenas por entender que a mesma é inconstitucional. Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo com as regras aplicáveis não é essa, mas sim a que, a final, entendeu seguir. De facto, quando na sentença se elencam quatro motivos de discordância da interpretação seguida no acórdão de uniformização, as primeiras razões invocadas prendem-se com a interpretação da norma no plano do direito ordinário (que não cabe a este Tribunal Constitucional sindicar); e só por último se acrescenta um motivo de inconstitucionalidade.
Ora, a escolha, entre duas interpretações, de uma delas, com o concomitante afastamento da outra interpretação, não é uma verdadeira recusa de aplicação de norma. E não o é mesmo quando a interpretação afastada o foi (também) por invocadas razões de inconstitucionalidade.
O facto de a interpretação que foi afastada pelo tribunal recorrido ser aquela que foi fixada em acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não altera os dados da questão. Só assim seria se tal interpretação se impusesse como obrigatória para o tribunal recorrido. Só então é que o mesmo estaria habilitado a exercitar o poder-dever que o artigo 204.º da Constituição lhe confere, como último recurso para evitar a eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, dessa interpretação reputada inconstitucional.
Mas não tem essa eficácia a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, apesar do valor “reforçado”, que implica que a decisão judicial que a contrarie é sempre susceptível de recurso - cfr. actual artigo 678.º, n.º 2, alínea c), do CPC (cfr. neste sentido, entre outros, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 2003, Coimbra, 12-13, embora a propósito do regime anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).
Não obstante a diversidade de matérias, a questão aqui em juízo apresenta uma estrutura problemática análoga à presente no Acórdão n.º 652/09 (…). Explicitou-se, neste Acórdão, uma orientação que aqui se reitera:
[U]m tribunal de instância pode provocar a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, e mediante o recurso obrigatório do Ministério Público, de uma interpretação que ele próprio faça – interpretação que seria a inevitável ratio decidendi da questão em juízo, não fora a decisão de inconstitucionalidade que sobre ela recai. O que não pode é, através de uma artificiosa recusa de aplicação, que consta da decisão, mas não é apoiada pela fundamentação, pôr o Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que não é a sua, mas a de um outro tribunal.»
No caso vertente, a sentença recorrida decidiu recusar a aplicação da norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei nº 164/99, no seu “sentido literal e prospectivo”.
Sucede, porém, como sustentado na decisão sumária n.º 500/10, cujas razões foram secundadas pelo Tribunal Constitucional em várias decisões posteriores (cf. decisões sumárias nºs. 501/10, 7/11, 10/11, 16/11, 22/11, 24/11, 25/11, 26/11, 27/11, 127/11, 131/11, 140/11, 143/11 e 184/11 e Acórdãos nºs. 370/10, 403/10, 404/10, 426/10 e 106/11), que a solução jurídica que o tribunal a quo adopta, por via da interpretação conjugada das disposições dos artigos 202.º, n.ºs 1 e 2, e 203.º da Constituição e dos artigos 8.º, n.ºs 1 e 3, 9.º, 10.º, n.ºs 1 e 2, e 2006.º do Código Civil, e, ainda, dos artigos 20.º, 21.º, n.º 1, 24.º, n.ºs 1 e 2, 51.º, n.º 1, 52.º, n.º 7, e 53.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, por analogia, corresponde àquela a que o tribunal a quo - através de uma interpretação do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei nº 164/99 diversa da efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em acórdão uniformizador de jurisprudência – sempre havia chegado nas sentenças que motivaram as Decisões Sumárias atrás apontadas, podendo concluir-se que a solução adoptada, quanto ao momento a partir do qual os pagamentos são efectuados pela Segurança Social, por conta do Fundo, é a que resultaria de uma interpretação alternativa do preceito alegadamente desaplicado.
Ou seja, a decisão final, com argumentação modificada, é exactamente a mesma que o tribunal a quo retirava do artigo 4º, n.º 5 do Decreto-Lei nº 164/99, numa das suas interpretações possíveis. Em suma, a decisão recorrida apenas formalmente afasta a referida norma pois que, materialmente, aquilo que o tribunal recorrido faz consiste, essencialmente, em, para um determinado segmento da norma em causa – o respeitante ao momento a partir do qual as prestações são devidas (que não quanto ao momento a partir do qual as prestações começam a ser pagas), propor uma interpretação distinta daquela que retira da “literal e prospectiva disposição” – que recusa – do preceito em causa. Trata-se ainda e sempre, porém, de uma interpretação do referido trecho legal. Ora, como é jurisprudência constante deste Tribunal, não é sua função definir ou optar sobre qual a melhor ou mais adequada interpretação de que as normas de direito ordinário são susceptíveis. Ou seja, estamos mais uma vez no domínio da discussão interpretativa infraconstitucional, vedada ao conhecimento deste Tribunal.
Por tais razões, é de concluir no sentido de que a “argumentação modificada” que a decisão recorrida introduz não altera, substancialmente, a inutilidade da apreciação da questão de inconstitucionalidade por este Tribunal, tal como fundada nas diversas decisões sumárias entretanto já proferidas.
Por ser este entendimento inteiramente transponível para a questão dos autos, entende-se que, também neles, se não proferiu decisão que recuse a aplicação de uma norma, da qual caiba recurso para o Tribunal Constitucional.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, acordam em não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Julho 2011. – Ana Maria Guerra Martins – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral (vencida, nos termos da declaração ao processo n.º 714/10) – Vítor Gomes (vencido, pelo essencial das razões apresentadas no Ac. n.º 238/2011) – Gil Galvão.