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Processo n.º 714/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
(Conselheira Maria Lúcia Amaral)
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A 29 de Março de 2006 o Tribunal de Família e de Menores de Braga homologou, a pedido do Ministério Público, o acordo de limitação do exercício do poder paternal relativo ao menor A.. Nos termos do referido acordo ficou o menor confiado à guarda e cuidados da avó materna, B., que passou a exercer o poder paternal, cabendo aos progenitores pagar, a título de alimentos, pensão mensal correspondente a 85 €.
Como os progenitores não vinham pagando a pensão de alimentos a que estavam obrigados (no caso, releva o não pagamento por parte da mãe), requereu B. ao Tribunal de Família e de Menores de Braga que a referida pensão fosse suportada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores [FGADM], do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, por se encontrarem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 3.° do Decreto-Lei n° 164/99, de 13 de Maio, que veio regulamentar a Lei n° 75/98, de 19 de Novembro.
Após instrução do pedido, proferiu o Tribunal de Família e de Menores de Braga decisão condenando o FGDAM a pagar mensalmente a B. a pensão de alimentos relativa ao menor que fora confiado à sua guarda.
Foi o seguinte, o teor da decisão:
Condena-se o FGADM a pagar mensalmente a B. a pensão de alimentos relativa ao neto menor A., nascido a ../../1999, no montante mensal de 103,88 €, a que a devedora C. está legalmente obrigada.
Recusa-se, nos termos do art. 204º C.R.P., a aplicação da norma constante do art. 4º, 5 D.L. 164/99, de 13/5, por se considerar que a sua literal, e prospectiva, estatuição a torna inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 1º, 7º, 5 e 6, 8º, 13º, 63º, 3, 67º, 2 c) e g), 69º e 81º a) e b) da Constituição da República Portuguesa e, ainda que desnecessário, dado o art. 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º, 1, 24º, 1 e 2, 51º, 1, 52º, 7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, nos precisos termos em que se acima se expôs.
Nos termos conjugados do disposto nos arts. 202º, 1 e 2 e 203º C.RP., bem como artigos 8º, 1 e 3, 9º, 10º, 1 e 2 e 2006º C.C. (por referência ao art. 3º, 1 L. 75/98, de 19/11, art. 148º O.T.M. e arts. 1º, 7º, 5 e 6, 8º, 13º, 63º, 3, 67º, 2 c) e g) e 81º a) e b) C.R.P. e, ainda que desnecessário, dado o art. 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º, 1, 24º, 1 e 2, 51º, 1, 52º, 7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), por analogia, fixa-se o momento a partir do qual são devidas as prestações a cumprir pelo I.G.F.S.S., F.G.A.D.M., como sendo a partir da petição, requerimento, de intervenção do F.G.A.D.M., em Fevereiro de 2010, mês ao qual, e a partir do qual, os pagamentos do I.G.F.S.S. terão de se reportar.
O C.D.S.S. deverá, nos termos do art. 519º C.P.C. (pois recusa-se a aplicação do art. 4º, 5 D.L. 164/99, de 13/5, na sua literal e prospectiva disposição), comprovar aos autos, em 30 dias, ter iniciado o pagamento das prestações de alimentos mensais, devidas desde o requerimento de intervenção do F.G.A.D.M..
Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, por entender que, para efeitos do disposto no artigo 280.° da Constituição e 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, nela se continha uma recusa de aplicação da norma constante do n° 5 do artigo 4.º da Lei n° 164/99, de 13 de Janeiro.
Admitido o recurso no Tribunal, nele apresentou alegações o recorrente, sustentando que estavam no caso perfeitos os pressupostos formais de conhecimento do recurso e pugnando, a final, pela confirmação do juízo de inconstitucionalidade feito pela instância, por entender que a norma em questão, com a interpretação que fora recusada, violaria os artigos 1.º, 8.°, 13.º, 63.º, 67.°, 69.° e 81.° da Constituição.
Os recorridos não contra-alegaram.
II – Fundamentação
2. Sobre questão idêntica à constante dos autos já se pronunciou por diversas vezes o Tribunal, no sentido do não recebimento do recurso interposto pelo Ministério Público.
Como se disse no Acórdão n° 238/11:
Decidiu-se, na sentença recorrida, condenar o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) a pagar mensalmente a A. a pensão de alimentos relativa à filha menor B. (…) com efeitos desde a data da apresentação do requerimento de intervenção do FGADM.
Para tanto, a decisão recorrida desaplicou a norma do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio (que impõe que o Centro Regional de Segurança Social inicie o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal), com os seguintes fundamentos:
Recusa-se, nos termos do artigo 204º C.R.P., a aplicação da norma constante do artigo 4º 5 D.L. 164/99, de 13/5, por se considerar que a sua literal e prospectiva estatuição a torna inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 1.º, 7.° 5 e 6, 13.º, 63.°3, 67.°2 c) e g), 69º e 81.°, a) e b) da Constituição da República Portuguesa e, ainda que desnecessário, dado o artigo 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º1, 24º1 e 2, 51º1, 52º7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
Nos termos conjugados do disposto nos arts. 202º1 e 2 e 203º C.R.P., bem como artigos 8º1 e 3, 9º, 10º, 1 e 2 e 2006º C.C. (por referência ao art. 3º1 L. 75/98, de 19/11, art 148º O.T.M. e arts. 1º, 7º 5 e 6, 8º, 13º, 63º 3, 67º2 c) e g) e 81º a) e b) C.R.P. e, ainda que desnecessário, dado o art. 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º1, 24º1 e 2, 51º1, 52º7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), por analogia, fixa-se o momento a partir do qual são devidas as prestações a cumprir pelo I.G.F.S.S., F.G.A.D.M., como sendo a partir da petição, requerimento, de intervenção do F.G.A.D.M., em Novembro de 2010 [...].
O C.D.S.S. deverá, nos termos do artigo 519º C.P.C. (pois recusa-se a aplicação do artigo 4º5 D.L. 164/99, de 13/5), comprovar aos autos, em 30 dias, ter iniciado o pagamento das prestações de alimentos mensais, devidas desde o requerimento de intervenção do F.G.A.D.M. […].
Cumpre, porém, preliminarmente, decidir se tal recusa se configura processualmente como tal, para o efeito de legitimar o conhecimento de mérito do objecto do recurso, sendo certo que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76º, nº 3, da LTC).
O Tribunal Constitucional, apreciando tal questão em processos provindos do mesmo tribunal a quo, com objecto substancialmente idêntico ao destes autos, tem, na sua maioria, entendido não haver lugar a uma verdadeira recusa de aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade, pelo tribunal recorrido (neste sentido, a decisão sumária n.º 121/10 e, reiterando-a, as decisões sumárias nºs. 162/10, 167/10, 182/10, 183/10, 184/10, 185/10, 186/10, 187/10, 188/10, 190/10, 191/10, 216/10, 221/10, 222/10, 224/10, 232/10, 264/10, 306/10 e 418/10 e, bem assim, o Acórdão n.º 370/10).
Apreciou-se, em tais decisões, a decisão de recusa, proferida pelo mesmo tribunal a quo, de “aplicação do artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2009 (publicado no D.R. 1ª Série, n.º 150, de 05 de Agosto de 2009), por inconstitucionalidade (por violação dos artigos 8.º, 24.º, 69.º, 13.º, n.º 2, 63.º, n.º 3 e 67º, n.º 2, alínea c) da Constituição da República Portuguesa)”, tendo-se concluído pelo não conhecimento do objecto do recurso com a seguinte a argumentação, expendida na decisão sumária n.º 121/10 e secundada pelas decisões que, debruçando-se sobre mesmo objecto, se lhe seguiram:
3. A norma do n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99 estabelece o seguinte: «O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal».
Resulta do teor da sentença recorrida, especialmente da parte final do seu segmento decisório, que o tribunal não efectuou uma recusa de aplicação da norma do artigo 4.°, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, com fundamento em inconstitucionalidade.
Pelo contrário, essa norma foi aplicada como ratio decidendi do caso, tendo sido ao abrigo da mesma que o tribunal recorrido determinou que o CDSS iniciasse o pagamento das prestações de alimentos em causa.
Simplesmente, a decisão recorrida não aplicou tal norma, na parte respeitante ao momento em que se devem iniciar os pagamentos, com a interpretação que foi fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 aí citado, mas sim com a interpretação que o tribunal recorrido entendeu ser a correcta. Entendimento, esse, fundado, em boa medida, em razões, desenvolvidamente expostas, situadas no plano do direito infraconstitucional.
Resulta, na verdade, da fundamentação da sentença recorrida que esta não acolhe a interpretação constante do Acórdão n.º 12/09 apenas por entender que a mesma é inconstitucional. Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo com as regras aplicáveis não é essa, mas sim a que, a final, entendeu seguir. De facto, quando na sentença se elencam quatro motivos de discordância da interpretação seguida no acórdão de uniformização, as primeiras razões invocadas prendem-se com a interpretação da norma no plano do direito ordinário (que não cabe a este Tribunal Constitucional sindicar); e só por último se acrescenta um motivo de inconstitucionalidade.
Ora, a escolha, entre duas interpretações, de uma delas, com o concomitante afastamento da outra interpretação, não é uma verdadeira recusa de aplicação de norma. E não o é mesmo quando a interpretação afastada o foi (também) por invocadas razões de inconstitucionalidade.
O facto de a interpretação que foi afastada pelo tribunal recorrido ser aquela que foi fixada em acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não altera os dados da questão. Só assim seria se tal interpretação se impusesse como obrigatória para o tribunal recorrido. Só então é que o mesmo estaria habilitado a exercitar o poder-dever que o artigo 204.º da Constituição lhe confere, como último recurso para evitar a eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, dessa interpretação reputada inconstitucional.
Mas não tem essa eficácia a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, apesar do valor “reforçado”, que implica que a decisão judicial que a contrarie é sempre susceptível de recurso - cfr. actual artigo 678.º, n.º 2, alínea c), do CPC (cfr. neste sentido, entre outros, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 2003, Coimbra, 12-13, embora a propósito do regime anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).
Não obstante a diversidade de matérias, a questão aqui em juízo apresenta uma estrutura problemática análoga à presente no Acórdão n.º 652/09 (…). Explicitou-se, neste Acórdão, uma orientação que aqui se reitera:
[U]m tribunal de instância pode provocar a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, e mediante o recurso obrigatório do Ministério Público, de uma interpretação que ele próprio faça – interpretação que seria a inevitável ratio decidendi da questão em juízo, não fora a decisão de inconstitucionalidade que sobre ela recai. O que não pode é, através de uma artificiosa recusa de aplicação, que consta da decisão, mas não é apoiada pela fundamentação, pôr o Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que não é a sua, mas a de um outro tribunal.»
No caso vertente, a sentença recorrida decidiu recusar a aplicação da norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei nº 164/99, no seu “sentido literal e prospectivo”.
Sucede, porém, como sustentado na decisão sumária n.º 500/10, cujas razões foram secundadas pelo Tribunal Constitucional em várias decisões posteriores (cf. decisões sumárias nºs. 501/10, 7/11, 10/11, 16/11, 22/11, 24/11, 25/11, 26/11, 27/11, 127/11, 131/11, 140/11, 143/11 e 184/11 e Acórdãos nºs. 370/10, 403/10, 404/10, 426/10 e 106/11), que a solução jurídica que o tribunal a quo adopta, por via da interpretação conjugada das disposições dos artigos 202.º, n.ºs 1 e 2, e 203.º da Constituição e dos artigos 8.º, n.ºs 1 e 3, 9.º, 10.º, n.ºs 1 e 2, e 2006.º do Código Civil, e, ainda, dos artigos 20.º, 21.º, n.º 1, 24.º, n.ºs 1 e 2, 51.º, n.º 1, 52.º, n.º 7, e 53.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, por analogia, corresponde àquela a que o tribunal a quo - através de uma interpretação do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei nº 164/99 diversa da efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em acórdão uniformizador de jurisprudência – sempre havia chegado nas sentenças que motivaram as Decisões Sumárias atrás apontadas, podendo concluir-se que a solução adoptada, quanto ao momento a partir do qual os pagamentos são efectuados pela Segurança Social, por conta do Fundo, é a que resultaria de uma interpretação alternativa do preceito alegadamente desaplicado.
Ou seja, a decisão final, com argumentação modificada, é exactamente a mesma que o tribunal a quo retirava do artigo 4º, n.º 5 do Decreto-Lei nº 164/99, numa das suas interpretações possíveis. Em suma, a decisão recorrida apenas formalmente afasta a referida norma pois que, materialmente, aquilo que o tribunal recorrido faz consiste, essencialmente, em, para um determinado segmento da norma em causa – o respeitante ao momento a partir do qual as prestações são devidas (que não quanto ao momento a partir do qual as prestações começam a ser pagas), propor uma interpretação distinta daquela que retira da “literal e prospectiva disposição” – que recusa – do preceito em causa. Trata-se ainda e sempre, porém, de uma interpretação do referido trecho legal. Ora, como é jurisprudência constante deste Tribunal, não é sua função definir ou optar sobre qual a melhor ou mais adequada interpretação de que as normas de direito ordinário são susceptíveis. Ou seja, estamos mais uma vez no domínio da discussão interpretativa infraconstitucional, vedada ao conhecimento deste Tribunal.
Por tais razões, é de concluir no sentido de que a “argumentação modificada” que a decisão recorrida introduz não altera, substancialmente, a inutilidade da apreciação da questão de inconstitucionalidade por este Tribunal, tal como fundada nas diversas decisões sumárias entretanto já proferidas.
Por ser este entendimento inteiramente transponível para a questão dos autos, entende-se que, também neles, se não proferiu decisão que recuse a aplicação de uma norma, da qual caiba recurso para o Tribunal Constitucional.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos acordam em não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 07 de Julho de 2011. – Ana Maria Guerra Martins – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração anexa) – Vítor Gomes (vencido, pelas razões que já referi no ac. 238/2011) – Gil Galvão.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida.
1. Em primeiro lugar, conheceria do objecto do recurso.
É indiscutível que nem tudo o que textualmente se apresenta como recusa de aplicação de norma merece tal qualificação. No entanto, penso que as divergências entre texto e pretexto não devem, nestes domínios, ser alargadas por crivos de admissibilidade demasiadamente rígidos. A premissa é importante para a decisão a tomar no presente caso, em que é colocada ao Tribunal questão de fundo já posta em outros processos, nomeadamente nos decididos pelos Acórdãos nºs 403/2010 e 404/2010. Decidiu aqui o Tribunal não conhecer do objecto do recurso. Subscrevi a decisão, porque a estrutura argumentativa que o tribunal a quo então oferecia era tal que induzia à incerteza quanto ao que, com ela, efectivamente se pretenderia. E como também eu penso “que um tribunal de instância (…) não pode (…) pôr o Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que não é a sua”, votei, perante a incerteza, que se não recebesse o recurso interposto pelo Ministério Público.
Mas perante uma outra decisão judicial – como aquela que agora nos surge - que, pretendendo colocar ao Tribunal o mesmíssimo problema já antes formulado, erradica da sua estrutura argumentativa o ponto de incerteza, não me parece legítimo continuar a insistir na tese do não recebimento do recurso. Julgaria, por isso, a questão, chegando no entanto a uma decisão final de não inconstitucionalidade.
2. A decisão recorrida recusa a aplicação da norma constante do nº 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, na interpretação segundo a qual a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo FGDAM, em substituição do devedor, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer pretensões anteriores. Como a razão pela qual é afastada esta leitura da norma é a da sua inconstitucionalidade, daqui se infere que, no entender do tribunal a quo, resulta da Constituição a leitura contrária: ou seja, resulta da Constituição que o legislador ordinário deve determinar que as prestações a pagar pelo FGDAM, em substituição do devedor, sejam exigíveis a partir do momento em que se requereu a intervenção do fundo de garantia de alimentos.
Não vejo, porém, como sufragar semelhante conclusão.
As normas de direito internacional e de direito supranacional no caso invocadas valerão seguramente, e em situações de incerteza quanto ao sentido a atribuir a uma certa norma infraconstitucional, como instrumentos auxiliares da determinação de qual seja o conteúdo do “melhor direito”. Mas esta é uma questão sobre a qual, como bem se sabe, não tem o Tribunal Constitucional que se pronunciar. E fundando-se o juízo de inconstitucionalidade, que a si lhe cabe, apenas na violação directa (por parte do legislador ordinário) de “normas e princípios” da Constituição, não vejo que “normas” e “princípios” tenha aqui o mesmo legislador lesado – ao ponto de se concluir que sobre ele impenderia o dever líquido e certo de determinar que as prestações em causa fossem exigíveis a partir do momento em que se requeresse a intervenção do Fundo.
Para fundar a existência desse dever invoca desde logo a decisão recorrida o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP). Há no entanto uma diferença entre a igualdade como tarefa fundamental do Estado (artigo 9.º) – entendida como tarefa de toda a comunidade política de realização dos ideais constitucionais de justiça social – e a igualdade perante a lei e através da lei (artigo 13.º) – entendida como garantia jurídica da proibição de diferenças arbitrárias entre as pessoas que venham a ser estabelecidas pelo legislador, e como garantia jurídica da imparcialidade da administração e da neutralidade do poder judicial. A “realização” ou não “realização” da primeira igualdade não é sindicável pelo Tribunal Constitucional. A observância (ou não observância) da segunda é-o, na exacta medida que dela (dessa observância) depende também o cumprimento do princípio do Estado de direito. No caso, não parece que tenha sido lesada essa dimensão da igualdade que é a única sindicável pela justiça constitucional.
Restam, como parâmetros de validade ainda susceptíveis de ser aplicados, os decorrentes dos artigos 69.º (protecção da infância) e 63.º (segurança social e solidariedade). [O princípio da dignidade da pessoa humana, inserto no artigo 1.º, é, no sistema constitucional, um princípio de máxima densidade axiológica e de mínima determinação de conteúdo, o que não pode deixar de condicionar o alcance prescritivo que se lhe reconhece. A sua capacidade para fundar, directamente, juízos de invalidade de escolhas legislativas demonstrar-se-á por isso em casos contados.]
Não discuto a tese, que me parece boa, segundo a qual também das normas constitucionais que consagram direitos sociais se podem retirar – tal como das normas que consagram direitos de defesa – vínculos precisos e certos do legislador. No entanto, sendo os direitos a prestações aquilo que são e exigindo eles do Estado aquilo que exigem, parece-me claro que das normas que os consagram só resultarão vínculos precisos e certos para o legislador ordinário naquelas situações em que se torna claro que nenhuma escolha lhe cabe quanto ao modo e ao tempo de efectivação do direito. Diz a Constituição que as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, e que o sistema de segurança social protege os cidadãos em situações de carência. Mas daqui não se infere que o único modo de protecção da infância carecida de alimentos seja a instituição de um fundo de garantia, e que o único tempo constitucionalmente possível para essa protecção seja o da exigibilidade das prestações desde o momento em que o fundo seja chamado a intervir. Essas são escolhas feitas pelo legislador que, legitimado pelos procedimentos democráticos próprios de uma república plural, em dado momento histórico interpretou as imposições decorrentes do artigo 63.º e 69.º da CRP.A meu ver, não pode o Tribunal substituir-se-lhe. - Maria Lúcia Amaral.