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Processo n.º 884/2010
(153/DPR)
Plenário
ACTA
Aos vinte e um dias do mês de Junho de dois mil e onze, achando-se presentes o Excelentíssimo Conselheiro Presidente Rui Manuel Gens de Moura Ramos e os Exmos. Conselheiros Carlos José Belo Pamplona de Oliveira, José da Cunha Barbosa, Catarina Teresa Rola Sarmento e Castro, Ana Maria Guerra Martins, José Manuel Cardoso Borges Soeiro, Vítor Manuel Gonçalves Gomes, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Gil Manuel Gonçalves Gomes Galvão, Maria Lúcia Amaral, Maria João da Silva Baila Madeira Antunes e Joaquim José Coelho de Sousa Ribeiro, foram trazidos à conferência os presentes autos, para apreciação.
Após debate e votação, foi ditado pelo Excelentíssimo Conselheiro Presidente o seguinte:
ACÓRDÃO Nº 302/2011
I. Relatório.
1. Através de ofício apresentado em 20.12.2010, dirigido ao Presidente do Tribunal Constitucional, o Presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento do Município de …… veio solicitar o esclarecimento da dúvida consistente em saber se o director-delegado daqueles serviços se encontra sujeito ao regime do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, e revisto pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, mormente por via da sua recondução à categoria dos equiparados aos titulares de cargos políticos constituída pelos cargos de director-geral, subdirector geral e seus equiparados.
Fundamentou tal dúvida na circunstância de, apesar de o cargo de director-delegado ser equiparado a cargo de direcção superior de 1º grau (art. 3.º, n.ºs 1 e 2 do Dec. Lei n.º 93/2004, na redacção conferida pelo Dec. Lei n.º 104/2006, de 7 de Junho, e pelo Dec. Lei n.º 305/2009, de 23 de Outubro) e de este, para além de corresponder ao cargo de director-geral (art. 2.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro), se encontrar expressamente contemplado no n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, o actual director-delegado dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … exercer o referido cargo em regime de substituição, nos termos previstos no art. 27.º da Lei n.º 2/2004, por aposentação do respectivo titular.
Uma vez que, de acordo com o regime previsto no referido preceito, a substituição cessa na data em que o titular retome funções ou passados 60 dias sobre a data da vacatura do lugar, salvo se estiver em curso procedimento tendente à nomeação de novo titular, podendo ainda cessar, a qualquer momento, por decisão da entidade competente, aquela circunstância torna imprevisível a duração da investidura do actual director-delegado, o que, pelo seu turno, deverá conduzir ao reconhecimento de que a equiparação deste cargo ao de direcção superior de 1º grau ocorre num contexto diverso daquele que corresponde ao âmbito subjectivo da Lei n.º 4/83.
Solicitou ainda que, no caso de se concluir pela subordinação do referido titular ao regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo, instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, seja esclarecida a periodicidade da obrigação de entrega da declaração de património, rendimentos e cargos sociais.
2. Sob promoção do Ministério Público, foi prestada a informação de que o director-delegado dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento do Município de … foi nomeado, pela primeira vez, em 31 de Dezembro de 2009, em regime de substituição, por aposentação do respectivo titular, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2010, tendo ocorrido nova nomeação nos mesmos termos em 3 de Março de 2010. Foi ainda esclarecido que, em Janeiro de 2011, se encontrava pendente processo de consulta com vista à nomeação de novo titular e, bem assim, junta aos autos cópia certificada do despacho, datado de 31 de Dezembro de 2009, que procedeu àquela primeira nomeação.
3. Por ofício apresentado em 28.01.2011, o Presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento do Município de …, veio ampliar o objecto da dúvida originariamente suscitada, solicitando complementarmente o esclarecimento da questão consistente em saber se os membros do Conselho de Administração daqueles serviços, designados como tal em 26 de Novembro de 2009, pelo período de dois anos, se encontram sujeitos ao regime do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, e revisto pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, mormente por via da sua recondução à categoria dos equiparados aos titulares de cargos políticos constituída pelos gestores públicos e/ou pelos administradores designados por entidade pública em pessoa colectiva de direito público.
Fundamentou tal dúvida na circunstância de os serviços municipalizados, ora sendo entendidos como verdadeiras empresas, ora o sendo como efectivos serviços, assumirem natureza híbrida, projectando-se esta na previsão de um órgão de gestão próprio (à semelhança das empresas) desacompanhada da atribuição de personalidade jurídica (à imagem dos serviços). Os serviços municipalizados, que integram a administração autárquica indirecta, embora gozem de autonomia administrativa e financeira (como se de verdadeiras empresas públicas municipais se tratasse), não dispõem de personalidade jurídica, pelo que os respectivos gestores, nomeados como tal pelas Câmaras Municipais respectivas, apesar de o serem em sentido material, não serão qualificáveis como tal à luz do Estatuto dos Gestores Públicos, apresentando-se antes como figuras atípicas às quais se não aplica o regime jurídico previsto naquele diploma.
Quanto à possibilidade de qualificação dos membros do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento do Município de ….. como administradores designados por entidade pública em pessoa colectiva de direito público para efeitos da sua consideração como equiparados aos titulares de cargos políticos (art. 4.º, n.º 3, al. b), da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto), deverá relevar a circunstância de tal conselho, não obstante composto por membros designados pela Câmara Municipal de ….. e presidido pelo Presidente do referido Município sempre que este faça parte da respectiva composição, ser, de acordo com o respectivo Regulamento, o órgão de gestão e direcção ao qual cabe, essencialmente, promover e executar as actividades dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento com vista à prossecução dos respectivos fins (art. 21.º do Regulamento de Organização dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de … .
Deste duplo circunstancialismo resultará que os administradores dos serviços municipalizados referidos, a serem considerados gestores públicos ou administradores designados por entidade pública em pessoa colectiva de direito público (não se afigurando em qualquer caso líquido em qual das referidas categorias deverão ser enquadrados), o serão sempre em contexto diverso daquele que aparentemente subjaz à equiparação dos titulares de qualquer um destes cargos aos titulares de cargos políticos para efeitos de aplicação do regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril.
Solicitou ainda que, no caso de se concluir pela subordinação dos membros do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de … ao regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo, instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, seja esclarecida a periodicidade da obrigação de entrega da declaração de património, rendimentos e cargos sociais.
4. Sob promoção do Ministério Público, foram juntas aos autos certidões das actas das reuniões da Câmara Municipal de … no âmbito das quais se procedeu: i) à designação dos actuais administradores dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … ; ii) à aprovação da revisão da estrutura orgânica dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … ; e iii) à aprovação, no âmbito daquela revisão, da criação das Unidades Orgânicas Flexíveis e definição das respectivas competências.
5. Tendo sido concedida subsequente vista ao Ministério Público, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aí concluindo nos seguintes termos: i) os membros do conselho de administração, desde 2 de Dezembro de 2009, e o director-delegado dos SMAS de … , desde 29 de Dezembro de 2010, encontram-se sujeitos ao “dever de declaração” dos seus rendimentos, património e cargos sociais, nos termos e para os efeitos do regime do controle público da riqueza dos titulares dos cargos políticos (CPRTCP, art. 4.º, n.º 3, al. c), na redacção da Lei n.º 25/95, cit. e, depois, da al. f), na redacção da Lei n.º 38/2010); ii) o presidente do conselho de administração daqueles serviços, sendo no caso o presidente da Câmara Municipal de …, está já adstrito ao dever de declaração a esse específico título (CPRTCP, art. 4.º, n.º 1, al. n), na redacção da Lei n.º 4/83, cit., e agora da al. m), na redacção da Lei n.º 38/2010); iii) quanto à periodicidade, a “declaração inicial”, a apresentar pelos mencionados administradores, era devida “no prazo de 60 dias contado do início do exercício das respectivas funções” (CPRTCP, art. 1.º, n.º 1); iv) relativamente à “declaração de actualização”, a mesma deve, actualmente, ser apresentada “sempre que no decurso do exercício de funções se verifique um acréscimo patrimonial efectivo que altere o valor declarado referente a alguma das alíneas a) a d) do art. 1.º deste regime legal, em montante superior a 50 salários mínimos mensais” (idem, art. 2.º, n.º 3, na redacção da Lei n.º 38/2010, cit.), sem prejuízo da apresentação de “nova declaração, actualizada, (…) no prazo de 60 dias a contar da cessação das funções que tiverem determinado a apresentação da precedente, bem como de recondução ou reeleição do titular” (idem, art. 2.º, n.º 1); v) quanto à “declaração inicial”, a apresentar pelo mencionado director-delegado, o início de funções, para efeitos de determinação do termo inicial do prazo de 60 dias previsto na lei, deve ser referido a 29 de Dezembro de 2010, data em que entrou em vigor o diploma que o constituiu na obrigação em causa (idem, art. 1.º, n.º 1, e RO, art. 16.º, n.º 2), valendo quanto à “declaração de actualização” e à “nova declaração, actualizada, decorrente de cessação de funções ou recondução”, o referido em iv).
5. Afigurando-se pertinentes as dúvidas suscitadas, importa resolvê-las ao abrigo do disposto no art. 109.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
II. Fundamentação.6. É sabido que, ao proceder à revisão do regime jurídico do controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, a Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, a par de outras alterações produzidas, ampliou o elenco dos cargos cujos titulares se encontram obrigados a apresentar, nos prazos para o efeito estabelecidos, uma “declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais” (cfr. art. 1.º).
Em consequência da entrada em vigor da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, o elenco dos sujeitos vinculados pelo dever de apresentação da referida declaração passou a incluir a categoria dos “equiparados a titulares de cargos políticos para efeitos da presente lei” e, no âmbito desta, a contemplar expressamente, de acordo com a previsão do n.º 3 do respectivo do art. 4.º, as seguintes figuras:
a) Gestores públicos;
b) Administrador designado por entidade pública em pessoa colectiva de direito público ou em sociedade de capitais públicos ou de economia mista;
c) Director-geral, subdirector-geral e equiparados.
7. O regime jurídico do controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, e revisto pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, foi entretanto alterado pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, que entrou em vigor no dia 2 de Novembro de 2010 (cfr. art. 3.º).
As modificações introduzidas pela Lei n.º 38/2010 no regime jurídico do controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos consistiram na reconfiguração do universo dos sujeitos obrigados à apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais (cfr. art. 4.º), na ampliação do âmbito objectivo de tal declaração (cfr. art. 1.º), bem como na alteração dos pressupostos objectivos e subjectivos do dever de renovação da declaração previamente apresentada fora dos casos de recondução ou reeleição do titular vinculado (cfr. art. 2.º).
Quanto à reconfiguração do universo dos sujeitos obrigados à apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais, a Lei n.º 38/2010 instituiu, a par das categorias dos titulares de cargos políticos e equiparados, a dos titulares de altos cargos públicos (art. 1.º), para esta fazendo transitar, para além dos “membros das entidades públicas independentes previstas na Constituição e na lei” até então qualificados como titulares de cargos políticos [art. 4.º, n.º 1, alínea l) da Lei n.º 25/95], certos dos cargos que, para os mesmos efeitos, constavam da categoria correspondente ao segundo patamar de equiparação [cfr. art. 4.º, n.º 3, da Lei n.º 25/95].
Reorganizando em tais termos o elenco dos sujeitos vinculados pelo regime do controlo público da riqueza em razão do cargo, a Lei n.º 38/2010 suprimiu o elenco dos cargos equiparados que constava do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 25/95, passando a agrupar, no âmbito da instituída categoria dos “titulares de altos cargos públicos”, os cargos seguintes:
a) Gestores públicos; b) Titulares de órgão de gestão de empresa participada pelo Estado, quando designados por este;c) Membros de órgãos executivos das empresas que integram o sector empresarial local;d) Membros dos órgãos directivos dos institutos públicos;e) Membros das entidades públicas independentes previstas na Constituição ou na lei;f) Titulares de cargos de direcção superior do 1.º grau e equiparados.
Tomando por referência os regimes normativos sucessivamente aplicáveis, analisemos autonomamente a situação dos membros do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … e do respectivo director-delegado, começando pela caracterização do estatuto daqueles primeiros.
8. De acordo com o que dos autos resulta, os membros que integram a actual composição do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … foram como tal designados através da aprovação, em reunião da Câmara Municipal de … realizada a 02.12.2009, da proposta de deliberação n.º 1153/09, datada de 25.11.2009, subscrita pelo Presidente do referido município (cfr. fls.61-62). Tal composição inclui o Presidente da Câmara Municipal de …, que em razão dessa sua qualidade preside ao referido conselho nos termos regulamentarmente previstos (cfr. art. 18.º, n.º 3, do Regulamento Geral dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de … .
O acto pelo qual cada um dos referidos elementos acedeu ao cargo de membro do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … ocorreu, assim, na vigência da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da revisão levada a cabo pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto.
Em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 1.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão aprovada pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto – nessa parte não alterado pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro – é de “60 dias contado da data de início do exercício das respectivas funções” o prazo para apresentação no Tribunal Constitucional da declaração de património, rendimento e cargos sociais pelos sujeitos abrangidos pelo regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares
Daqui resulta que a obrigação cujo fundamento se controverte, a ter-se constituído, reporta-se a um momento ocorrido no âmbito da vigência da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da revisão introduzida pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, pelo que é em torno da definição do âmbito subjectivo de aplicação do regime jurídico do controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos a partir das fórmulas normativas constantes do n.3 do art. 4.º do referido diploma que começa por suscitar-se a dúvida que nos presentes autos importa esclarecer.
9. Em consequência da entrada em vigor da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, o elenco dos sujeitos vinculados pelo dever de apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais passou a incluir a subcategoria dos “equiparados a titulares de cargos políticos para efeitos da presente lei” e, no âmbito desta, a contemplar expressamente a figura quer dos “gestores públicos”, quer do “administrador designado por entidade pública em pessoa colectiva de direito público ou em sociedade de capitais públicos ou de economia mista” [cfr. art. 4.º, n.º 3, als. a) e b), respectivamente].
Para responder à questão de saber se os membros do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … integram alguma das referidas categorias, importa começar por caracterizar a natureza jurídica dos serviços municipalizados.
10. Com apoio no modelo organizativo tripartido perspectivado no art. 199.º, al. d), da Constituição, é comummente aceite na doutrina a distinção, no âmbito da administração pública, entre administração directa do Estado, administração indirecta do Estado e administração autónoma. Os critérios propiciadores de tal distinção vêm sendo objecto de conhecida explicitação doutrinária.
Segundo Freitas do Amaral, «“a administração directa do Estado” é a actividade exercida por serviços integrados na pessoa colectiva Estado, ao passo que a “administração indirecta do Estado”, é uma actividade que, embora desenvolvida para realização dos fins do Estado, é exercida por pessoas colectivas públicas distintas do Estado» (Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 3.ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 2006, pág. 228).
A administração autónoma, por seu turno, “é aquela que prossegue interesses públicos próprios das pessoas que a constituem e por isso se dirige a si mesma, definindo com independência a orientação das suas actividades, sem sujeição a hierarquia ou a superintendência do Governo”, sendo desenvolvida, no direito português, pelas associações públicas, as regiões autónomas e as autarquias locais (ob. cit. pgs. 419-421).
As autarquias locais – que a Constituição define como «pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas» (art. 235.º, n.º 1) – compreendem os municípios e as freguesias, ambos se integrando na “administração autónoma” do Estado.
Não obstante integrarem a administração autónoma do Estado, os municípios podem, contudo, desenvolver as suas competências através de uma administração local directa – é o que sucede quando o fazem por intermédio dos serviços municipais em sentido estrito, ou seja, daqueles que, não dispondo de autonomia, são directamente geridos pelos órgãos principais do município, v. g. pela Câmara municipal (ob. cit., pg. 593) – e de uma administração local indirecta – ou seja, quando actuam através de organizações autónomas criadas por si próprios para a realização dos respectivos fins.
O desenvolvimento pelos municípios de uma administração local indirecta compreende os serviços municipalizados – aos quais começou, de resto, por confinar-se – e as empresas municipais – cuja instituição em concreto veio a dispor da regulamentação jurídica necessária através da aprovação da Lei das Empresas Municipais, Intermunicipais e Regionais (Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto) e, ulteriormente, por revogação desta, do Regime jurídico do sector empresarial local (RJSEL), aprovado pela Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro.
Não sendo embora consensual a caracterização da natureza jurídica dos serviços municipalizados, tende a prevalecer na doutrina a perspectiva segundo a qual, de um ponto de vista material, os mesmos serão classificáveis como verdadeiras empresas públicas de âmbito municipal.
Tomando por referência a regulação dos serviços municipalizados constante dos artigos 164.º a 176.º do Código Administrativo – em particular a definição de tais serviços como “aqueles a que a lei permite conferir organização autónoma adentro da administração municipal e cuja gestão é entregue a um conselho de administração privativo” (art. 168.º do referido Código) –, Freitas do Amaral pronuncia-se claramente em tal sentido.
Segundo o referido autor, embora a empresa pública seja normalmente uma pessoa colectiva de direito público, os serviços municipalizados constituirão uma excepção a tal princípio: corresponderão a empresas públicas que, não dispondo de personalidade jurídica, se acham integradas na pessoa colectiva município, gozando da personalidade jurídica pública que a este cabe (cfr. ob. cit., pg.596).
Tal qualificação justificar-se-á pelo facto de os serviços municipalizados se apresentarem como “organizações económicas de fim lucrativo” – o que permitirá a sua classificação como empresas –, “criadas e controladas por entidades jurídicas públicas” (cfr. ob. cit., pg.392) – o que lhes conferirá carácter público.
Ainda segundo o referido autor, tal entendimento veio a ser confirmado pela Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto, ao contemplar expressamente, no respectivo art. 41.º, a possibilidade de transformação dos serviços municipalizados existentes em empresas públicas, nos termos aí previstos (cfr. ob. cit., pg.596).
É também esta a perspectiva em que se colocam Pedro Gonçalves e Rodrigo Esteves de Oliveira.
Apesar de integrarem os serviços municipalizados no âmbito da “gestão pública municipal directa” – que definem como a gestão dos serviços públicos efectuada pelo próprio titular do serviço público, ou seja, pelo município –, os referidos autores não deixam de colocar em evidência o facto de “muito raramente a integração do serviço público” ocorrer “indiferenciadamente, no conjunto dos múltiplos serviços administrativos directamente a cargo do município”, sendo ao invés recorrente “o seu destaque orgânico e funcional dos restantes serviços municipais”, o que resulta na atribuição de “uma maior autonomia técnica, financeira e administrativa à sua gestão”. Destas hipóteses, designáveis como de “integração diferenciada”, constituirão exemplo paradigmático os serviços municipalizados.
Para os referidos autores, tais serviços corresponderão a “verdadeiras empresas públicas em sentido material, de âmbito territorial necessariamente municipal, embora se encontrem integradas na pessoa colectiva município pois, ao contrário das outras, não lhes é atribuída personalidade jurídica” (in As concessões municipais de distribuição de electricidade, Coimbra Editora, 2001, pgs.25-26).
Tal qualificação valerá mesmo em face do regime jurídico instituído pela Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto, – Lei das Empresas Municipais, Intermunicipais e Regionais –, bem como do regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pela Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro, que lhe sucedeu: apesar de, por força da ausência da subjectividade jurídica pressuposta no conceito legal de empresa municipal constante, quer do art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 58/98, quer do art. 3.º, n.º1, da Lei n.º 53-F/2006, este não incluir as organizações desprovidas de personalidade jurídica como sucede com os serviços municipalizados, os mesmos persistirão qualificáveis, segundo um critério material, como empresas municipais, mais precisamente como empresas municipais sem personalidade jurídica (ob. cit., pg.21).
Contra a qualificação dos serviços municipalizados como verdadeiras empresas públicas municipais são invocados argumentos relacionados, não apenas com a circunstância de os mesmos não disporem de personalidade jurídica, mas ainda com certos aspectos do regime jurídico dos serviços municipalizados que os aproximarão dos serviços municipais, como seja a circunstância de o respectivo quadro de pessoal, por oposição ao que sucede com as empresas municipais, dever ser elaborado e preenchido de acordo com as formas de recrutamento rigorosas da função pública (neste sentido, Maria José L. Castanheira Neves, in Governo e Administração Local, Coimbra Editora, 2004, pg.322).
11. No plano da aplicação do regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo, a questão de saber se os serviços municipalizados são qualificáveis como empresas públicas municipais e, em particular, para que efeitos tal qualificação deverá prevalecer, só adquire efectiva relevância no âmbito das alterações introduzidas pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro.
No âmbito de aplicação da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto – em particular perante a categoria constituída pelos administradores designados por entidade pública em pessoa colectiva de direito público [cfr. art. 4.º, n.º 3, al. b)] – tal qualificação é irrelevante. E isto porque o facto de os serviços municipalizados não gozarem de personalidade jurídica própria é impeditivo da possibilidade da sua qualificação como pessoa colectiva de direito público autónomo, impondo que sejam considerados, à semelhança do que sucede com os serviços municipais, como elemento da pessoa colectiva de direito público representada pelo município, embora orgânico-funcionalmente destacado e por isso desse ponto de vista diferenciável.
Perante a previsão normativa constante da alínea b) do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão aprovada pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, a questão que se coloca é, assim, a de saber se os membros do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … foram designados por entidade pública na pessoa colectiva de direito público necessariamente representada pelo respectivo município.
A resposta parece ser afirmativa.
De acordo com o disposto na alínea i) do n.º 1 do art. 64.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro – que estabelece o quadro de competências e o regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias –, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro, compete à câmara municipal, no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços e no da gestão corrente, nomear e exonerar o conselho de administração dos serviços municipalizados e das empresas públicas municipais.
Em consonância com tal preceito, o Regulamento Geral dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de …, depois de caracterizar aqueles serviços como um “serviço público não personalizado de interesse local, dotado de autonomia técnica, administrativa e financeira e explorado sob a forma industrial, no quadro da organização municipal” (art. 2.º), dispõe que o respectivo conselho de administração “é composto por um número de membros determinado pela Assembleia Municipal de …, sob proposta da Câmara Municipal de …” (art. 18.º, n.º 1), que os designará, assim como ao respectivo presidente (art. 18.º, n.º 2), salvo se o próprio presidente da câmara municipal de … integrar aquele conselho, caso em que ao mesmo presidirá (art. 18.º, n.º3).
As considerações acabadas de expor permitem concluir que os membros do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de … foram nomeados pela entidade pública câmara municipal de … administradores de um serviço público não personalizado, dotado de autonomia técnica, administrativa e financeira e explorado sob a forma industrial, no quadro da organização da pessoa colectiva de direito público representada pelo Município de ….
Verificam-se, portanto, todos os elementos que integram a previsão normativa da al. b) do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto.
12. O regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos foi, conforme referido já, revisto pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, em vigor desde 2 de Novembro de 2010 (cfr. art. 3.º).
O referido diploma procedeu à reorganização do elenco dos sujeitos obrigados à apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais, suprimindo a subcategoria dos cargos que, no n.º 3 do art. 4.º daquele regime, a Lei n.º 25/95 equiparava aos cargos políticos para os referidos efeitos e passando a agrupar, no âmbito da instituída categoria dos titulares de altos cargos públicos, entre outros, os cargos seguintes:
a) Gestores públicos; b) Titulares de órgão de gestão de empresa participada pelo Estado, quando designados por este;c) Membros de órgãos executivos das empresas que integram o sector empresarial local;
O conceito de gestor público encontra-se, desde a entrada em vigor do Dec. Lei n.º 71/2007, de 27 de Março, normativamente indexado ao conceito de empresa pública, tal como este se encontra definido no Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro.
Tal indexação conduz a que a densificação daquele conceito deva ocorrer sob incidência do bloco normativo integrado pelos arts. 1.º e 13.º, n.ºs 1 e 4, do Dec. Lei n.º 71/2007, de 27 de Março, e pelo art. 15.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, na redacção conferida pelo Dec. Lei n.º 300/2007, de 23 de Agosto, e, consequentemente, que como tal deva ser qualificado quem houver sido designado, por nomeação ou por eleição nos termos da lei comercial, para órgão de gestão ou de administração das sociedades constituídas nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas estaduais possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma directa ou indirecta, uma influência dominante em virtude da detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto, ou do direito de designar ou de destituir a maioria dos membros do conselho de administração e fiscalização.
Uma vez que o âmbito normativo do conceito de gestor público se encontra confinado ao sector empresarial do Estado, com exclusão das empresas integradas no sector empresarial local, é apenas com a fattispecie correspondente à alínea c) do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, que se prende a questão que cumpre agora resolver.
Consiste ela em determinar se os membros do conselho de administração dos serviços municipalizados – designadamente daqueles que não se converteram em empresas públicas municipais nos termos propiciados pelo art. 41.º da Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto – serão classificáveis como titulares de órgão executivo de uma empresa inserida no sector empresarial local nos termos e para efeitos de aplicação do regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo.
13. Segundo o que ficou já dito, é prevalecente na doutrina o entendimento segundo o qual, de um ponto de vista material, os serviços municipalizados são classificáveis como verdadeiras empresas públicas de âmbito municipal, resultando tal classificação de um critério que atende à natureza intrínseca da função por ambos desempenhada e às condições em que tal desempenho é prosseguido, em especial ao facto de aos primeiros corresponder, quanto à respectiva gestão, um nível de autonomia técnica, financeira e administrativa equiparável ao das segundas.
Consistindo a finalidade subjacente ao regime do controlo público da riqueza em razão do cargo, instituído pela Lei n.º 4/83, na de “de assegurar que os titulares de cargos políticos e equiparados exerçam as respectivas funções com respeito pelas regras da moralidade pública” (Acórdão n.º 289/98, Acórdãos V.40, pg. 721) e constituindo a «”racionalidade” que (…) inspirou o legislador na fixação de um certo regime jurídico particular» «um ponto de referência» que habilita o intérprete a «definir o exacto alcance da norma e a discriminar outras situações típicas com o mesmo ou com recorte diferente» (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pg.183), parece ser o critério material de qualificação do órgão ou entidade em causa aquele que, quanto à fattispecie em presença, maior pertinência assume no plano da delimitação do âmbito de aplicação do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na configuração resultante da Lei n. º 38/2010.
Se o regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo tem por objectivo permitir, através da imposição do dever de apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais, o “levantamento dos casos em que os interesses privados podem afectar a actuação dos homens públicos”, (cfr. projecto-lei 569/VI, que antecedeu a Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, itálico nosso), parece assumir menor relevância, no plano da densificação do conceito de “empresa integrada no sector empresarial local”, o recorte formalmente diferenciado que distingue os serviços municipalizados das empresas municipais – e que advém do facto de estas disporem de personalidade jurídica própria e de aqueles beneficiarem da personalidade jurídica que cabe à pessoa colectiva município em que se acham integrados – e maior pertinência a circunstância de se tratar de unidades funcional e organicamente equivalentes – o que resulta de ambas terem por objecto a exploração de actividades que prosseguem fins de reconhecido interesse público de âmbito municipal e de o desenvolverem através de uma organização autónoma dentro da administração municipal, cuja gestão é entregue a um conselho de administração privativo.
Tais considerações conduzem à conclusão de que, para efeitos da aplicação do regime jurídico instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com as alterações sucessivamente introduzidas pelas Leis n.º 25/95, de 18 de Agosto, e n.º 38/2010, de 2 de Setembro, os serviços municipalizados, apesar de não serem subsumíveis ao conceito de empresa municipal constante do art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro, serão classificáveis como empresas integradas no sector empresarial local para aqueles efeitos, pelo que os membros dos respectivos órgãos executivos, devendo ser considerados titulares de altos cargos públicos nos termos que resultam da alínea c) do n.º 3 do art. 4º daquele diploma, se encontram sujeitos à obrigação de apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais.
14. É, todavia, possível partir do pressuposto inverso.
No plano do estabelecimento do âmbito subjectivo de aplicação da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na configuração resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, é possível pensar-se que o conceito de empresa integrada no sector empresarial local, constante da alínea c) do n.º 3 do respectivo art. 4.º, só pode ser entendido em termos decalcados da definição de empresa municipal, intermunicipal e metropolitana plasmada no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro, porque assim pré-densificada no ordenamento jurídico.
Em tal hipótese interpretativa, que conduziria a excluir do alcance literal da norma da alínea c) do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, os membros dos órgãos executivos dos serviços municipalizados, outro fundamento, todavia, obstaria ao seu definitivo afastamento do âmbito de aplicação do regime do controlo público da riqueza em razão do cargo.
Tal fundamento – que se prende, de resto, com a apreciação da segunda parte do pedido formulado – emerge directamente da previsão normativa da al. f) do n.º3 do art. 4.º do referido diploma, que estabelece a equiparação aos titulares de cargos políticos, para efeitos da sua sujeição ao conjunto de deveres resultantes daquele regime, dos titulares de cargos de direcção superior de 1º grau e equiparados.
Vejamos mais de perto.
Conforme sabido é, o Decreto-Lei n.º 93/2004, de 20 de Abril, adaptou à administração local o estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado, aprovado pela Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro, entretanto revista pela Lei n.º 51/2005, de 30 de Agosto.
Aquele diploma, alterado pelo Decreto-Lei n.º 104/2006, de 7 de Junho, inclui no âmbito dos cargos dirigentes dos serviços municipalizados o de director-delegado [cfr. art. 3.º, n.º1, al. a)], estabelecendo que o mesmo é equiparado a cargo de direcção superior do 1.º grau ou a cargo de direcção intermédia do 1º grau, por deliberação da câmara municipal, sob proposta do conselho de administração [art. 3.º, n.º 2].
Quer isto significar que, sempre que o director-delegado dos serviços municipalizados houver sido equiparado a cargo de direcção superior de 1º grau por deliberação da câmara municipal, sob proposta do respectivo conselho de administração, o mesmo ficará sujeito ao regime do controlo público da riqueza em razão do cargo, resultando tal sujeição da fattispecie correspondente à alínea f) do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro.
Não sendo razoavelmente configurável a possibilidade de o legislador de 2010 ter pretendido, no que aos serviços municipalizados diz respeito, excluir do âmbito de aplicação do regime do controlo público da riqueza em razão do cargo os membros dos respectivos conselhos de administração e subordinar às obrigações do mesmo decorrentes o respectivo director-delegado nos casos em que este haja sido equiparado por deliberação camarária a cargo de direcção superior de 1º grau – tratar-se-ia de uma consequência disfuncional e por isso seguramente não intentada –, a aceitação desta última asserção – que é imposta pelo bloco normativo integrado pelos arts. 4.º, n.º 3, al. f) da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, e 2.º, n.ºs 1, al. a), e 2, estes do Decreto-Lei n.º 93/2004, de 20 de Abril, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 104/2006, de 7 de Junho – apenas se revela compatível com o alargamento da letra da lei quanto à al. c) do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, de modo a incluir no respectivo âmbito normativo aquela primeira categoria.
Com efeito, se o cargo de director-delegado de quaisquer serviços municipalizados tenderá a ser sempre um cargo hierarquicamente subordinado ao ocupado pelos membros do respectivo conselho de administração, tal assunção encontra-se expressivamente concretizada no caso dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … na medida em que àquele conselho compete, além do mais, fiscalizar e superintender os actos praticados por todas as unidades orgânicas, incluindo os do director-delegado, assim como neste delegar competências, nos termos da lei e na prossecução de uma maior eficácia na gestão dos Serviços [art. 20.º, alíneas e) e i) do Regulamento Geral dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de … ], e ao referido director-delegado a execução técnica e a implementação das orientações emanadas pelo Conselho de Administração e pelo seu Presidente [cfr. art. 16.º, n.º 2, do Regulamento de Organização dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de …,].
A ampliação da fattispecie em presença nos termos expostos, apesar de constituir uma extensão teleológica da norma constante do al. c) do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro – o que, de resto, foi já admitido por este Tribunal no contexto da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto (cfr. Acórdão n.º 749/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional V. 34, pgs. 509 e ss.) – corresponde, pois, ao meio necessário para estender a aplicação daquela norma a um caso que, embora não previsto pela sua letra, se encontra necessariamente compreendido pelo seu espírito, tal como este é reconstituível a partir da racionalidade do regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo, entendido unitariamente.
15. Seja pela sua directa qualificação como membros de um órgão executivo de empresa integrada no sector empresarial local, seja em resultado da interpretação extensiva da norma inserta na al. c) do n.º 3 do art. 4º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, os elementos do conselho de administração dos serviços municipalizados, que a Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, veio sujeitar ao regime jurídico do controlo público em razão do cargo enquanto administradores designados por entidade pública na pessoa colectiva de direito público representada pelo município [cfr. art. 3.º, n.º 3. al. b)], não foram desonerados dos deveres do mesmo decorrentes pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, persistindo, por isso, vinculados à obrigação de entrega da declaração de património, rendimentos e cargos sociais nos termos agora aí previstos.
16. Quanto à periodicidade do dever de renovação da declaração originariamente apresentada, tais termos divergem dos estabelecidos na Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto.
Com efeito, a par da reconfiguração do universo dos sujeitos obrigados à apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais, e da ampliação do âmbito objectivo de tal declaração, a Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, procedeu também à alteração dos pressupostos objectivos e subjectivos do dever de renovação da declaração previamente apresentada fora dos casos de recondução ou reeleição do titular vinculado.
Tal alteração, aplicável a partir do dia 2 de Novembro de 2010 (cfr. art. 3.º da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro), inclui os seguintes aspectos: o dever de renovação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais deixa de recair apenas sobre os obrigados com funções executivas como sucedia no âmbito da Lei n.º 25/95, passando a onerar todos sujeitos vinculados pelo regime; a existência de tal dever passa a depender da verificação, no decurso do exercício de funções, de um acréscimo patrimonial efectivo que altere em montante superior a 50 salários mínimos mensais o valor declarado referente a algum dos elementos incluídos no conteúdo da declaração de acordo com o art. 1.º; o cumprimento do dever de renovação deixa de encontrar-se sujeito a qualquer periodicidade independente daquela verificação (cfr. art. 2.º, n.º 3).
17. Os membros que integram a actual composição do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … foram como tal designados em 02.12.2009, tendo-se por via dessa designação constituído na obrigação de entrega da respectiva declaração de património, rendimentos e cargos sociais nos 60 dias subsequentes, de acordo com o disposto nos arts.1.º e 4.º, n.º 3, al. b), da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão conferida pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto.
No contexto da aplicação da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão conferida pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, aqueles membros apenas se encontrariam sujeitos ao dever de renovação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais se exercessem funções executivas (cfr. art. 2.º, n.º 3).
Sucede, porém, que, mesmo no caso de os referidos membros exercerem funções executivas, tal dever de renovação, sendo anual, apenas poderia sobrevir a 02.12.2010, ou seja, num momento em que, por força da entrada em vigor da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, o mesmo já não existia naqueles termos.
Daqui resulta que os requerentes apenas se encontram sujeitos ao dever de renovação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais nos termos inovatoriamente introduzidos pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, e a partir da respectiva entrada em vigor, ou seja, na hipótese de, no decurso do exercício de funções, se haver verificado, após 2 de Novembro de 2010, um acréscimo patrimonial efectivo que tenha alterado em montante superior a 50 salários mínimos mensais o valor declarado referente a algum dos elementos que devessem ser incluídos no conteúdo da declaração a apresentar originariamente de acordo com o art. 1.º (cfr. art. 2.º, n.º 3, da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro).
17. O segundo conjunto de dúvidas suscitadas diz respeito ao cargo de director-delegado e encontra-se já em parte respondido.
Conforme referido supra, o Decreto-Lei n.º 93/2004, de 20 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 104/2006, inclui no âmbito dos cargos dirigentes dos serviços municipalizados o de director-delegado [cfr. art. 2.º, n.º 1, al. a)], estabelecendo que o mesmo é equiparado a cargo de direcção superior do 1.º grau ou a cargo de direcção intermédia do 1º grau, por deliberação da câmara municipal, sob proposta do conselho de administração [art. 2.º, n.º 2].
De acordo com o que dos autos resulta, por deliberação de 14 de Julho de 2010, a Câmara Municipal de …procedeu à ratificação da “Revisão da Estrutura Orgânica dos SMAS de …” nos termos em que a mesma havia sido aprovada pelo conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … , os quais incluíam a equiparação do cargo de director-delegado a cargo de direcção superior de 1º grau (cfr. fls. 64 a 80).
Tal revisão veio a ser, por seu turno, aprovada pela Assembleia Municipal de …, na sua sessão de 10 de Outubro de 2010, tendo-se convertido no “Regulamento de Organização dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de …”.
Em tal diploma, o cargo de director-delegado daqueles Serviços é expressamente equiparado a “cargo de direcção superior do 1.º grau” (cfr. art. 16.º, n.º 2) em conformidade com o regime previsto no art. 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 93/2004, de 20 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 104/2006, de 7 de Junho, o que torna desde então qualificável como alto cargo público nos termos e para os efeitos previstos no art. 4.º, n.º 3, al. f) da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, em vigor, conforme se referiu já, desde 02 de Novembro de 2010.
Em tal contexto, é de considerar que o actual director-delegado dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … , não obstante haver sido como tal designado, em primeira nomeação, a 31 de Dezembro de 2009, com efeitos a partir de 01 de Janeiro de 2010, e, em segunda nomeação, a 03 de Março de 2010, passou a estar sujeito ao regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos e equiparados através da equiparação do referido cargo a cargo de direcção superior de 1º grau, o que ocorreu, em definitivo, através da publicação, em 29.12.2010, do Regulamento de Organização dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de …, aprovado pela Assembleia Municipal de … a 11 de Outubro de 2010, na sequência da deliberação camarária de 14 de Julho de 2010.
18. Uma vez aqui chegados, a questão que se coloca é apenas a de saber se contraria tal inclusão a circunstância de o actual director-delegado daqueles serviços exercer o referido cargo em regime de substituição, nos termos previstos no art. 27º da Lei n.º 2/2004, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 51/2005, de 30 de Agosto, por aposentação do respectivo titular.
Seja na versão resultante da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, seja com as alterações introduzidas pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, a Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, não estabelece como requisito da subordinação aos deveres aí previstos uma periodicidade mínima no exercício de qualquer um dos cargos compreendidos pelo respectivo âmbito subjectivo de aplicação.
Da respectiva teleologia não decorre, além do mais, a exclusão implícita de situações de provimento transitório dos cargos contemplados às quais pudesse associar-se a hipótese, que é a presente, de nomeação em regime de substituição, por aposentação do respectivo titular, nos termos previstos no art. 27.º da Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro, na redacção conferida pela Lei n.º 51/2005, de 30 de Agosto.
Inexiste, pois, no referido mecanismo de nomeação qualquer especificidade que permita deslocar a equiparação do cargo de director-geral, quando em tais circunstâncias provido, ao de cargo direcção superior de 1º grau do contexto subjacente àquele que corresponde ao âmbito subjectivo da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, alterada pelas Leis n.º 25/95, de 18 de Agosto, e n.º 38/2010, de 2 de Setembro.
O director-delegado dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de … encontra-se, assim, subordinado ao dever de entrega da declaração de património, rendimentos e cargos sociais nos termos previstos nos artigos 1º e 4º, n.º 3, al. f), da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, bem como ao dever da sua renovação nos termos prescritos nos n.º s 1, 3 e 4 do respectivo art. 2.º.
III. Decisão
19. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide que:
a) Os membros do conselho de administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de … encontram-se abrangidos pelo disposto na alínea b) do n.º 3 do art. 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, e, consequentemente, sujeitos ao dever de apresentação da declaração de rendimentos, património e cargos sociais, previsto no art. 1.º do referido diploma.
b) Persistindo abrangidos pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante da Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, por força do disposto na alínea c) do n.º 3 do respectivo art. 4.º, tais membros encontram-se adstritos ao dever de renovação da declaração de rendimentos, património e cargos sociais nos termos prescritos nos n.º s 1, 3 e 4, art. 2.º do referido diploma.
c) O director-delegado dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … do Município de … encontra-se abrangido pelo disposto na alínea f) do n.º 3 do art. 4º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na redacção conferida pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro, e, consequentemente, sujeito ao dever de apresentação da declaração de rendimentos, património e cargos sociais, previsto no art. 1.º do referido diploma, bem como ao da sua renovação nos termos prescritos nos n.º s 1, 3 e 4 do respectivo art. 2.º. – Carlos Pamplona de Oliveira – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Ana Maria Guerra Martins – José Borges Soeiro – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.