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Processo n.º 1215/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a), do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 19 de setembro de 2013, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do artigo 258.º, n.º 4 do CIRE. Pretende-se, pois, ver apreciada a constitucionalidade deste normativo, quando interpretado “no sentido de não permitir o recurso, pelos devedores, da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado”, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
2. No processo de insolvência que deu causa aos presentes autos, foram os ora recorridos declarados insolventes, tendo sido apresentado plano de pagamento aos credores, em conformidade com o que havia sido deliberado pela assembleia de credores. Citados para se pronunciarem, os credores vieram manifestar a sua oposição ao plano. No seguimento, os devedores peticionaram o suprimento da aprovação dos credores, pedido esse que foi indeferido, motivando o recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora.
Todavia, por despacho de 4 de fevereiro de 2013, o tribunal recorrido indeferiu o requerimento de interposição de recurso (fls. 50), ao qual se seguiu a reclamação para o tribunal ad quem, nos termos do artigo 688.º do Código de Processo Civil (CPC). Por acórdão de 19 de setembro de 2013, o Tribunal da Relação de Évora desaplicou ao presente caso o artigo 258.º, n.º 4 do CIRE, por violação dos artigos 2.º, 13.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP, e, por conseguinte, deferiu a reclamação deduzida. Louvou-se, para tanto, no seguinte arrazoado:
«(…)
E desde já se diga que, a nosso ver, a norma em causa (n.º 4 do art. 258.º do CIRE), nos termos da qual “não cabe recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor”, ofende efetivamente o princípio da igualdade, estabelecido no n.º 1 do art. 13º da CRP, nos termos do qual “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
Com efeito, restringindo a norma em causa o direito do devedor de recorrer da decisão que indeferiu o pedido de suprimento de aprovação dos credores (que não aprovaram o plano de pagamento), o mesmo já não sucede em relação ao direito dos credores de recorrer da decisão que defira esse pedido de suprimento (vide Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, reimpressão, pag. 828), sendo o devedor (naturalmente a parte mais fraca na correlação de interesses e, como tal, aquele que necessita de maior proteção) colocado claramente em pé de (a nosso ver) inaceitável desigualdade.
De resto, não se pode considerar que a decisão em causa (de não suprimento) envolva interesses e direitos de menor relevância jurídica.
Conforme se refere no preâmbulo do DL 53/2004, de 18.03, “o incidente do plano abre caminho para que as pessoas que podem dele beneficiar sejam poupadas a toda a tramitação do processo de insolvência (com apreensão de bens, liquidação, etc), evitem quaisquer prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa.”
E, conforme bem se refere no despacho de 24.04.2013 proferido nesta Relação no âmbito da reclamação n.º 2043/12.2TBSTR-C.E1 (que deferiu idêntica reclamação e cuja cópia foi junta e consta de fls. 67 e sgs) “resultam inegáveis as vantagens para os devedores resultantes da aprovação do plano de pagamentos ou do suprimento dessa aprovação, porque o devedor, apesar de ser declarado insolvente não fica privado dos poderes de administração e de disposição do seu património e as sentenças de homologação do plano de pagamentos e de declaração de insolvência, bem como a decisão de encerramento do processo nem sequer são objeto de qualquer publicidade ou registo (cfr. n.ºs 4 e 5 do art. 1259º do CIRE”, pelo que “a decisão de suprimento da aprovação dos credores oponentes ao plano de pagamentos reveste-se de particular importância para os devedores, pois dela depende a homologação ou não do plano de pagamentos com as inerentes consequências na sua esfera pessoal e patrimonial, não se compreendendo ou justificando o impedimento ao recurso”.
Assim, e em consonância com aquela decisão, afigura-se-nos que, para além da violação, nos termos já supra referidos, do princípio da igualdade, estabelecido no n.º 1 do art. 13º da CRP, a norma em causa viola ainda o disposto nos seus arts. 2.º (nos termos do qual “a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado…no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais…”) e 20.º, n.º 1 (nos termos do qual “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…”).
Desta forma, impõe-se concluir no sentido da inconstitucionalidade da norma constante do n.º 4 do art. 258.º do CIRE, razão pela qual se impõe o deferimento da reclamação.
(…)»
3. O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido. Notificado para alegar, nos termos do artigo 79.º da LTC, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:
«(…)
1. A finalidade única do processo de insolvência é a satisfação dos credores que pode ser alcançada pela forma prevista nos artigos 251.º e 257.º do CIRE, ou seja, com apresentação e aprovação de um plano de pagamentos.
2. A decisão que defere o pedido de suprimento do consentimento dos credores oponentes ao plano de pagamento e consequentemente o homologa, coloca aqueles credores numa posição processual diferente daquela em que é colocado o devedor, perante uma decisão de indeferimento do pedido e a sua não homologação.
3. Essa diferença justifica que, no primeiro caso, seja admissível recurso da decisão por parte daqueles credores e que, no segundo, não o seja, por parte dos devedores.
4. A não homologação do plano tem como consequência que o processo de insolvência – que tem natureza urgente – prossiga a sua normal tramitação, gozando o devedor de todos os direitos ali consignados, designadamente o de recorrer da decisão que declara a insolvência.
5. Assim, a norma do n.º 4 do artigo 258.º do CIRE, enquanto estabelece que não cabe recurso da decisão que indefere o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor, não viola o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) nem o direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
6. Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso.
(…)»
4. Os recorridos contra-alegaram, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
«(…)
A. Determina o artigo 258.º, n.º 4, do CIRE que: “Não cabe recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor.”.
B. A decisão de não suprir a aprovação de credores pode implicar o desmoronar da vida dos Recorridos porque está em causa uma decisão que influirá necessariamente sobre a sua capacidade jurídica que ficará naturalmente limitada, para além de que implicará forçosa e necessariamente a liquidação de todo o seu ativo.
C. A irrecorribilidade da decisão de não suprimento da aprovação dos credores configura uma norma cujo teor é manifestamente inconstitucional, por violar os artigos 13.º, 18.º e 20.º, da Constituição da Republica Portuguesa, ao contrário do que defende o Ministério Público.
D. O indeferimento do pedido de suprimento da aprovação pelos credores, do plano de pagamentos tem, como efeito obrigatório, a declaração de insolvência dos Recorridos na plenitude dos seus termos, conforme previsto nos artigos 262.º, 36.º e/ou 39.º, do CIRE e não a constante do artigo 259.º, n.º 1, do mesmo Código, cujos efeitos e consequências são totalmente distintos.
E. Acresce que, contrariamente aos efeitos limitados da declaração de insolvência prevista no artigo 259.º, n.º 1, do CIRE, a declaração na plenitude do artigo 36.º, do CIRE implica a publicidade e registo nos assentos de nascimento de cada um dos Recorridos, conforme o prevê o artigo 38.º, n.º 2, al. a), do CIRE,
F. Ou seja, podemos declarar que o ESTADO e os INTERESSES IMATERIAIS dos Recorridos são fortemente alterados.
G. Ou seja, discordando frontalmente da posição assumida pelo Ministério Público, o que está em causa é muito mais profundo e relevante do que simplesmente, e recorrendo às palavras do Ministério Público “(...) apenas tem como consequência que o processo de insolvência deve continuar a sua normal tramitação.”.
H. O facto de o processo seguir os termos normais de um processo de insolvência, acarreta consequências devastadoras para os Recorridos, que vão assistir à privação de administração dos seus bens, à apreensão e consequente liquidação do seu ativo, para além de assistirem à publicidade e registo nos assentos de nascimento de cada um dos Recorridos, da sua situação de insolvência.
I. Ainda no seguimento das alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público, não podem os Recorridos deixar de discordar frontalmente com a tese perfilhada quanto ao grau de recurso expandida em tais alegações.
J. A tese defendida pelo Ministério Publico de que sempre podem os Recorridos recorrer, na sentença de declaração de insolvência, da não homologação do plano de pagamentos, estando, assim, garantido, um grau de recurso, não encontra qualquer apoio na letra da lei – antes pelo contrário face ao que dispõe o artigo 258º nº 4 do CIRE, nem tão pouco no seu espírito.
K. Ora, parece evidente que o recurso da sentença de declaração de insolvência não é o local próprio para a interposição de recurso de não homologação do plano de pagamentos.
L. E, mesmo que se admitisse, por mero raciocínio académico, tal eventualidade, NUNCA tal recurso poderia incidir sobre o indeferimento do pedido de suprimento, pois tal análise estaria sempre coartada pelo disposto no artigo 258º nº 4 do CIRE.
M. Os argumentos a invocar para refutar tal sentença de declaração de insolvência, em nada são semelhantes com a falta de suprimento, e consequente não aprovação e homologação do plano de pagamentos.
N. São realidades distintas, são matérias diferentes, sendo que não se percebe como se pode recorrer, da sentença de declaração de insolvência – sentença esta que declara a insolvência dos Recorridos, com os efeitos previstos no artigo 36.º, do CIRE, sendo, pois, uma sentença “plena” – com base na não aprovação do plano de pagamentos!
O. Bem visto está que o recurso é votado ao insucesso por se misturar matérias que em são absolutamente diferentes e tratadas de forma bastante distinta no CIRE...
P. Em face do exposto, torna-se impossível entender e aceitar o entendimento perfilhado pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público que não terá apreendido, de forma conveniente, o mecanismo do plano de pagamentos, ao declarar que o não suprimento do plano de pagamentos é recorrível na sentença de declaração de insolvência...
Q. A decisão de não suprimento da aprovação dos credores não admite recurso e é contra essa impossibilidade de recurso que os Recorridos se insurgem.
R. Esta falta de entendimento vai acarretar a insolvência de uma família, vendo-se os Recorridos confrontados com a apreensão e ulterior liquidação de todos os bens por parte do Administrador da Insolvência, e mais, ficam os Recorridos privados da administração dos seus bens. (v.g. artigo 38.º, al. g, do CIRE).
S. A vida deste agregado familiar vai ser forte e radicalmente alterada.
T. Este agregado familiar vai perder TODOS OS SEUS BENS.
U. Temos que é entendimento do Digníssimo Magistrado do Ministério Público de que os Recorridos não sofrem qualquer alteração na sua esfera de direitos com a decisão de indeferimento.
V. Como é possível tal conclusão ser alcançada se uma vez aprovado e homologado o plano de pagamentos, os Recorridos mantêm a administração dos seus bens, mantêm a sua posse e propriedade, não sofrendo alterações a nível familiar, designadamente com venda de bens que são evitadas ou mesmo inexistentes, mantendo todo o agregado familiar a sua residência habitual, facto deveras importante,
W. Ao passo que sendo declarados insolventes ao abrigo do que determina o artigo o artigo 36.º, do CIRE, desde logo, todos os seus bens são apreendidos, vendidos, perdendo os Recorridos todo e qualquer poder de administração sobre tais bens, vendo a sua vida devassada mediante publicidade da sua declaração de insolvência, tendo de ser alterada a residência pois será a mesma liquidada, com todas as consequências emocionais e familiares que tal acarreta e que não pode ser, reiteradamente, descurado e relegado para segundo plano.
X. Estamos a falar da vida de um pai, de uma mãe e dos seus filhos, e isto tem de ser acautelado, mediante a possibilidade de apresentação de recurso de uma decisão de não suprimento da aprovação dos credores, sob pena do total descrédito da justiça, por parte dos cidadãos!
Y. Deve ser sempre assegurado um grau de recurso em todas as decisões que não se perfilhem como de mero expediente, como é o caso “sub judice”, para além de que na situação expressa no artigo 259.º n.º 3, do CIRE, está prevista a possibilidade de interposição de recurso da sentença homologatória do plano de pagamentos por parte de credores e independentemente do seu valor,
Z. Facto que configura uma manifesta violação do principio da igualdade, pois, por um lado não é permitido aos devedores recorrer da decisão de não suprimento da aprovação dos credores que fará desmoronar o “modus vivendi” do seu agregado familiar, com todos os traumas daí decorrentes e que na pratica significa a não homologação do plano de pagamentos por si apresentado,
AA. Ora, com o devido respeito, a desigualdade é patente, estando assim o artigo 258.º, n.º 4, do CIRE, ferido de manifesta inconstitucionalidade.
BB. Com efeito, ponderados os valores que se encontram em causa, por um lado a VIDA e o “modus vivendi” de um agregado familiar com filhos menores e, por outro lado, um mero crédito reclamado a ser ou não ressarcido, não se entende e não se ode aceitar. à luz da mais elementar noção de Justiça, a disparidade de tratamento entre Devedores e os credores,
CC. Assim sendo, forçoso será concluir que não é constitucionalmente tolerável que o legislador ordinário elimine simplesmente a possibilidade de recurso no caso em apreço!
DD. No sentido da inconstitucionalidade da não possibilidade de recurso já esse Tribunal Constitucional se pronunciou em Acórdão proferido com o n.º 360/05, que determinou que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações de ordem económica, o acesso a um grau de jurisdição.
EE. Mas, se a lei previr que o acesso à via judiciária se faça em mais que um grau, tem o legislador que abrir a todos também essas vias judiciárias, garantindo que o acesso a elas se faça sem qualquer discriminação, conforme decorre do Acórdão desse mesmo Tribunal, proferido em 23 de maio de 1990, com o n.º 163/90.
FF. Acrescenta, ainda esse Tribunal Constitucional, em Acórdão proferido em 6 de abril de 1999, com o n.º 202/99, que a margem de discricionariedade que o legislador ordinário tem, contudo, como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material, de forma a assegurar a manutenção do princípio da igualdade.
GG. Finalmente, a disparidade de tratamento, supra exposta, viola frontalmente o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa quando esta refere que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
HH. De igual forma, tem-se por violado o disposto no artigo 18.º, n.º 2 do Diploma Fundamental quando este dispõe que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
II. E, finalmente, encontram-se violados os n.ºs 4 e 5, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa quando enunciam que “Todos têm direito a quem uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” e que “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
JJ. Assim e em consequência impõe-se a apreciação a análise do teor do aludido artigo 258.º, n.º 4, do CIRE concluindo-se pela sua evidente e manifesta inconstitucionalidade,
KK. Não devendo o recurso interposto pelo Ministério Público merecer provimento, devendo, consequentemente, ser declarada a inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 258.º, n.º 4, do CIRE.
(…)»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. O objeto do presente recurso de constitucionalidade é integrado pela norma do n.º 4 do artigo 258.º do CIRE, quando interpretada no sentido de não permitir o recurso pelos devedores da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado, cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo, com fundamento em violação dos artigos 2.º, 13.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP.
Assim delimitada, constata-se que esta é uma questão cuja constitucionalidade já foi apreciada pela 1.ª Secção deste Tribunal, no acórdão n.º 69/14 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), cuja fundamentação importa, no essencial, recuperar:
«(…)
12. Na análise a empreender da conformidade constitucional do critério normativo adotado importa começar por sublinhar que a finalidade do processo de insolvência é a satisfação dos credores (artigo 1.º do CIRE).
Como acima se começou por referir, a especialidade do regime específico da insolvência dos devedores não empresários ou titulares de pequenas empresas reside na possibilidade de apresentação pelo devedor de um plano de pagamento aos seus credores.
Apesar de o plano de pagamentos não ter um conteúdo típico definido na lei, ele não pode deixar de prosseguir o único fim para que é instituído. E este, como já acima assinalado, é a satisfação dos interesses dos credores. Nos termos do artigo 252.º, n.º 1 do CIRE «o plano de pagamentos deve conter uma proposta de satisfação dos direitos dos credores que acautele devidamente os interesses destes, de forma a obter a respetiva aprovação, tendo em conta a situação do devedor» (sublinhado nosso). Assim, ainda que por recurso a um critério pragmático, o CIRE não deixa de indicar o grau de satisfação dos credores que o plano de pagamentos tem necessariamente de assegurar.
Como salientado por Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., p. 812:
«Em termos concretos, pode dizer-se que o legislador indica aqui ao devedor dois critérios a que deve atender na formulação da proposta do plano de pagamentos a apresentar aos seus credores: um absoluto e outro relativo.
Segundo o primeiro, as medidas do plano devem ser tais que assegurem aos credores a satisfação dos seus interesses em medida que os leve a aceitá-lo, por ser, pelo menos, correspondente à satisfação que o prosseguimento do processo de insolvência, nas suas várias fases, razoavelmente acarretaria.
O grau de satisfação dos interesses dos credores não pode deixar de ter em conta a situação patrimonial do devedor. Está aqui presente uma ideia de proporcionalidade, no sentido de aquilo que o plano oferece aos credores deve ser aferido em função do que eles poderiam esperar receber, atendendo a essa situação».
Conclui-se, assim, que o plano de pagamentos tem necessariamente de ter um conteúdo que permita a aprovação dos credores. É este o seu objetivo. Pelo que constitui interesse do devedor apresentar um plano que permita aos credores, tendo em conta a situação económica daquele, preferir a sua aprovação a correr os riscos inerentes à prossecução dos trâmites normais do processo de insolvência.
O suprimento da aprovação dos credores surge, pois, apenas num segundo momento, depois de apresentado o plano, e pressupõe a aprovação de credores que representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor. Apesar de poder ser requerido pelo devedor (como por qualquer dos credores que aprovam o plano) o deferimento do suprimento da vontade dos credores, tal como a aprovação do plano de pagamentos, não configuram direitos subjetivos (de tipo potestativo) deste. Apenas se estiverem reunidos os pressupostos previstos nas alíneas do n.º 1 do artigo 258.º do CIRE, o tribunal poderá suprir a aprovação dos demais credores, o que exige do juiz uma complexa avaliação dos dados disponíveis, necessariamente caraterizados ainda por uma forte incerteza em função da fase em que o processo se encontra (desde logo, perante a suspensão do processo de insolvência, os elementos disponíveis quanto à situação do devedor são apenas os fornecidos por este nos anexos ao plano apresentado).
Se o plano de pagamentos não for aprovado, os autos retomam os trâmites normais do processo de insolvência, sendo reconhecido ao devedor o direito de recorrer da decisão que declarar a sua insolvência, nos termos gerais.
13. Não se olvida que o indeferimento do pedido de suprimento da vontade de credores oponentes do plano conduz à não homologação do plano de pagamentos e esta acarreta consequências para o devedor. Com efeito, a não aprovação do plano de pagamentos implica a retoma dos termos do processo de insolvência, cessando a suspensão determinada pela decisão prevista no artigo 255.º, n.º 1 do CIRE. O processo segue, então, com a prolação da sentença de declaração de insolvência (artigo 262.º do CIRE), a menos que, ao apresentar o plano de pagamentos o devedor tenha desde logo declarado que, no caso de não aprovação do plano, pretende a exoneração do passivo restante. Nesta situação é aberto o incidente regulado nos artigos 235.º e seguintes, do CIRE (v. artigo 254.º).
Ora, é inegável a mitigação dos efeitos da declaração da insolvência na sequência de aprovação do plano de pagamentos, quando comparada com a insolvência declarada sem a aprovação de um tal plano. Tenha-se em consideração, em especial, que no caso de aprovação do plano de pagamentos por si apresentado, o devedor não é inibido da administração e disposição dos seus bens, não é aberto o incidente de qualificação da insolvência, nem a sentença é objeto de qualquer publicidade. Estes efeitos não constituem, porém, direitos do devedor, antes configuram consequências da apresentação pelo mesmo de um plano de pagamentos que reuniu a aprovação dos credores, seguramente, por satisfazer os interesses destes.
De todo o modo, as consequências para o devedor da não aprovação do plano que apresentou não integram o conteúdo da decisão de não suprimento da vontade de qualquer credor. Elas surgem apenas como resultado dos atos processuais subsequentes no encadeado lógico que compõe o processo de insolvência e, como tal, não podem deixar de ser avaliadas na ponderação dos equilíbrios que ali se jogam. Numa tal ponderação impõe-se com particular relevo a natureza urgente do processo falimentar.
14. A promoção da celeridade do processo de insolvência encontra, de há muito, reconhecimento pelo legislador infraconstitucional, enquanto fator decisivo de implementação de eficácia num procedimento que tem como principal objetivo a satisfação, pela forma mais eficiente, dos direitos dos credores. Como salientado por MENEZES CORDEIRO (“Introdução ao Direito da Insolvência”, O Direito, 137.º, 2005, III, p. 480), «Podem ocorrer questões prévias, prejudiciais ou preliminares que, sendo consideradas – como não deixarão de ser, desde que pertinentes – alongam desmesuradamente todo o processo. Ao apontar, entre os processos especiais, a falência, o Direito Processual procurou apurar uma metodologia que acelere e simplifique as operações da liquidação de patrimónios, nela subjacentes».
Operando como uma ação executiva universal e coletiva em que se jogam interesses contrapostos não apenas entre o insolvente e os credores, como também dos diversos credores entre si, o processo de insolvência exige, com efeito, uma tramitação célere e simplificada.
A apresentação de plano de pagamentos constitui uma faculdade atribuída ao devedor tendente a obviar à normal tramitação do processo de insolvência, abrindo um incidente que conduz à suspensão deste. O respetivo encerramento reabre, portanto, o processo de insolvência o qual, acautelando devidamente os direitos dos credores, dispensa o recurso a medidas cautelares (artigo 31.º do CIRE), cujo decretamento e execução sempre se configuraria como necessariamente mais moroso do que o prosseguimento dos trâmites normais do processo. Acresce que, partindo do devedor a iniciativa de pedir a sua declaração de insolvência, dificilmente se configura a verificação dos requisitos gerais de decretamento de uma medida cautelar, nomeadamente o receio ou risco efetivo da prática de atos lesivos dos direitos dos credores.
No âmbito deste incidente, o legislador confiou à apreciação por um juiz, munido das garantias de independência constitucionalmente reconhecidas (artigo 203.º da Constituição), o suprimento da aprovação dos credores. Esta decisão é, pois, proferida no âmbito de um incidente do processo de insolvência que, visando obviar à tramitação normal do processo de insolvência, implica a suspensão deste. Simplesmente, para que aquela suspensão se verifique é necessário que o devedor apresente um plano de pagamentos suscetível de colher a aprovação dos seus credores. Em coerência com este desiderato, recorde-se que o juiz só suspende o processo de insolvência se não se lhe afigurar “altamente improvável que o plano de pagamentos venha a merecer aprovação” (artigo 255.º, n.º 1 do CIRE). Caso contrário, dá o incidente por encerrado sem que desta decisão caiba recurso (idem).
Nesta articulação dos vários interesses que se jogam na apreciação do pedido de suprimento da vontade de alguns credores, a operar num tempo necessariamente côngruo e no respeito pela adequada racionalização do sistema judiciário, o acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva através da apreciação num grau de jurisdição satisfaz as exigências contidas no artigo 20.º da Constituição.
15. Das considerações anteriores resulta claro que não se está perante nenhum dos casos em que a jurisprudência constitucional reconhece a exigência de um duplo grau de jurisdição – não se está no âmbito do processo penal nem se impõem restrições a direitos, liberdades e garantias. De facto, os efeitos decorrentes para o devedor, sendo-lhe favoráveis, não constituem, seus direitos mas antes consequências da faculdade de apresentação pelo mesmo de um plano de pagamentos e da reunião, por este, da aprovação dos credores. É, portanto, a esta luz – da não consagração constitucional do direito a um 2.º grau de jurisdição neste domínio, por um lado, e da proibição do arbítrio no estabelecimento do critério de recorribilidade, quando o legislador opte por abrir a possibilidade de recurso, por outro – que importa analisar o critério normativo adotado no artigo 258.º, n.º 4, do CIRE ao impedir o devedor de recorrer da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor. Com efeito, se for proferida decisão de sentido inverso, i.e., a conceder provimento ao pedido de suprimento da vontade de alguns credores, estes podem recorrer daquela decisão.
Importa, assim, verificar, se a norma em apreciação respeita o princípio da igualdade na garantia do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 13.º da Constituição). Nesta apreciação deve-se regressar à razão de ser do instituto em que se enquadra a norma em análise. E esta é o plano de pagamentos aos credores.
16. Sendo para satisfação dos direitos dos credores que a lei prevê a apresentação de plano de pagamentos por parte do devedor (artigo 251.º do CIRE), compreende-se que a admissibilidade deste plano de pagamentos dependa da aprovação daqueles. A oposição de alguns credores pode ser suprida por decisão do juiz. Mas, este suprimento está também limitado pela verificação de determinados requisitos previstos na lei, designadamente no artigo 258.º, n.º 1, do CIRE. Desde logo, se o plano não for aceite pela maioria qualificada de dois terços do valor total dos créditos, o juiz não pode suprir a aprovação dos credores oponentes.
Pelo contrário, se nenhum credor recusar o plano de pagamentos ou a oposição de alguns (não podendo representar mais de um terço do valor total dos créditos), for objeto do necessário suprimento judicial, o plano é tido por aprovado. Neste caso, a modalidade de satisfação dos respetivos créditos é imposta aos credores oponentes, o que justifica o direito destes ao recurso, expressamente acautelado no artigo 259.º, n.º 3 do CIRE.
Ao negar o recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento da vontade de qualquer credor, a norma em análise não institui diferença de tratamento entre os devedores e os demais credores que deram a sua aprovação ao plano de pagamentos. O recurso é vedado tanto ao devedor como aos credores que aprovaram o plano. A diferença surge apenas na permissão de recurso aos credores oponentes do plano cuja vontade é suprida pela decisão judicial.
Ora, do regime legal descrito decorre que a decisão judicial de suprimento da aprovação do plano de pagamentos, e sua consequente homologação, coloca os credores oponentes numa posição processual particular que não encontra paralelo nem na posição dos demais credores, que deram o seu assentimento ao plano, nem na posição do devedor que o propôs.
Tão-pouco existe paralelo com a posição jurídico-processual que para o devedor deriva do indeferimento do pedido, por si apresentado, de suprimento da aprovação de alguns credores. É que neste caso, o processo de insolvência segue os seus termos normais, gozando os devedores de todos os direitos previstos no CIRE, entre os quais se conta, designadamente, o direito de recorrer da decisão que vier a declarar a insolvência.
Diferentemente dos credores, cuja oposição ao plano de pagamentos é suprida por decisão do juiz (e, nessa medida, veem o seu direito de crédito modelado ou restringido contra a sua vontade), o devedor, que não veja deferido o pedido de suprimento da vontade dos credores oponentes do plano, não sofre qualquer alteração na sua esfera de direitos com a decisão de indeferimento.
Esta diferença afasta a verificação de arbítrio no reconhecimento de direito ao recurso apenas aos primeiros, não se apresentando como discriminatória a diferença de tratamento assinalada. O legislador limitou-se a instituir vias de solução diferentes para situações também elas diferentes, abrindo o acesso ao recurso apenas àqueles a quem a decisão judicial (neste caso de suprimento de vontade) impõe uma restrição na sua esfera de direitos.
Não há, assim, um tratamento discriminatório na norma em análise que desrespeite o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
17. Em conclusão, não impondo o direito de acesso aos tribunais a garantia do acesso a diferentes graus de jurisdição, assistindo ao legislador ordinário, no âmbito do processo de natureza civil, uma margem ampla de liberdade na conformação do direito ao recurso, e não podendo qualificar-se como arbitrário ou desprovido de justificação objetiva, o não reconhecimento ao devedor do direito ao recurso da decisão que indefere o suprimento da aprovação de qualquer credor, e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado, decorrente do artigo 258.º, n.º 4 do CIRE, não se mostram violadas as disposições dos artigos 2.º, 13.º ou 20.º da Constituição.
(…)»
6. Ora, sendo a fundamentação supra transcrita plenamente transponível para os presentes autos, e não se verificando quaisquer circunstâncias que justifiquem o seu afastamento, há que reiterar o juízo de não inconstitucionalidade ali proferido e, por conseguinte, conceder provimento ao recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público.
III. Decisão
7. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 258.º do CIRE, na interpretação segundo a qual não é permitido o recurso pelos devedores da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor, e, consequentemente, da sentença não homologatória do plano apresentado;
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 25 de março de 2014.- José da Cunha Barbosa – Maria de Fátima Mata-Mouros –João Caupers – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.