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Processo n.º 179/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal ConstitucionalI – Relatório1. A. foi condenada, por acórdão de 7 de Julho de 2009, proferido pelo Tribunal Colectivo da Comarca do Baixo Vouga, na pena única de oito anos de prisão, pela prática de dois crimes de peculato. Interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra o qual, por acórdão de, no que ora importa, negou provimento a tal recurso, mantendo a condenação.
Deste acórdão, a arguida interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o qual não foi admitido com base no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, por despacho do Desembargador Relator. A arguida apresentou então reclamação deste despacho, ao abrigo do artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que veio a ser indeferida.
Novamente inconformada, a arguida tentou então interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Neste Tribunal, o mesmo foi objecto de decisão sumária que determinou o seu não conhecimento.
Notificada da decisão sumária, a arguida apresentou, junto do Tribunal da Relação de Coimbra, recurso para o Tribunal Constitucional, com o seguinte teor:
“A presente interposição de recurso é efectuada ao abrigo do disposto na alínea b) do n° 1 do art° 70° da Lei do Tribunal Constitucional, na medida em que as doutas decisões recorridas aplicam normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o decurso dos presentes autos.
Em cumprimento do disposto no n° 2 do art° 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional infra se indicam as normas e os princípios legais e constitucionais que se consideram violados e as peças processuais em que a recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade.
Na verdade, no requerimento que consubstanciou a motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, a ora recorrente invocou a inconstitucionalidade da interpretação do n° 1 do art° 375.º e das alíneas a) e b) do n° 1 e do n° 4 do art° 256°, ambos do Código Penal, e do art° 355° do CPP, por violação do art° 2° e 32°, n°s. 2 e 5 da CRP, e dos princípios ‘in dubio pro reo’, ‘ne bis in idem’ (art° 29°, n° 5 da CRP) e ‘lex consumenis derrogat lex consumatae’. Com efeito, entende a ora recorrente que o Tribunal de 1.ª Instância a deveria ter absolvido, sem qualquer espírito de dúvida razoável, dos crimes alegadamente praticados no Cartório Notarial de Vagos e que o crime de peculato consome o de falsificação.
Do mesmo modo, no requerimento que motivou o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a ora recorrente invocou a inconstitucionalidade das normas supra referidas e a interpretação que foi dada aos artigos 127° e 124° do CPP, por violação dos legítimos interesses da defesa, da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo estabelecidos nos n° 1, 2 e 5 do art° 32° da CRP.
Na verdade, face à ausência assumida de provas, não podia o Tribunal decidir a matéria de facto com recurso a presunções judiciais que, em bom rigor, mais não são do que a consagração da arbitrariedade das decisões judiciais, sempre que inexistem provas concretas dos factos imputados ao agente.
Deve ter-se como inadmissível a presunção extraída pelo Tribunal da Relação de Coimbra a partir de certos factos provados por forma a insinuar-se a existência entre os mesmos de uma determinada relação cronológica e espacial-causal não provada que, assim incutida na base da presunção, deu azo à ilação de outro facto desconhecido.
Finalmente, a recorrente invocou a inconstitucionalidade da interpretação que o Tribunal da Relação de Coimbra fez do n° 3 do art° 400° do CPP, por violação do art° 32°, n° 1 da CRP. É que, mesmo que se admitisse a ocorrência no caso vertente da ‘dupla conforme’ e não fosse admissível o recurso da matéria penal, o recurso teria sempre de ser admitido, por força do disposto no n° 3 do citado art° 400° do CPP, na parte do acórdão relativo à indemnização civil.
Entende, pois, a ora recorrente que as opções sufragadas nas decisões em recurso representam a imolação das garantias de defesa da arguida com assento constitucional.”
O Exmo. Desembargador de Relator proferiu despacho de não admissão do recurso, considerando-o “manifestamente extemporâneo”. A arguida deduziu então, face a este despacho, a presente reclamação, que se passa a transcrever:
“A ora reclamante foi acusada e foi julgada em 1.ª Instância (Comarca do Baixo Vouga — Juízo de Média Instância Criminal — Juiz 2) pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de peculato, ambos na forma continuada (um em cada um dos cartórios notariais — Vagos e Aveiro) e dois crimes de falsificação de documentos, ambos na forma continuada (um em cada um dos cartórios notariais — Vagos e Aveiro).
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferido Acórdão que determinou, para além do mais:
- condenar a arguida pela prática dos dois crimes de peculato, o primeiro na pena de 5 anos de prisão e o segundo na pena de 4 anos de prisão;
- condenar a arguida pela prática dos dois crimes de falsificação de documentos, o primeiro na pena de 3 anos de prisão e o segundo na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
- condenar a arguida, em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única de 8 anos de prisão;
- condenar a arguida demandada a pagar ao Estado Português — Ministério da Justiça — Direcção Geral dos Registos e Notariado, a quantia de € 141.787,49, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano (ou outra que venha a vigorar), a contar de 14 de Novembro de 2008, até integral pagamento;
- condenar a arguida demandada a pagar ao Estado Português — Ministério das Finanças — Direcção Geral dos Impostos, a quantia de € 585.224,31, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano (ou outra que venha a vigorar), a contar de 14 de Novembro de 2008, até integral pagamento.
Inconformados com o teor do douto Acórdão proferido a arguida e o Ministério Público interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, simultaneamente sobre matéria de direito e de facto.
O Tribunal da Relação de Coimbra proferiu douta decisão negando provimento ao recurso interposto pela arguida e julgando parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, em consequência do que corrigiu a matéria de facto constante da alínea b) dos factos não provados, de modo a que esta matéria passasse a integrar a alínea E) dos factos provados e corrigiu igualmente o Acórdão, declarando perdidos a favor do Estado os saldos bancários mencionados como existentes nas contas bancárias da arguida, bem como os objectos que lhe foram apreendidos. Mais decidiu que o valor destes bens fosse abatido no cômputo global da indemnização que a arguida foi condenada a pagar ao Estado Português, na proporção de 20 % e 80 % respeitantes, respectivamente, ao Ministério da Justiça e ao Ministério das Finanças.
Inconformada com esta decisão, a arguida interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça invocando, para além do mais, a nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público, a violação dos princípios in dubio pro reo, da defesa, da estrutura acusatória do processo, ne bis in idem e lex consumenis derrogat lex consumatae. Recorreu também da determinação da medida da pena e do cúmulo jurídico.
O Exmo. Senhor Juiz Desembargador — Relator do Tribunal da Relação de Coimbra proferiu douto despacho de não admissão do recurso, por inadmissibilidade legal, fundamentando a sua decisão na vulgarmente denominada ‘dupla conforme’ — alínea f) do n° 1 do art° 400.º do CPP — o que, no seu entender, obstaculizava a impugnação interposta.
A arguida reclamou desta decisão para o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no n° 1 do art° 405° do Código de Processo Penal, pugnando pela admissão do recurso.
O Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação.
Notificada desta decisão, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, onde, para além do mais disse o seguinte: ‘Em cumprimento do disposto no n° 2 do art° 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional infra se indicam as normas e os princípios legais e constitucionais que se consideram violados e as peças processuais em que a recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade. Na verdade, no requerimento que consubstanciou a motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, a ora recorrente invocou a inconstitucionalidade da interpretação do n° 1 do art° 375° e das alíneas a) e b) do n° 1 e do n°4 do artigo 256°, ambos do Código Penal, e do artigo 355° do CPP, por violação do artigo 2° e 32°, n°s. 2 e 5 da CRP, e dos princípios ‘in dubio pro reo’, ‘ne bis in idem’ e ‘lex consumenis derrogat lex consumatae’ Com efeito, entende a ora recorrente que o Tribunal de 1.ª Instância a deveria ter absolvido, sem qualquer espírito de dúvida razoável, dos crimes alegadamente praticados no Cartório Notarial de Vagos e que o crime de peculato consome o de falsificação. Do mesmo modo, no requerimento que motivou o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a ora recorrente invocou a inconstitucionalidade das normas supra referidas e a interpretação que foi dada aos artigos 127° e 124° do CPP, por violação dos legítimos interesses da defesa, da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo estabelecidos nos n° 1, 2 e 5 do art° 32° da CRP.
E também no requerimento de reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho que não admitiu o recurso, a ora recorrente invocou a inconstitucionalidade da interpretação dada à alínea 19 do n° 1 e do n°3 do artigo 400° do CPP, por violação do direito ao recurso, consagrado no n° 1 do art° 32° da CRP. O conceito de confirmação a que se alude na alínea 19 do n° 1 do art° 400° do CPP deverá ser interpretado no sentido de que a confirmação se verificará apenas quando o Tribunal da Relação mantenha, na íntegra, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância. Por outro lado, considera a recorrente que é inconstitucional, por violar o artigo 32°, n° 1, da CRP, a interpretação do artigo 400°, n° 1, al f) que vede o recurso para o STJ dos acórdãos pro feridos em recurso pelas Relações que apliquem a cada um dos crimes em concurso penas concretas inferiores a oito anos de prisão, mesmo que a pena conjunta seja superior a oito anos de prisão.’
O recurso foi admitido na parte que se reportava ao art° 400.º, n° 1, alínea f) do Código de Processo Penal e não do n° 3 da mesma disposição legal, por entender que esta norma não foi aplicada na decisão que indeferiu a reclamação.
E também não tomou conhecimento da parte do requerimento de interposição de recurso em que era invocada a inconstitucionalidade do n° 1 do art° 375° e das alíneas a) e b) do n° 1 e do n° 4 do art° 256°, ambos do CP e dos artigos 355°, 127° e 124° do CPP, por se referirem a decisões da 1.ª Instância e da Relação e não a decisões proferidas nos termos do art° 405° do CPP, pelo que estas decisões só poderiam ser apreciadas quando o processo baixasse.
O Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, porque considerou que, face ao teor do despacho recorrido, a norma do art° 400°, n° 1, al. f) do CPP, não foi aplicada como razão de decidir.
Notificada desta decisão, a recorrente interpôs recurso no Tribunal da Relação de Coimbra para o Tribunal Constitucional, para apreciação das supra invocadas inconstitucionalidades, no que referia a decisões proferidas pela 1.ª Instância e pela Relação.
O Tribunal da Relação de Coimbra rejeitou o recurso considerando-o ‘manifestamente extemporâneo’.
É desta decisão que ora se reclama porque, salvo o devido respeito, o recurso interposto é legal e tempestivo.
O prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional interrompe os prazos para interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção (n° 1 do art° 75° da LTC).
Com efeito, o presente recurso só poderia ter sido interposto depois de proferida decisão definitiva sobre o indeferimento da reclamação para apreciação da inconstitucionalidade imputada à alínea f) do n° 1 do art° 400.º do CPP, ou seja, quando o processo baixasse do Supremo Tribunal de Justiça como, aliás, consta do despacho de admissão de recurso proferido pelo Mmo. Juiz Conselheiro, uma vez que o recurso ora interposto refere-se a decisões da 1.ª Instância e da Relação.”
2. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Notificada desse parecer, a Reclamante veio reiterar a sua argumentação, sustentando a sua procedência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação3. Tendo o recurso sido dirigido ao Tribunal da Relação de Coimbra é manifesto que só pode o mesmo incidir sobre a decisão deste Tribunal, sendo irrelevantes as considerações efectuadas na motivação referida para o Supremo Tribunal de Justiça. Admite-se, portanto, que o recurso visa invocar a inconstitucionalidade da interpretação do n° 1 do art° 375.º e das alíneas a) e b) do n° 1 e do n° 4 do art° 256°, ambos do Código Penal, e do art° 355° do CPP, por violação do art° 2° e 32°, n°s. 2 e 5 da CRP, e dos princípios ‘in dubio pro reo’, ‘ne bis in idem’ (art° 29°, n° 5 da CRP) e ‘lex consumenis derrogat lex consumatae’.
Ora a questão da tempestividade do recurso pode, é certo, suscitar dúvidas. No entanto, a resolução desta questão não se apresenta premente uma vez que subsiste impedimento ao conhecimento do objecto do recurso. De facto, em sede de reclamações deduzidas ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 da LTC, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se, em concreto, se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo.
4. Como é sabido, os recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, carecem, em ordem ao seu conhecimento, da suscitação, durante o processo, de uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Ora, a única referencia à questão de constitucionalidade consta da motivação para o Tribunal da Relação de Coimbra – que é a única peça processual pertinente – apresenta o seguinte teor:
“O Tribunal ‘a quo’ deveria ter absolvido sem qualquer espírito de dúvida razoável, a arguida desses crimes ou, pelo menos, tendo um estado de ‘non liquiet’ como parece que tem, deveria ter aplicado o princípio fundamental do processo penal ‘in dubio pro reo’, tendo havido uma incorrecta interpretação, face à prova produzida, dos artigos 375.º, n.º 1 e 256.º, n.º 1, alínea a) e b) e n.º 4 do Código Penal, e a violação do disposto no artigo 355.º do Código de Processo Penal e artigo 32.º, n.º 2 e n.º 5 e artigo 2.º da Constituição.”
Ora, basta a análise do texto acabado de citar para se concluir que não se encontra suscitada nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa que abra a via de recurso para este Tribunal, uma vez que a critica se dirige à própria decisão recorrida e não à norma aplicada.
III – Decisão5. Nestes termos, acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, indeferir a presente reclamação.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Julho de 2011. – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.