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Processo n.º 256/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A., S.A., o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. Através do presente recurso, pretende a recorrente a apreciação da constitucionalidade da seguinte interpretação: «interpretação resultante da conjugação das normas previstas no artigo 34.° do Código de Processo Tributário, no n.° 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.° 398/98, de 17 Dezembro, nos artigos 48.° e 49.° da Lei Geral Tributária (na redacção da Lei n.° 100/99, de 26 de Julho), e ainda nos artigos 12.°, 297.°, 326.° e 327.º do Código Civil, no sentido de permitir aplicação das causas de suspensão e interrupção da prescrição tributária previstas no artigo 49.° da Lei Geral Tributária (na redacção da Lei n.° 100/99, de 26 de Julho), a factos tributários ocorridos na vigência do Código de Processo Tributário (in casu, a factos tributários verificados em 1993)».
Alega a recorrente que tal interpretação é contrária ao disposto no n.° 2 do artigo 103.° da Constituição da República Portuguesa, violando o princípio da retroactividade da lei fiscal, bem como ao princípio da separação de poderes, previsto nos artigos 2.° e 111.º da Constituição.
Acontece que o presente recurso se revela inútil, uma vez que a decisão que este Tribunal Constitucional viesse a proferida sobre a aludida questão de constitucionalidade sempre seria insusceptível de influir (modificar) no sentido da decisão recorrida.
Na verdade, independentemente da aplicabilidade, ou não, das causas de suspensão e interrupção da prescrição tributária previstas no artigo 49.º da LGT ao caso da recorrente, sempre o acórdão recorrido considerou – com base em fundamentos alternativos – que a dívida da recorrente não se encontrava prescrita. Neste sentido, afirma-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que a “impugnação judicial deduzida” interrompeu a prescrição, quer por aplicação do artigo 49.º, n.º 1, da LGT (na redacção da Lei n.º 100/99), quer por força do artigo 34.º, n.º 3, do CPT vigente à data do facto tributário (cfr. fls. 12 da decisão). Mais se afirma, que esta causa de interrupção, conjugada com as regras de interrupção da prescrição, previstas nos artigos 326.º e 327.º do Código Civil, é suficiente para chegar à conclusão de que a dívida exequenda não se encontra prevista, sem necessidade de considerar outras causas de interrupção ou suspensão da prescrição «não previstas na legislação fiscal anterior à LGT» /(cfr. fls. 12 e 13 do acórdão).
Por fim, lê-se no acórdão que «a esta conclusão [a de que a dívida exequenda não se encontra prescrita] se chegaria igualmente se fosse aplicável “em bloco” como pretendido, o regime de prescrição previsto no CPT, pois que também naquele regime se previa como facto interruptivo da prescrição a impugnação judicial (cfr. o n.º 3 do artigo 34.º do CPT), não havendo, neste ponto, entre o regime vigente à data do facto tributário e o vigente à data em que o facto interruptivo teve lugar (artigo 49.º, n.º 1, da LGT, na redacção da Lei n.º 100/99, de 26 de Julho), qualquer diferença relevante.»
Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido, independentemente de adoptar ou não a interpretação que vem questionada, assenta simultaneamente noutros fundamentos, só por si susceptíveis de manter o sentido da decisão na parte respeitante ao prazo prescricional, e cuja constitucionalidade não foi impugnada pela recorrente.
Essa inutilidade é reconhecida no próprio acórdão recorrido, quando se afirma que «o conhecimento das alegadas inconstitucionalidades, embora pudesse constituir um desafio intelectualmente interessante, seria inútil para o desfecho do caso».
3. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso. (…)»
2. Notificada da decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) A., S.A., Recorrente melhor identificada nos autos de processo referidos em epígrafe, tendo sido notificada da decisão sumária n.° 251/2011 (cfr. Documento n.° 1, que se junta e cujo conteúdo se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais), vem ao abrigo do disposto no n.° 3 do artigo 78.° da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LTC), apresentar Reclamação daquela decisão para a conferência, com os seguintes fundamentos de facto e de direito:
1. Nos termos da identificada decisão sumária ora reclamada decidiu-se, “ao abrigo do n.° 1 do artigo 78.°-A da L TC, (...) não conhecer do objecto do recurso”, por alegadamente a apreciação da questão de inconstitucionalidade ser inútil para a resolução do caso concreto (cfr. cit. Doc. n.° 1).
2. No entendimento da decisão reclamada “Essa inutilidade é reconhecida no próprio acórdão recorrido, quando se afirma que “o conhecimento das alegadas inconstitucionalidades, embora pudesse constituir um desafio intelectualmente interessante seria inútil para o desfecho do caso” (cfr. cit Doc. n.°1).
3. Por discordar do sentido desta decisão, a ora Reclamante vem apresentar a presente reclamação, nos exactos termos que de seguida se expenderá.
4. A questão que efectivamente se pretende ver apreciada na presente reclamação é a de saber se a questão de inconstitucionalidade invocada pela ora Reclamante tem ou não interesse jurídico relevante para a decisão do caso concreto.
5. De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional “Tal interesse só não existirá se a decisão da questão de constitucionalidade, que constituiu objecto do recurso, não puder influir de todo na decisão da questão de fundo - o que é coisa que bem se compreende se se tiver em conta que o recurso de constitucionalidade desempenha sempre uma função instrumental” (cfr. Acórdão n.° 322/90, publicado na II Série do Diário da República, n.° 62, de 15 de Março de 1991).
6. No mesmo sentido veja-se também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 12/87, ao referir que “Esse interesse afere-se pelo reflexo do juízo de constitucionalidade que este Tribunal [Constitucional] pudesse fazer sobre a decisão final do aresto recorrido. Assim, se esse juízo de inconstitucionalidade for indiferente para a solução do caso concreto que constituiu o objecto da decisão recorrida, isto é, se essa solução se mantiver qualquer que seja aquele juízo, então haverá, por certo, falta de interesse no recurso e, em consequência, dele se não deverá tomar conhecimento”.
7. No processo em causa, a questão jurídica subjacente respeita à verificação ou não da prescrição relativa a uma dívida fiscal referente ao exercício de 1993, sendo que a inconstitucionalidade invocada assenta num problema jurídico de sucessão/aplicação de leis no tempo, que é resolvido pelo Tribunal a quo, segundo entende a Recorrente, em clara violação da Constituição.
8. Conforme mencionado no requerimento de interposição de recurso, entende a ora Reclamante que a interpretação acolhida pelo Tribunal a quo, resultante da conjugação das normas previstas no artigo 34.° do Código de Processo Tributário (CPT), no n.° 1 do artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 398/98, de 17 Dezembro, nos artigos 48.° e 49.° da Lei Geral Tributária (LGT) na redacção da Lei n.° 100/99, de 26 de Julho, e ainda nos artigos 12.°, 297.°, 326.° e 327.º do Código Civil, que permite a aplicação das causas de suspensão e interrupção da prescrição tributária previstas no artigo 49.° da LGT (na redacção da Lei n.° 100/99, de 26 de Julho), a factos tributários ocorridos na vigência do CPT (in casu, a factos tributários verificados em 1993), é contrária ao disposto no n.° 2 do artigo 103.° da CRP violando o princípio da retroactividade da lei fiscal, bem como o princípio da separação de poderes, previsto nos artigos 2.° e 111.º da CRP.
9. Com efeito, podendo o prazo de prescrição ser modificado livremente por novas causas suspensivas e interruptivas, coloca-se em causa não só a previsibilidade, fundamento e justificação da não-retroactividade, mas também a própria separação de poderes, na medida em que o Tribunal a quo através da aludida interpretação está a aplicar causas suspensivas e interruptivas do prazo de prescrição que não estavam em vigor à data da ocorrência do facto tributário e que o legislador não havia pretendido aplicar.
10. Ora, com o devido respeito, contrariamente ao que é sustentado pela decisão sumária ora reclamada, o juízo de inconstitucionalidade da interpretação questionada pela ora Reclamante é relevante para a solução do caso concreto, na medida em que é susceptível de influir na decisão final do aresto recorrido, já que o acolhimento da interpretação defendida pela Reclamante conduz à verificação da prescrição, decisão oposta àquela que está na base do recurso para o Tribunal Constitucional.
11. Não foi considerado na decisão sumária que o processo esteve parado por mais de um (ano por facto não imputável ao sujeito passivo e, tal facto é de enorme relevância.
12. É que existe uma diferença relevante entre a aplicação do regime de prescrição “em bloco” previsto no CPT e a aplicação conjugada do regime do CPT e da LGT, nas situações em que houve paragem do processo de impugnação judicial por mais de um ano.
13. Tal paragem foi alegada pela ora Reclamante, quer no artigo 41.° da petição inicial de reclamação judicial, quer no artigo 49.° das alegações de recurso para o STA.
14. Acresce, que a prescrição e todos os seus factos interruptivos e suspensivos, são de conhecimento oficioso, de acordo com o disposto no artigo 259.° do CPT e no artigo 175.° do CPPT, pelo que a Reclamante alegou tal paragem, não lhe cabendo fazer prova da mesma.
15. Para além disso, o Ilustre Representante da Fazenda Pública não contestou tal facto, donde resulta inequivocamente que o processo esteve parado por mais de um ano.
16. Sucede que, essa paragem só é relevante, para a contagem do prazo prescricional em apreço, por degraduar em suspensivo o prazo interruptivo, nos termos do CPT, já que essa previsão, que transitou do CPT para o n.° 2 do artigo 49.º da LGT, foi revogada pela Lei 56-A/2006, de 29/12.
17. Em termos práticos, se aplicarmos em “bloco” o regime constante do CPT, a dívida referente ao exercício de 1993, está prescrita, uma vez que o CPT atribui relevância ao facto de o processo de impugnação judicial ter estado parado por período superior a um ano.
18. Por outro lado, se for de aplicar a interpretação acolhida pelo Tribunal a quo, ou seja, o regime conjugado do CPT e da LGT, então a dívida subjacente aos presentes autos não está prescrita, em virtude de à luz da LGT, a referida paragem não ser relevante para a contagem do prazo prescricional.
19. Face ao exposto, é por demais evidente que a decisão da questão de inconstitucionalidade, que constituiu objecto do presente recurso, é susceptível de influir na decisão final do aresto recorrido, uma vez que poderá implicar a modificação da solução dada pelo Tribunal a quo ao caso concreto.
20. Assim sendo, deverá o Tribunal Constitucional proceder à apreciação do mérito do recurso.
Termos em que, atento exposto, deverá a presente reclamação ser julgada procedente e, em consequência, ser a decisão sumária ora reclamada revogada e o Tribunal Constitucional apreciar o mérito do recurso apresentado. (…)»
3. A recorrida Fazenda Pública não apresentou resposta.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na sua inutilidade, por ser insusceptível de influir no sentido da decisão recorrida.
Nos presentes autos, esteve em juízo a determinação da lei aplicável às causas suspensivas e interruptivas da prescrição da obrigação tributária. Diferentemente do entendimento propugnado pela requerente, ora reclamante, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se no sentido de que se aplica a lei em vigor à data da verificação dos factos que produzem o efeito suspensivo ou interruptivo, e não a vigente no momento em que o facto tributário se gerou. Foi essa, e apenas essa, a interpretação normativa objecto do recurso de constitucionalidade.
Independentemente da posição tomada quanto a essa questão, o acórdão recorrido acentuou, com ênfase, que à decisão de não prescrição da dívida exequenda se chegaria também por aplicação do regime previsto no CPT, tal como pretendido pela reclamante. É o que, sem margem para dúvidas, se retira, entre outros, do seguinte trecho:
«E a esta conclusão se chegaria igualmente se fosse aplicável “em bloco”, como pretendido, o regime de prescrição previsto no CPT, pois que também naquele regime se previa como facto interruptivo da prescrição a impugnação judicial (cfr. o n.º 3 do artigo 34.º do CPT), não havendo, neste ponto, entre o regime vigente à data do facto tributário e o vigente à data em que o facto interruptivo teve lugar (artigo 49.º, n.º 1 da LGT, na redacção da Lei n.º 100/99, DE 26 DE Julho), qualquer diferença relevante.
Não há, pois, quanto à interrupção da prescrição por efeito de dedução de impugnação judicial, sucessão no tempo de regimes legais, antes se verifica uma continuidade de soluções jurídicas (…)».
O chegar-se à mesma solução de considerar não prescrita a dívida tributária, quer por aplicação do regime que a reclamante reputa inconstitucional, quer por aplicação do regime cuja aplicação ao caso era defendida pela recorrente, levou à decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, por inutilidade.
Na presente reclamação, a reclamante sustenta a utilidade do recurso, em síntese, por considerar que, caso o Tribunal Constitucional venha a proferir o pretendido juízo de inconstitucionalidade, tal conduzirá à aplicação, ao caso, do regime previsto no Código de Processo Tributário, nos termos do qual releva a paragem do processo de impugnação judicial por mais de um ano, agora invocada pela reclamante, com a consequente prescrição da dívida tributária. Imputa-se criticamente à decisão sumária o não ter considerado esse facto, “de enorme relevância” (por desgraduar em suspensivo o prazo interruptivo).
Esta arguição agora feita – e em relação a um ponto inteiramente silenciado no requerimento de interposição do recurso – em nada abala o fundamento da decisão ora reclamada.
Corresponde à verdade que a decisão sumária não considerou os efeitos da invocada paragem do processo. Mas nunca o poderia ter feito.
Na realidade, e por duas vezes, o acórdão recorrido dá por assente que tal facto se não verificou. No primeiro passo, parte-se desse princípio, “atendendo aos factos constantes do probatório fixado”, “pois que não há indícios de que tal tenha sucedido e a recorrente também não o alega” (fls. 247 dos autos); no segundo, deixa-se expresso que a desgraduação de efeitos só se daria se a impugnação judicial estivesse parada por período superior a um ano não imputável ao sujeito passivo, “do que não há, no caso dos autos, notícia” (fls. 248).
Este é um dado de facto, que, para este Tribunal, funciona como um dado adquirido, pois não está na sua esfera de competência contrariar os elementos de facto (nem sequer, diga-se de passagem, as interpretações normativas) fixados nas instâncias. E o recurso de constitucionalidade não é, evidentemente, a via adequada para conhecer de eventuais vícios da sentença no julgamento do caso.
É, pois, de manter inteiramente a decisão de não conhecimento do objecto do recurso, pela inexistência de efeito útil na sua apreciação.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Julho de 2011. – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.