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Processo n.º 627/2007
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, A. intentou junto do Supremo Tribunal Administrativo acção administrativa especial em que pedia a anulação dos actos administrativos formalizados no acórdão da Secção Disciplinar do Conselho Superior do Ministério Público, de 04.05.2004, e no acórdão do Plenário desse mesmo Conselho, datado de 22.11.2004, ambos proferidos no âmbito do processo disciplinar em que o Autor é arguido.
No primeiro desses acórdãos, integralmente confirmado pelo segundo, foi aplicada ao arguido, pela prática de infracção reveladora de grave desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais, a pena de inactividade por doze meses, com o efeito de perda de tempo correspondente à sua duração quanto à remuneração, antiguidade e aposentação, bem como a impossibilidade de promoção ou acesso durante dois anos contados do cumprimento da pena.
Por acórdão da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 22.02.2006, foi a acção julgada improcedente.
Inconformado, A. interpôs recurso para o Pleno da Secção.
Por acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 06.03.2007, foi negado provimento ao recurso.
2. Dessa decisão, veio A. interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Através dele pretende o recorrente que seja apreciada a constitucionalidade das seguintes normas:
a) artºs. 202.º e 203.º, ambos da Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto (EMP), interpretados no sentido de o relatório elaborado no fim da instrução do processo disciplinar não dever ser notificado ao arguido antes da decisão final, por violação dos princípios da defesa e do contraditório, consagrados no artº 32.º, n.º 10, da Constituição;
b) artºs. 4.º, n.º 1, als. a) e c), e 24.º, n.º 1, al. ix), ambos da Lei n.º 13/02, de 19 de Fevereiro (ETAF), e 46.º, n.º 2, al. a), 50.º, n.º 1, e 51.º, n.º 1, todos da Lei n.º 15/02, de 22 de Fevereiro (CPTA), interpretados no sentido de nos recursos de decisões proferidas em processos disciplinares o tribunal não poder conhecer da gravidade da pena aplicada, por prolação dos artºs. 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição (princípio da jurisdição amplas);
c) artºs. 163.º e 183.º, n.º 1, ambos do EMP, por violação dos princípios da determinabilidade e da precisão das leis punitivas, da tipicidade e da segurança e confiança jurídicas, bem como da igualdade e imparcialidade, consagrados nos artºs. 2.º, 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 29.º, n.º 1 e 266.º, n.º 2, todos da Constituição;
d) artºs. 166.º, n.º 1, al. e), 170.º, n.ºs 1 e 3, 172.º, 176.º, n.ºs 1 e 2, e 183.º, n.º 1, todos do EMP, por preverem a pena de inactividade com efeitos excessivamente graves e desproporcionais, violando os princípios da dignidade da pessoa humana, da proibição do excesso, da proibição da fixidez das penas, da justiça e da necessidade das penas, consagrados nos art.ºs 1.º, 2.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2 e 3, 29.º, n.º 1, 30.º, n.º 1, e 266.º, n.º 2, todos da Constituição, 11.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e 25.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
e) artºs. 172.º, 175.º, n.ºs 1 e 3, al. a), e 176.º, n.º 1, por colidirem com os princípios da proporcionalidade, da fixidez das penas, da igualdade e da proibição dos efeitos automáticos das penas, bem como do direito à remuneração, acolhidos nos artºs. 13.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2 e 3, 30.º, n.ºs 1 e 4, 59.º, n.º 1, al. a), e 266.º, n.º 2, todos da Constituição;
f) art.ºs 81.º, n.º 1, 163.º e 216.º, todos do EMP, em conjugação com os art.ºs 24.º, n.º 1, al. c), e 25.º, n.º 2, al. d), ambos do Dec-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, interpretados no sentido de estes dois últimos normativos não serem subsidiariamente aplicáveis em processo disciplinar em que o arguido é magistrado do MP, por violação dos princípios da justiça, da dignidade da pessoa humana, da segurança e confiança jurídicas, da igualdade, da proibição do excesso, da fixidez das penas e da imparcialidade, consagrados nos art.ºs 1.º, 2.º, 13.º, n.º1, 18.º, n.ºs 2 e 3, 30.º, n.º 1, e 266.º, n.º 2, todos da Constituição; e
g) artºs. 33.º, n.º 1, do Dec-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, 216.º do EMP e 50.º, n.º 1, do CP, interpretados no sentido de este último normativo não ser subsidiariamente aplicável em processo disciplinar em que o arguido seja magistrado do MP, de modo a que a não-suspensão de execução deva ser fundamentada, por violação dos princípios da confiança e confiança jurídicas, da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, consagrados nos art.ºs 2.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 266.º, n.º 2, todos da Constituição.
Afirma o recorrente que a inconstitucionalidade das normas indicadas em a), c), d), e), f) e g) foi suscitada na alegação de recurso para o Pleno da 1.ª Secção do STA (na fundamentação e nas conclusões). Já no que respeita às normas indicadas em b), que, no entender do recorrente, o STA teria interpretado implicitamente e de modo insólito no sentido de lhe vedarem o conhecimento da gravidade da pena, afirma o recorrente que deve ser dispensado do ónus de suscitação prévia.
3. Admitido o recurso no Tribunal, aí apresentou o recorrente as suas alegações, concluindo do seguinte modo:
1ª
Por não lhe ter sido dado conhecimento do relatório elaborado no fim da instrução desenvolvida no processo disciplinar antes da decisão punitiva, o recorrente não pôde pronunciar-se utilmente sobre o conteúdo do mesmo e contrariar as respectivas afirmações e conclusões.
2ª
Porém, ao recorrente assistia-lhe o direito, garantido por princípios e normas constitucionais, de se defender e pronunciar-se sobre o conteúdo do relatório, discretando sobre o mesmo e contrariando os juízos de valor, as afirmações e as conclusões nele expostas em seu desfavor.
3ª
Se tivesse tido conhecimento do relatório logo que o mesmo foi elaborado, teria, além do mais, demonstrado que a infracção considerada era de menor gravidade, só podendo ser sancionada com a pena de suspensão, prevista nos arts. 163º do EMP e 24º, nº 1, al. c), do Decreto-Lei nº 24/84, e não com a pena prevista no subsequente art. 25º, nº 2, al. d).
4ª
Por ter julgado com legitimidade constitucional os arts. 202º e 203º do EMP, o acórdão recorrido não declarou a nulidade insuprível prevista no subsequente art. 204º, pelo que o recorrente viu os seus direitos de defesa e do contraditório drasticamente restringidos.
5ª
Ao não imporem a notificação do relatório antes da decisão final e interpretados nesse sentido, os citados arts. 202º e 203º violam o princípio do contraditório, derivado do Estado de direito democrático (art. 2º), o princípio do acesso aos tribunais (art. 20º, nº 1), o princípio de um processo equitativo (art. 20º, nº 4), o princípio da igualdade (art. 13º) e o direito de defesa (arts. 32º, nº 10, e 269º, nº 3, todos da Constituição).
6ª
No acórdão recorrido declarou-se que o tribunal não podia substituir-se à Administração no conhecimento e apreciação da gravidade da infracção e da pena aplicada, tendo interpretado e aplicado implicitamente os arts. 4º, nº 1, als. a) e c), e 24º, nº 1, al. ix), ambos da Lei nº 13/02, de 19 de Fevereiro, e 46º, nº 2, al. a), 50º, nº 1 e 51º, nº 1 todos da Lei nº 15/02, de 22 de Fevereiro, no sentido de lhe vedarem esse conhecimento e apreciação.
7ª
Tal interpretação foi inesperada, surpreendente e insólita, tanto mais que o Tribunal Constitucional já havia julgado e declarado inconstitucionais algumas normas que vedavam, em sede de recurso, o conhecimento da gravidade da infracção e da pena aplicada.
8ª
Quando interpretados no sentido em que o foram no acórdão recorrido, os citados normativos violam o princípio da defesa consagrado os arts. 32º, nº 10, e 269º, nº 3, e o princípio da tutela jurisdicional efectiva, com guarida no art. 268º, nº 4, todos da Constituição.
9ª
Os arts. 163º e 183º, nº 1, ambos do EMP, estão redigidos de modo muito genérico, vago, impreciso, indeterminado e incerto, contendo conceitos de tal modo abstractos que não é possível saber, objectivamente, que condutas humanas concretas cabem nas suas previsões.
10ª
Os mesmos, “passando um cheque em branco” à entidade que detém o poder disciplinar, permitem-lhe que classifique como infracção todas e quaisquer condutas, mesmo que por critérios objectivos sejam claramente inofensivas, procedendo com toda a arbitrariedade, irrazoabilidade e discricionariedade.
11ª
Existem estatutos disciplinares de outros agentes do Estado que, ao contrário do EMP, contêm uma definição mais precisa de infracção, sobretudo quando se trata de prever penas mais graves, como é a de inactividade, especificando as condutas concretas às quais são aplicáveis, do que resulta um desfavor injustificado para o recorrente.
12ª
Pela forma como estão redigidos e também se interpretados no sentido de conterem uma definição clara e suficiente de infracção, os arts. 163º e 183º, nº 1, os princípios da segurança e da confiança jurídicas que emanam do Estado de direito democrático (art. 2º), da proporcionalidade ou da proibição do excesso (art. 18º, nºs 2 e 3), da tipicidade, da determinabilidade e da precisão das leis punitivas (art. 29º, nº 1), da igualdade (art. 13º) e da boa fé (art. 266º, nº 2), todos da Constituição.
13ª
A pena aplicada, com as penas acessórias que lhe estão ligadas, se tiver que ser cumprida, priva o recorrente dos meios mínimos necessários à sua sobrevivência e da sua família, retirando-lhe a alimentação, vestuário e alojamento de que precisa.
14ª
A pena de inactividade, pelas consequências drásticas decorrentes do seu cumprimento, é mais grave do que a aposentação compulsiva e a demissão e do que qualquer pena de natureza criminal, incluindo a prisão efectiva, pelo que não pode deixar de se considerar desumana, infamante e degradante.
15ª
De facto, o agregado familiar do recorrente, composto por três pessoas, sendo uma estudante e outra aposentada por invalidez, ficará com o rendimento mensal de 699,76 euros, insuficiente para custear só os encargos relativos à habitação, sendo que as suas despesas mensais ascendem a 2.565,00 euros.
16ª
Ao contrário do que se afirma no acórdão recorrido, o recorrente não tem direito a quaisquer apoios sociais, nomeadamente ao subsídio de desemprego, ao rendimento social de reinserção ou à pensão social, pelo que apenas lhe resta a caridade alheia.
17ª
Alguns estatutos disciplinares de outros agentes do Estado não prevêem a pena de inactividade, por se considerar desnecessária, enquanto outros a prevêem mas fixam-lhe uma duração mais curta do que o EMP e não estabelecem consequências tão drásticas, como é a perda do vencimento.
18ª
Ao estabelecer tal diferenciação, sem justificação, o legislador do EMP procedeu com arbítrio, irrazoabilidade e discricionariedade, tratando de modo diferente e mais penalizador para o recorrente situações que em tudo são iguais.
19ª
Por preverem a pena de inactividade e interpretados no sentido de a mesma poder ser aplicada ao recorrente, sem meios de subsistência próprios provenientes de fontes diversas da do trabalho e estando integrado num agregado familiar que, sem o seu vencimento, ficará com um rendimento “per capita” inferior ao salário mínimo nacional, os arts. 166º, nº 1, al. e), 170º, nºs 1 e 3, 172º, 175º, nºs 1 3, als. a) e b), 176º, nº 1, e 183º, nº 1, colidem com os arts. 1º, 2º, 13º, 18º, nºs 2 e 3, 25º, nº 2, 26º, nº 1, 29º, nº 1, 30º, nº 1, 47º, nº 1, 53º, 59º, nº 1, al. a), todos da Constituição, 11º, nº 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, 25º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 1º, 4º, 34º, nº 3 e 49º, nº 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
20ª
Os arts. 172º, 175º, nºs 1 e 3, al. a), e 176º, nº 1, todos do EMP, dispõem que a aplicação da pena de inactividade produz a perda das remunerações, antiguidade e aposentação durante o seu cumprimento, bem como a impossibilidade de promoção ou acesso durante dois anos contados do termo do cumprimento da mesma.
21ª
Tais efeitos são automáticos, resultando inexoravelmente da lei e da aplicação da pena, mesmo que na decisão punitiva nada se dissesse a tal propósito, e não é permitida qualquer margem de apreciação no sentido de graduar e adaptar as consequências ao caso concreto.
22ª
Sendo assim, e porque, ao contrário do que se afirma no acórdão recorrido, são afectados direitos profissionais, os citados normativos violam os arts. 1º, 2º, 13º, 18º, nºs 2 e 3, 29º, nº 1, 30º, nºs 1 e 4, 53º, 59º, nº 1, al. a), e 266º, nº 2, todos da Constituição.
23ª
Ao desenvolver a actividade que considerou integrar a infracção pela qual foi punido, o recorrente limitou-se a advogar em causa própria e do seu cônjuge, defendendo os seus legítimos interesses.
24ª
A situação é muito diferente daquela que se verificaria se tivesse exercido, de modo regular e remunerado, a advocacia, dando aconselhamento jurídico num escritório ou consultadoria jurídica numa empresa, nos finais de tarde, estabelecendo um vínculo contratual e cobrando honorários.
25ª
A infracção que se considerou cometida resultou mais do facto de o recorrente não ter pedido autorização superior para exercer a actividade que exerceu, pelo que a sua conduta apenas pode cair, quanto muito, na previsão dos arts. 81º, nº 1, e 163º, nº 1, ambos do EMP, conjugados com o disposto no art. 24º, nº 1, al. c), do Decreto-Lei nº 24/84, punível com pena de suspensão, mais branda do que a inactividade.
26ª
A pena de inactividade só será aplicável se o recorrente tivesse solicitado autorização e a entidade competente reconhecesse, em despacho fundamentado, a incompatibilidade entre o exercício da advocacia em causa própria e a função de magistrado do MP, como estabelece o subsequente art. 25º, nº 2, al. d), que o acórdão recorrido declarou não ser subsidiariamente aplicável “ex vi” do art. 216º do EMP.
27ª
Os arts. 81º, nº 1, 163º e 216º, todos do EMP, 24º, nº 1, al. c), e 25º, nº 2, al. d), citados, quando interpretados no sentido de estes dois últimos normativos não serem subsidiariamente aplicáveis em processo disciplinar instaurado contra magistrado do MP colidem com os princípios da justiça, da dignidade da pessoa humana, da segurança e da confiança jurídicas, da igualdade, da proporcionalidade, da fixidez e da necessidade das penas, da segurança no emprego, do direito ao trabalho e da imparcialidade, consagrados nos arts. 1º, 2º, 13º, 18º, nºs 2 e 3, 29º, nº 1, 30º, nº 1, 53º, 58º, nº 1, e 266º, nº 2, todos da Constituição.
28ª
O recorrente desenvolveu toda a sua actividade considerada desviante fora do âmbito das suas funções de magistrado, ao que acresce que é pontual, assíduo e zeloso na execução do seu serviço, não tendo sido suficientemente valoradas as circunstâncias que envolvem a situação.
29ª
Interpretados no sentido de a pena de inactividade ser adequada para sancionar a conduta do recorrente, com todas as circunstâncias que a envolvem, os 163º, 166º, nº 1, al. e), 170º, nºs 1 e 3, 175º, nºs 1 e 3, al. a), 176º, nº 1, 183º, nº 1, e 185º, todos do EMP, violam os princípios da justiça, da proporcionalidade, da necessidade das penas e da proibição de penas degradantes e desumanas, consagrados nos arts. 1º, 2º, 18º, nºs 2 e 3, 30º, nº 1, e 25º, nº 2, todos da Constituição, 1º e 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
30ª
Estando o recorrente familiar, social e profissionalmente bem integrado, com bons hábitos de trabalho e sem qualquer condenação anterior, criminal ou disciplinar, se fosse julgado por qualquer crime e lhe fosse aplicada pena não superior a cinco anos de prisão, tinha a suspensão de execução da pena garantida, ou a justificação da não-suspensão.
31ª
O acórdão recorrido interpretou os arts. 216º do EMP, 33º, nº 1, do Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e 50º, nº 1, do CP no sentido de este último normativo não ser subsidiariamente aplicável em processo disciplinar instaurado contra magistrado do MP e, por isso, a pena aplicada não poder ser suspensa na sua execução e não ter que ser fundamentada a não-suspensão.
32ª
Porém, assim interpretados, os citados normativos violam os princípios da segurança e confiança jurídicas, da igualdade, da proporcionalidade ou da proibição do excesso e da imparcialidade, acolhidos nos arts. 2º, 13º, 18º, nºs 2 e 3, e 266º, nº 2, todos da Constituição.
33ª
Assim, devem julgar-se inconstitucionais todas as normas do EMP, do Decreto-Lei nº 24/84 e do CP referidas nas conclusões anteriores, dando-se provimento ao recurso, e ordenar-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade emitido.
4. Contra-alegou o recorrido, vindo dizer o seguinte:
1°
O Autor reedita, sem alterações relevantes para o conhecimento do objecto do presente recurso jurisdicional, toda a matéria alegada em sede (de petição e de alegação) da Acção que intentou contra o CSMP e que o douto Acórdão que ora impugna julgou improcedente, mantendo as deliberações disciplinares que lhe impuseram a pena disciplinar de inactividade pelo período de 12 meses.
2°
Ao contrário do que defende, o douto Acórdão recorrido não enferma dos vícios que lhe imputa. Na verdade,
3º
Nenhum dos normativos da lei ordinária aplicados na decisão recorrida conflitua com qualquer princípio ou norma constitucional. Procurando seguir a ordem pela qual foram arguidas e abordadas as várias questões a abordar no presente recurso o CSMP REAFIRMA que:
4°
Não se verifica a NULIDADE INSUPRÍVEL decorrente da alegada não audição do Recorrente sobre o Relatório final elaborado no termo da instrução do processo disciplinar: foi notificado da acusação, na qual se articulava toda a matéria integradora da infracção, a subsunção da mesma às normas legais violadas e a pena aplicável. E
5º
Defendeu-se invocando que não agiu por interesses económicos, pronunciando-se sobre os juízos de valor do Instrutor do processo acerca do seu comportamento com relevo para a punição e admitiu expressamente o cometimento da infracção. Sustentou a atenuação especial da pena, que veio a ser contemplada, pois que a sanção proposta pelo Instrutor era a de demissão. Acresce que
6º
O Relatório do processo disciplinar “...não contém imputações omitidas na acusação, com influência na punição aplicada ao arguido, ora Autor.” – sic. Acórdão da Secção do STA, pág. 21 e Acórdão do Pleno, pág. 12. Consequentemente
7º
Improcederá também a invocada inconstitucionalidade dos artigos 202° e 203° ambos do Estatuto do Ministério Público (EMP) arguida nas CONCLUSÕES 1ª a 5ª inclusive não foram restringidos os seus direitos ao exercício do contraditório “derivado do Estado de direito democrático” – sic – nem violados o princípio do acesso aos tribunais, o princípio de um processo equitativo, o princípio da igualdade e o direito de defesa consagrados, respectivamente nos artigos 2°, 20º n° 1, 20º n° 4, 13° e 32° n° 10 e 269° n° 3 todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
8°
Quanto à questão que o Recorrente designa de “PODERES DE COGNIÇÃO DO STA” levada às CONCLUSÕES 6ª a 8ª inclusive, importa esclarecer que as pronúncias do STA não podem, sem abuso, ser interpretadas no sentido defendido pelo Recorrente. Na verdade,
9°
Nem o Acórdão da Secção nem o do Pleno do STA hesitaram ou tiveram dúvidas quanto ao conhecimento da alegada desproporcionalidade da pena aplicada: afirmaram a sua conformidade legal, a sua adequação e proporcionalidade, o seu acerto quanto à qualificação jurídica da materialidade apurada. Ao contrário do que vem defendido
10°
O Tribunal CONHECEU da concreta medida da pena (dentro dos limites da sindicabilidade impostos pelo exercício da justiça administrativa), tendo apreciado e afirmado, a final, a justeza e o equilíbrio com que o acto contenciosamente recorrido valorou o comportamento disciplinarmente censurável do Recorrente,
11°
Comportamento esse que considerou ser revelador de grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres de um Magistrado do Ministério Público. Além disso
12°
Pronunciou-se expressamente sobre as circunstâncias atenuantes que estiveram presentes na escolha da pena e pela (ir)relevância da confissão dos factos para a descoberta da verdade. Em suma,
13°
O Tribunal ponderou, apreciou e conheceu de toda a matéria que concorreu para a determinação da concreta pena disciplinar de 12 meses de inactividade imposta ao Recorrente. Daí que o CSMP defenda
14°
A improcedência das CONCLUSÕES 6ª a 8ª inclusive da alegação de recurso , declarando-se a conformidade constitucional das normas dos artigos 4° n° 1 alíneas a) e c) e 24° n° 1 alínea ix) ambos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e dos artigos 46° n° 2 alínea a), 50° n° 1 e 51° nº 1 todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
15°
Quanto à denominada questão da “TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA SANCIONADA”, vertida nas CONCLUSÕES 12ª a 12ª inclusive, importa sublinhar que a norma do artigo l63° do Estatuto do Ministério Público (doravante EMP) reveste – porque tem de revestir – um carácter genérico e abstracto. Mas
16°
O CSMP não agiu, a coberto dela, com arbítrio e irrazoabilidade: deu como assente o grave desrespeito pelo cumprimento dos deveres profissionais, sendo inadmissível que um Magistrado do Ministério Público ignore quais os seus deveres enquanto profissional e na sua vida privada de modo a saber quais as condutas que podem ou não infringir esses deveres,
17º
Tanto mais que no caso em apreço o exercício das actividades de Advogado e de Magistrado do Ministério Público é considerado incompatível quer pelo EMP quer pelo Estatuto da Ordem dos Advogados. Acresce que
18°
O Pleno do STA tem vindo a acolher o entendimento segundo o qual “o princípio da tipicidade das penas, plenamente válido para o direito criminal...não vale, com a mesma intensidade, para as penas disciplinares, nomeadamente em relação às não expulsivas” e que o artigo 183° do EMP (ora em causa), contém uma suficiente definição das condutas abrangidas pela previsão normativa, NÃO SENDO MATERIALMENTE INCONSTITUCIONAL. Assim,
19°
Não se divisa em que medida as normas dos artigos 163° e 183° n° 1 ambos do EMP violam os princípios da segurança e da confiança jurídicas que emanam do Estado de Direito Democrático, da proporcionalidade ou da proibição de excesso, da tipicidade, da determinabilidade e da precisão das leis punitivas, da igualdade e da boa-fé,
20°
Princípios estes consagrados nos artigos 2°, 18° n°s 2 e 3, 29° n° 1, 13° e 266° n° 2 todos da CRP.
21°
No que diz respeito à ILEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA PENA DE INACTIVIDADE, abordada nas CONCLUSÕES 13ª a 19ª inclusive, os doutos Acórdãos recorridos pronunciam-se, e bem, no sentido de que uma pena de inactividade não pode ser considerada mais grave do que uma pena expulsiva, pois que além do mais, “...permite o regresso à actividade e o exercício das funções, uma vez cumprida.” – sic. Acórdão recorrido, página 26 e 17 dos Acórdãos da Secção e do Pleno do STA, respectivamente.
22°
As consequências que comporta – perda de remuneração e desconto no tempo a considerar para efeitos de antiguidade e de aposentação – são as próprias de uma pena disciplinar aplicável a uma infracção grave, são o seu efeito típico. Por outro lado
23°
Não tem razão o Recorrente quanto à matéria relativa ao EFEITO AUTOMÁTICO DA PENA, tratado nas CONCLUSÕES 20ª a 22ª inclusive. É que a perda de remuneração e de tempo a considerar para efeitos de antiguidade e aposentação decorrem da lei: artigos 175° n° 1 e 3 a) e 176° n° 1 ambos do EMP, não detendo o CSMP qualquer margem de ponderação sobre a sua aplicação em cada caso concreto. E
24º
Por que não estamos perante uma pena de natureza criminal, não é aplicável o comando do artigo 30º n° 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, o qual, por isso, não foi violado. De resto
25°
A simples leitura da norma do artigo 30° n° 1 da CRP evidencia que não estão em causa, na situação que nos ocupa, os efeitos aí previstos e com a proibição do seu n° 4 pretende-se impedir que à condenação em certas penas se acrescente de forma automática, independente de decisão judicial, uma outra pena da mesma natureza – sic pág. 17 do Acórdão do Pleno do STA. Acresce que
26°
Não merece também acolhimento a alegada violação do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e o artigo 25° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pois que a privação da alimentação, vestuário e alojamento – se fosse o caso – resulta da aplicação de uma pena disciplinar praticada pelo Recorrente.
27°
O direito a alimentação, vestuário e alojamento a que os Estados se vincularam através do Pacto e da Declaração acima referidos não contende com o reconhecimento nas suas ordens jurídicas de sanções – desde logo disciplinares – que possam aplicar o afastamento temporário do serviço e a consequente perda das remunerações associadas ao exercício efectivo de funções. Por isso
28°
Hão-de improceder as CONCLUSÕES 13ª a 22ª inclusive, pois as normas dos artigos 166° n° 1 alínea e), 170º n°s 1 e 3, 172°, 175° n°s 1 e 3 alíneas a) e b), 176° n° 1 e 183° todos do EMP não afrontam os artigos 1º, 2°, 13°, 18° n°s 2 e 3, 25° n° 2, 26° n° 1, 29° n° 1, 30° n° 1, 47° n° 1, 53°, 59° n° 1 alínea a) e 266° todos da CRP, bem como o Pacto e a Declaração internacionais invocadas.
29°
Também não podem proceder as CONCLUSÕES 23ª a 27ª inclusive sobre a questão da INCOMPATIBILIDADE DA ACTIVIDADE DO RECORRENTE como Advogado com inscrição activa na respectiva Ordem – ainda que em causa própria e do cônjuge – enquanto Magistrado do Ministério Público em efectivo exercício de funções.
30°
O artigo 93° do EMP prevê e admite o exercício de advocacia em causa própria desde que o Magistrado se identifique como tal, o que não ocorre na situação do Autor que expressamente invocou o seu Estatuto de Advogado omitindo voluntariamente o de Magistrado do Ministério Público.
31°
Por sua vez o artigo 81° nº 1 do mesmo Estatuto que define o regime de incompatibilidades dos Magistrados do Ministério Público é aplicável à situação do Recorrente que assinou peças processuais e teve intervenções em processos na qualidade de Advogado inscrito na Ordem, actividade esta que sabia ser incompatível com a de Magistrado em exercício efectivo de funções,
32º
Situação esta inconfundível com a previsão do artigo 93° do EMP que supõe que o Magistrado conserve, no processo onde intervém em causa própria, do seu cônjuge ou de descendente, a sua condição de Magistrado, que deve invocar. Por isso
33°
É manifesto que a infracção disciplinar e a sanção correspondente não resulta da ausência de pedido de autorização para exercer a actividade que o Recorrente exerceu.
34°
A inadmissibilidade no Estatuto do Ministério Público da figura prevista no artigo 24° n° 1 alínea c) e 25° nº 2 alínea d) ambos do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local aprovado pelo D.L. n° 24/84 de 16 de Janeiro (ED) não afronta os princípios constitucionais da justiça, da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da segurança e confiança jurídicas, da proporcionalidade, da fixidez e da necessidade das penas, da segurança no emprego, do direito ao trabalho e da imparcialidade consagrados nos artigos 1°, 2°, 13°, 18° n°s 2 e 3, 30° n° 1, 53°, 58° n° 1 e 266° n° 2 todos da CRP.
35º
Devem pois improceder as CONCLUSÕES 23ª a 27ª inclusive.
36°
Por último, e quanto à escolha da pena e à suspensão da respectiva execução cumpre dizer o seguinte:
A pronúncia sobre o grau de gravidade da conduta do Autor e a escolha da pena inscrevem-se no exercício da chamada “justiça administrativa”, só sendo sindicáveis pelo Tribunal em caso de erro manifesto e grosseiro, se se mostrarem inaceitáveis os meios utilizados ou os resultados obtidos.
37º
Os Acórdãos recorridos concluíram – e bem – que as deliberações do CSMP impugnadas tinham valorado justa e equilibradamente o comportamento infraccional do Autor.
38°
Como já tivemos oportunidade de dizer acima, essas decisões pronunciaram-se expressamente sobre a questão da suspensão da execução da pena disciplinar de inactividade, pese embora em sentido contrário ao da vontade do Autor,
39º
Tendo-se afirmado, por um lado, que o artigo 50º n° 1 do Código Penal não é aplicável à situação em presença que não é do domínio das penas criminais e, por outro lado, que
40º
O artigo 33° n° 1 do D.L. n° 24/84 de 14 de Janeiro – aplicável “ex vi” artigo 216° do EMP não impõe a fundamentação da não suspensão da execução da pena.
41°
Não se divisa a invocada violação dos princípios da justiça, proporcionalidade, necessidade das penas e proibição de penas degradantes e desumanas consagrados nos artigos 1°, 2º, 18° n°s 2 e 3, 30° n° 1 e 25°, todos da CRP e 1º e 4° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
42°
É igualmente incompreensível a apontada afronta dos princípios da segurança e confiança jurídicas, da igualdade, da proporcionalidade e da proibição de excesso e da imparcialidade acolhidos nos artigos 2°, 13°, 18° n°s 2 e 3 e 266° n° 2 todos da CRP, POR NÃO TER SIDO SUSPENSA A EXECUÇÃO DA PENA DE INACTIVIDADE OU FUNDAMENTADA A SUA NÃO SUSPENSÃO, aqui se remetendo para o que ficou claramente dito no douto Acórdão do Pleno do STA nos pontos II.2.8. e II.2.9., que se dão por inteiramente reproduzidos.
5. Foi o recorrente advertido, através de despacho, da eventualidade de o Tribunal não vir a conhecer das questões colocadas nas alíneas b), e), f) e g) do requerimento de interposição do recurso, por em todas elas se solicitar a sua pronúncia relativamente a normas ou dimensões normativas que não haviam sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida.
A esta advertência respondeu o recorrente, sustentando, quanto às questões enunciadas em e), f) e g), que a decisão recorrida teria ao menos feito aplicação implícita das normas aí reportadas (fls. 405 dos autos).
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. No seu requerimento de interposição do recurso colocou o recorrente ao Tribunal sete questões de constitucionalidade.
No entanto, e como decorre do que vem de dizer-se, é manifesto que nem todas elas constituem objectos idóneos de recurso, pelo que importa antes do mais delimitar o âmbito do que pode estar, no presente caso, em julgamento.
Desde logo, e conforme advertência feita ao recorrente, não pode o Tribunal pronunciar-se sobre a questão enunciada em b) – segundo a qual, recorde-se, estaria em causa a inconstitucionalidade de normas contidas tanto no ETAF quanto no CPTA quando “interpretadas no sentido de nos recursos de decisão proferidas em processos disciplinares o tribunal não poder conhecer da gravidade da pena aplicada” – pela simples razão, aliás não contestada pelo recorrente, de que não foi essa a norma ou dimensão normativa que o tribunal a quo efectivamente aplicou. Qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a proferir sobre a questão revelar-se-ia por isso um exercício perfeitamente inútil.
O mesmo sucede com as questões enunciadas nas alíneas e), f) e g) do requerimento de interposição do recurso. Em relação a elas, porém, contesta o recorrente, alegando ter havido aplicação implícita (por parte da sentença recorrida) das normas cuja inconstitucionalidade sustenta. Mas sem razão.
Com efeito, e na alínea e), pede-se que o Tribunal julgue inconstitucional “os artigos 172.º, 175.º, nºs 1 e 3, alínea a), e 176.º, nº1 [do Estatuto do Ministério Público] por colidirem com os princípios da proporcionalidade, da fixidez das penas, da igualdade e da proibição dos efeitos automáticos das penas, bem como do direito à remuneração, acolhidos nos artigos 13.º (…) todos da Constituição”. Basicamente, pretender-se-ia aqui impugnar a leitura que o tribunal a quo teria feito das normas pertinentes do Estatuto do Ministério Público quanto aos efeitos produzidos pela pena de inactividade, leitura essa que pressuporia o reconhecimento da automaticidade desses mesmos efeitos. Mas como tal reconhecimento não foi feito pela sentença recorrida (que, aliás, expressamente o recusou: fls. 178), não pode agora o Tribunal Constitucional vir censurar uma interpretação de norma ou uma “dimensão normativa” que na realidade nunca existiu.
Como nunca foi aplicada [e, nessa medida, também nunca existiu] a “norma” enunciada na alínea f) do requerimento de interposição do recurso. Pedia-se aqui que o Tribunal julgasse inconstitucional os “artigos 81.º, nº1, 163.º e 216.º, todos do EMP, em conjugação com os artigos 24.º, nº 1, alínea c) , e 25.º, nº2, alínea d), ambos do Decreto-lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, interpretados no sentido de estes últimos normativos não serem subsidiariamente aplicáveis em processo disciplinar em que o arguido é magistrado do MP, por violação dos princípios de justiça (…) todos da Constituição”. Ínsita na “construção” desta [hipotética] norma está a ideia segundo a qual a sentença recorrida, interpretando as normas disciplinares pertinentes quer do Estatuto do Ministério Público quer do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (na versão de 1984), não deixará de ter incluído, no número das hipóteses possíveis de soluções a dar ao caso, aquela decorrente do estatuto disciplinar dos funcionários e agentes da administração, que valeria, portanto, como direito supletivo. Tal, contudo, não sucedeu. O tribunal a quo disse, pelo contrário, que aplicável ao caso seria só (pelas características mesmas dele) o regime decorrente do Estatuto do Ministério Público (fls. 181). Pode discordar-se ou concordar-se com esta solução; o que não pode é pedir-se ao Tribunal Constitucional que sobre ela julgue. Colocando-se a questão no âmbito estrito da interpretação do direito infraconstitucional, qualquer discussão que sobre ela ocorra escapa ao âmbito dos seus poderes cognitivos.
O mesmo raciocínio deve ser seguido quanto à norma enunciada na alínea g) do requerimento de interposição do recurso.
Pretendia-se aqui que o Tribunal apreciasse a dimensão normativa decorrente dos artigos 33.º, nº 1, do DL nº 24/84, 216.º do EMP e 50.º, nº1, do CP, quando interpretada “no sentido de este último normativo não ser subsidiariamente aplicável em processo disciplinar em que o arguido seja magistrado do MP, de modo a que a não-suspensão de execução [da pena] deva ser fundamentada, por violação dos princípios da confiança (…) todos da Constituição”. Como a sentença recorrida entendeu, simplesmente, que também neste domínio seria aplicável apenas (e pelas características do caso) o regime decorrente do EMP (fls. 186) a norma cuja inconstitucionalidade se pede que o Tribunal aprecie nunca chegou a ser efectivamente aplicada pela decisão de que se interpôs recurso.
Assim sendo, o objecto deste último fica circunscrito a apenas três questões: (i) a enunciada na alínea a) do requerimento de interposição do recurso, e que consiste na questão de saber se será inconstitucional o regime decorrente dos artigos 202.º e 203.º do EMP, quando interpretados no sentido de não dever ser notificado ao arguido, antes da decisão final, o relatório elaborado no fim da instrução do processo disciplinar; (ii) a enunciada na alínea c) do mesmo requerimento, e que consiste na questão de saber se a dimensão normativa decorrente dos artigos 163.º e 183, nº 1, do EMP, na parte em que prevê a aplicação da pena de inactividade em caso de grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais, será inconstitucional por violação dos princípios constitucionais de determinabilidade e precisão das leis punitivas; (iii) a enunciada na alínea d), e que consiste na questão de saber se serão ou não excessivas as normas pertinentes do EMP, ao preverem a aplicação, em processo disciplinar, da pena de inactividade com os efeitos daí decorrentes.
Cada uma destas questões será analisada separadamente.
6. Como se disse, a primeira questão cuja conformidade com a Constituição o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie tem por objecto os artigos 202.º e 203.º do EMP, interpretados no sentido de o relatório elaborado no fim da instrução do processo disciplinar não dever ser notificado ao arguido antes da decisão final.
O recorrente encontra semelhanças entre essa questão e as normas paralelas do Estatuto dos Magistrados Judiciais e outras que não prevêem que o interessado se pronuncie sobre o conteúdo dos pareceres emitidos pelo Ministério Público nos tribunais superiores, por violação dos princípios do contraditório e da defesa, referindo o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 516/03.
Reportando-se expressamente ao caso dos autos, o recorrente identifica considerações e afirmações que são feitas no relatório que não constavam da acusação, pelo que sobre as mesmas o arguido não teria tido oportunidade processual para tomar posição.
Afirma o recorrente que, ao não lhe ser dada oportunidade de se pronunciar sobre o conteúdo do relatório, ficaram drasticamente restringidos os seus direitos ao contraditório, derivado do Estado de direito democrático (CRP, artigo 2.º), de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses (CRP, artigo 20.º, n.º 1), de um processo equitativo (CRP, artigo 20.º, n.º 4), do princípio da igualdade (CRP, artigo 13.º), do direito de defesa (CRP, artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3).
Entende por isso o recorrente que a decisão recorrida deveria ter julgado inconstitucionais os artigos 202.º e 203.º do EMP, na interpretação que lhes foi dada, recusando a sua aplicação e, em consequência, declarar verificada a nulidade insuprível arguida, prevista no artigo 204.º, n.º 1 do EMP, seguindo-se a revogação do acórdão da subsecção e a anulação das deliberações punitivas.
Não tem razão o recorrente.
Desde logo, por razões de clareza, importa precisar que a questão que é submetida ao Tribunal Constitucional é a de saber se o simples facto de o regime legal não prever que o arguido deva ser notificado do relatório elaborado no fim da instrução do processo disciplinar, só por si, viola a Constituição e não a questão da admissibilidade de, no relatório, serem, pela primeira vez, inseridos factos constitutivos da infracção ou mesmo só outro tipo de considerações ou afirmações com relevância para a decisão final, sem que os mesmos constassem da acusação e que, portanto, sem que sobre os mesmos ao arguido tivesse sido facultada a possibilidade de se defender. Em primeiro lugar, esta última questão não foi sequer suscitada pelo recorrente. Além disso, ela reporta-se a norma que não foi sequer aplicada pela decisão recorrida, pois nela entendeu-se que o relatório em questão não contém implicações omitidas na acusação, com influência na punição aplicada ao arguido.
Ora, prevendo o regime legal que o arguido é notificado da acusação, na qual vêm articulados discriminadamente os factos constitutivos da infracção disciplinar e os que integram circunstâncias agravantes ou atenuantes que repute indiciados, dispondo o arguido de um prazo para a apresentação da defesa (artigos 197.º, n.º 1 e 198.º, n.º 1 do EMP), a que acresce fulminar-se com o vício de nulidade insuprível a falta de audiência do arguido com possibilidade de defesa (artigo 204.º, n.º 1 do EMP), o regime legal assegura satisfatoriamente os direitos de audiência e defesa, inexistindo qualquer violação do disposto no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição.
A regulamentação dos demais aspectos da tramitação do processo disciplinar, i. é de aspectos que não versem a matéria dos direitos de defesa do arguido, não se inserem sequer no âmbito de protecção normativa desse preceito constitucional.
Dito de outro modo, para que os direitos de audiência e defesa do arguido, consagrados no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição fossem operantes sob a norma sub judicio, seria, desde logo, necessário que a mesma incidisse sobre matéria de defesa do arguido.
Ora, reportando-se tal norma a uma fase do processo disciplinar já subsequente à apresentação da defesa por parte do arguido, a mesma não pode, logicamente, afectar o seu direito de defesa, pelo que a matéria nela regulada se situa completamente à margem da protecção que a Constituição confere ao arguido.
Estando os demais preceitos constitucionais indicados pelo recorrente, qualquer deles, directamente relacionado com as garantias constitucionais em matéria de direito de defesa do arguido – e tendo o Tribunal já decidido, no Acórdão n.º 499/2009, que as normas sob juízo, em dimensão interpretativa idêntica à adoptada no presente processo, também não lesam o direito de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes digam respeito, consagrado no n.º 5 do artigo 267.º da CRP – nada mais há a apreciar.
Conclui-se, assim, que os artigos 202.º e 203.º do EMP, interpretados no sentido de o relatório elaborado no fim da instrução do processo disciplinar não dever ser notificado ao arguido antes da decisão final, não violam a Constituição.
7. A segunda questão colocada ao Tribunal diz respeito à determinabilidade das normas do Estatuto do Ministério Público que prevêem a aplicação da pena de inactividade. Sustenta o recorrente que a previsão (que imputa ao que resulta das disposições conjugadas dos artigos 163.º e 183.º, nº 1, do EMP) é feita de tal modo que lesa, desde logo, os princípios constitucionais de determinabilidade e precisão das leis punitivas.
O artigo 163.º define a infracção disciplinar, dizendo que nela se incluem “os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados do Ministério Público com violação dos deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública, ou que nelas se repercutam, incompatíveis com o decoro e a dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções”. Por seu turno, e quanto à pena de inactividade, diz o artigo 183.º, nº 1 (na parte relevante para o caso) que ela será aplicável “nos casos de negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais”.
Tendo em conta que nos situamos, aqui, não no domínio do direito penal mas no domínio de um dos ramos do direito público sancionatório (maxime, no domínio do direito disciplinar), vale in casu a jurisprudência do Tribunal que se tem pronunciado sobre a questão de saber qual a densidade normativa que é constitucionalmente exigida para a tipificação legal de infracções disciplinares (Acórdãos nºs 282/86, 666/94 e 481/01, disponíveis em www.tribunalconstituconal.pt).
Fundamentalmente, tem sido dito, a este propósito, que as exigências de tipicidade se fazem sentir em menor grau no âmbito do direito disciplinar público do que no âmbito do direito penal; e que, de todo o modo, se devem ter em conta exigências acrescidas de densificação normativa sempre que se prevejam penas disciplinares expulsivas, i.é, penas cuja aplicação se traduza na afectação do direito ao exercício de uma profissão ou cargo público (garantidos pelo artigo 47.º, nºs 1 e 2 da Constituição) ou na afectação do direito à segurança no emprego (artigo 53.º).
Glosando esta jurisprudência, vem o recorrente basicamente sustentar que também da execução da pena de inactividade resulta a afectação negativa de direitos fundamentais, pelo que será censuravelmente aberta, ou atípica, a previsão da sua aplicação nos “casos de negligência grave ou grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais”.
Não cabe, evidentemente, ao Tribunal Constitucional proceder à qualificação técnico-jurídica de cada uma das sanções estabelecidas pelo legislador ordinário em sede de direito disciplinar. Trata-se aí de matéria de direito infra-constitucional para a apreciação da qual este Tribunal é incompetente.
Assim, quando, no acórdão n.º 666/94, já citado, o Tribunal emprega o conceito de “pena disciplinar expulsiva”, definindo-o como uma pena cuja aplicação vai afectar o direito ao exercício de uma profissão ou de um cargo público (garantidos pelo artigo 47.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição) ou a segurança no emprego (protegida pelo artigo 53.º da Constituição), o Tribunal não está – não tem para tanto competência – a forjar uma categoria jurídico-dogmática em sede de direito disciplinar; está, isso sim, a atribuir relevância jurídico-constitucional à intensidade da afectação de direitos fundamentais, face ao critério estabelecido no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição. Como se escreveu nesse mesmo acórdão, “[normas que prevejam penas disciplinares expulsivas] hão-de revestir um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa espécie de penas – o que se torna evidente, se se ponderar que, por força dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deverão aplicar-se às condutas cuja gravidade o justifique (cf. artigo 18.º, n.º 2, da Constituição)”.
Tal significa que a protecção constitucional conferida ao direito disciplinar – em matéria do grau exigível da sua densidade normativa –, ainda que não decorra de nenhum preceito que a ela especificamente se dirija, há-de resultar sempre do disposto no artigo 18.º, nº2.da CRP. Dito de outro modo. Visto que a afectação dos direitos fundamentais só é constitucionalmente admissível se for justificada – sendo que, face ao artigo 18.º, nº 2, da Constituição, só o é se fora necessária, adequada e proporcional – não pode deixar de ser exigível uma caracterização minimamente precisa das condutas a que a pena disciplinar é aplicável. Assim, e sintetizando, pode dizer-se que a protecção constitucional no domínio do direito disciplinar se formula do seguinte modo: quanto maior for a gravidade da pena aplicável (da perspectiva da afectação de direitos fundamentais do arguido), tanto maior deve ser a caracterização dos comportamentos puníveis.
Dito isto, não se negligencia o grau de gravidade de que se reveste a pena de inactividade, enquanto sanção disciplinar aplicável a magistrados do Ministério Público.
Esta pena é uma das previstas n.º 1 do artigo 166.º do EMP. Ela consiste no afastamento completo do serviço durante o período do seu cumprimento (EMP, art. 170.º, n.º 1), período esse que não pode ser inferior a um ano nem superior a dois (EMP, art. 170.º, n.º 3). A pena de inactividade implica a perda do tempo correspondente à sua duração para efeitos de remuneração, antiguidade e aposentação (EMP, art. 175.º, n.º 1, aplicável ex vi art. 176.º, n.º 1), podendo implicar ainda tanto a impossibilidade de promoção ou acesso durante dois anos contados do termo do cumprimento da pena bem como a transferência para cargo idêntico em tribunal ou serviço diferente daquele em que o magistrado exercia funções na data da prática da infracção (EMP, art. 175.º, n.º 3, aplicável ex vi art. 176.º, n.º 1). É pois, este o grau de afectação de direitos (como os constantes dos artigos 47.º e 53.º da CRP) que da sua aplicação resulta.
Simplesmente, no juízo de ponderação a fazer – entre o peso ou a gravidade destes efeitos e o grau de determinação exigível da norma punitiva – haverá que incluir dois argumentos, ambos favoráveis, como se verá, a um juízo de não inconstitucionalidade. Diz o primeiro respeito à redacção literal do n.º 1 do artigo 183.º do EMP.
Com efeito, não é qualquer comportamento negligente, ou “desinteressado”, que determinará nos termos deste preceito a aplicação das penas de suspensão de exercício ou de inactividade. Como já se disse, o que é punível deste modo é a negligência grave ou o grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais, o que “densifica”, desde logo, a previsão normativa. Além disso, não pode deixar de ser considerada a natureza especial dos deveres cujo incumprimento determina, no caso, a aplicação da infracção disciplinar. Não estamos perante um qualquer ilícito disciplinar público. Estamos perante o estatuto disciplinar dos magistrados do Ministério Público que, concretizando o disposto nos artigos 219.º e 220.º da Constituição, não pode deixar de pressupor, por parte dos agentes, consciência aguda do conteúdo dos deveres profissionais cujo incumprimento determina a aplicação da sanção; e, por parte da autoridade “administrativa” que julga, consciência aguda dos limites do julgamento. À luz destes pressupostos – que, por decorrerem do estatuto constitucional do ministério público, não podem deixar de ser assumidos – não se torna de modo algum líquido que haja excesso ou desproporção entre os efeitos [compressores de direitos] decorrente para um magistrado do Ministério Público da aplicação da pena disciplinar de inactividade e o grau de (in)determinação da norma punitiva. É certo que essa norma, constante do artigo 183.º do EMP, diz apenas que a sanção de inactividade (tal como a pena de suspensão de exercício) será aplicável nos casos de negligência grave ou de grave desinteresse de deveres profissionais. Mas também é certo que ela não pode deixar de ser interpretada no contexto da regulação em que se insere. E sendo esse o contexto próprio do estatuto da magistratura a que alude o artigo 219.º da Constituição, os deveres profissionais a que a norma punitiva se refere (explicitados aliás pelo Capítulo II da Parte II do EMP) não podem deixar de ter, para os seus destinatários, conteúdo especialmente conhecido e cognoscível.
Nestes termos, fica do mesmo modo respondida a terceira questão que o recorrente colocara ao Tribunal, visto que ela se cifrava na questão geral de saber se seria em si mesma conforme ao princípio da proporcionalidade, ou da proibição do excesso, a previsão normativa da pena de inactividade, com os efeitos que as disposições já referidas do EMP fazem decorrer da sua aplicação. Não é excessivo o grau de afectação de direitos que, para o arguido, dessa pena pode resultar, face aos bens jurídicos que justificam a sua inserção no estatuto disciplinar do MP.
III – Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide não conceder provimento ao recurso
Sem custas.
Lisboa, 12de Julho de 2011. – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.