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Processo n.º 374/09
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. A., S.A., interpôs, para o Tribunal Administrativo Central Administrativo Sul, recurso de agravo do despacho de 19 de Março de 2006 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que indeferira o requerimento da recorrente para prosseguimento de trabalhos de construção civil, trabalhos estes que estavam automaticamente suspensos por efeito da acção administrativa interposta pelo Ministério Público nos termos do disposto no artigo 69.º n.º 2 do DL n.º 555/99 de 16 de Dezembro, com a redacção dada pelo DL n.º 177/2001. Por acórdão de 25 de Setembro de 2008, o Tribunal Administrativo Central Administrativo Sul indeferiu a pretensão, decidindo, para o que aqui releva, da seguinte forma:
“3.1- Quanto à aplicação de normas alegadamente inconstitucionais materialmente.
O art. 69º do DL 555/99, de 16-12, estabelece:
- No nº 1, que “Os factos geradores das nulidades previstas no artigo anterior e quaisquer outros factos de que possa resultar a invalidade dos actos administrativos previstos no presente diploma devem ser participados ao Ministério Público, para efeitos de interposição do competente recurso contenciosos e respectivos meios processuais acessórios”.
- No nº 2, que, “Quando tenha por objecto actos de licenciamento ou autorização com fundamento em qualquer das nulidades previstas no artigo anterior, a citação ao titular da licença ou da autorização para contestar o recurso referido no nº 1 tem os efeitos previstos no artigo 103º para o embargo, sem prejuízo no número seguinte”.
- No n.º 3, que “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, autorizar o prosseguimento dos trabalhos caso do recurso resultem indícios de ilegalidade da sua interposição ou da sua improcedência, devendo o juiz decidir esta questão, quando a ela houver lugar, no prazo de 10 dias”.
A propósito das alegadas inconstitucionalidades materiais, o Recorrido veio, antes de mais, opor que “Nas decisões transitórias não deve ser conhecida a inconstitucionalidade por falta de pressuposto processual de admissibilidade de tal recurso” de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, invocando, a título de exemplo, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 151/85, 221/2000 e 235/01.
Não tem, no entanto, razão, por a problemática apreciada naqueles arestos não ser a que se coloca nos presentes autos (e ainda nos acs nºs 400/97, 664/97 e 442/00, publicados na 2.ª Série do Diário da República de, respectivamente, 31 de Dezembro de 1985, 17 de Julho de 1977 e 18 de Março de 1988, tudo referido no citado aresto 235/01).
Com efeito, nesses acórdãos, como se mostra claramente explicado no acórdão nº 235/01, proc. nº 707/2000, as normas alegadamente inconstitucionais eram aplicáveis, simultaneamente, quer no domínio do procedimento cautelar, quer no domínio da acção principal correspondente, sendo precisamente a circunstância dessa aplicação se verificar em ambos, que, segundo tais arestos, torna inadmissível o recurso interposto no âmbito da providência, atento o valor meramente provisório do juízo de inconstitucionalidade emitido aí (entendimento que, sendo embora maioritário, não é, no entanto, unânime, o que é demonstrado, por ex., no mesmo acórdão, pelos votos de vencido nele lavrados).
Ora, não é, claramente, o caso das normas adjectivas que a Recorrente considera inconstitucionais. O eventual juízo da sua inconstitucionalidade não tem lugar no julgamento do mérito da acção administrativa especial intentada pelo Magistrado do Ministério Público, sendo a questão decidida no despacho recorrido, não uma decisão provisória como este alega, mas uma decisão definitiva sobre os efeitos da citação ao titular da licença ou da autorização da respectiva operação urbanística até ao trânsito em julgado da decisão final dessa acção.
3.1.1- Sendo assim, impõe-se a este Tribunal conhecer os erros de julgamento invocados como decorrentes da aplicação de normas inconstitucionais, começando logicamente pelo nº 2 do art. 69º, por ser essa a disposição que estabelece o efeito da suspensão da licença ou autorização impugnadas com a citação ao respectivo titular para contestar a acção intentada pelo Ministério Público.
3.1.1.1- A Recorrente sustenta que esse preceito é materialmente inconstitucional “por ofensa do princípio da igualdade, ao distinguir o efeito das acções aí previstas consoante o seu autor seja o Ministério Público ou qualquer cidadão, dispensado o Ministério Público (e já não outro cidadão) de qualquer ónus de alegação e prova de factos e razões de direito capazes de convencer o tribunal da justiça e utilidade da suspensão da eficácia da licença objecto de impugnação, ofendendo ainda o princípio da proporcionalidade”(2.ª conclusão da alegação de recurso, cfr. ponto I).
Adianta-se que não lhe assiste qualquer razão.
Com efeito, dispõe o nº 1 do art. 219º da CRP que “Ao Ministério Público compete (...) defender os interesses que a lei determinar (...) e defender a legalidade democrática”, competência que, não sendo constitucionalmente conferida ao cidadão comum, não permite equipar, na defesa de tais interesses, o Ministério Público àquele.
É, pois, a própria Constituição que atribui ao legislador ordinário competência para seleccionar os interesses públicos cuja defesa é imposta ao Ministério Público e, consequentemente, para estabelecer os meios considerados adequados e necessários a essa tarefa.
Portanto o n.º 1 do citado art. 69º, antes transcrito, constitui uma das disposições legais que, em concretização daquela preceito constitucional, atribui ao Ministério Público a defesa da legalidade do interesse público urbanístico, que, ainda o legislador constitucional, considerou prevalecente relativamente ao interesse privado, conforme resulta, designadamente, da al. c) n.º 2 do art. 65º da CRP, ao estabelecer que a estimulação da construção privada está subordinada ao interesse geral.
Temos, pois, que o regime especial previsto no nº 2 do art. 69º do DL 555/99, nas acções administrativas especiais (em conformidade com o art. 191º do CPTA) intentadas pelo Ministério Público com fundamento em qualquer das nulidades previstas no art. 68º do mesmo diploma para os actos de licenciamento e autorização de obras de urbanização (respeitantes às mais graves violações do quadro legal vigente), que dispensa aquele autor (e não dispensa o administrado comum que intente a mesma espécie de acção com idêntica fundamentação) de obter uma decisão jurisdicional, nomeadamente, de suspensão da licença ou autorização impugnadas e dos trabalhos de execução da obra (art. 103º, nºs 1 e 2 do DL 555/99), assenta na designação do legislador constitucional apenas daquela entidade (e não de outra) para prosseguir a defesa da legalidade dos interesses públicos seleccionados pelo legislador ordinário.
Portanto, o regime especial do nº 2 do citado art. 69º, de salvaguarda da legalidade urbanística nas situações previstas no art. 68º, que só confere à citação do titular da licença ou autorização para a acção proposta pelo Ministério Público, o efeito suspensivo da licença ou autorização e dos trabalhos de execução da obra, não viola os princípios constitucionais da igualdade e/ou da proporcionalidade, por esse Autor, na defesa da legalidade dos interesses públicos que lhe é imposta pelo legislador, não estar equiparado a qualquer autor comum.
Portanto, improcede a 2.ª conclusão formulada pela Recorrente.
3.1.1.2- Impõe-se esclarecer que a Recorrente não formulou qualquer conclusão de que essa disposição fosse ainda materialmente inconstitucional por violação do princípio da tutela judicial efectiva decorrente dos arts 20.º e 268º, nº 4 da CRP, embora o tivesse feito expressamente ao longo da sua alegação de recurso (cfr. fls 20 a 26).
Com efeito, na 1ª conclusão dessa alegação, a Recorrente “concluiu” apenas que o nº 3 do citado art. 69º enferma daquela modalidade de inconstitucionalidade por violação de tais preceitos constitucionais, afigurando-se, por isso, ter prescindido do fundamento de inconstitucionalidade do n.º 2 do art. 69º por violação do princípio da tutela judicial efectiva.
Apesar disso, sempre se dirá que esta disposição não viola esse princípio.
Na verdade, do alegado pela Recorrente apenas se extrai que ela considera que o efeito suspensivo automático previsto no nº 2 do art. 69º do DL 555/99 viola a «proibição da “indefesa”» que o direito à tutela judicial efectiva compreende, por privar o titular da licença ou da autorização da operação urbanística dos efeitos dela, à margem de qualquer decisão judicial e sem possibilidade de exercício do direito de defesa decorrente da referida proibição.
Vejamos.
A «proibição da “indefesa”» que a Recorrente refere como sendo violada pela norma em apreço, compreendida para o «candidato positivo reentrante no âmbito normativo do nº 1 do art. 20º da CRP», «consiste na privação ou limitação do direito de defesa perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito» (cfr. nota V ao art. 20º, págs 164, 3.ª ed., da “Constituição da República Portuguesa Anotada” por JJ. Gomes Canotilho e Vital Moreira).
Ora, o que o nº 2 do citado art. 69º estabelece é um efeito decorrente da citação do titular da licença ou autorização para contestar a acção, o qual, em conformidade com a sua parte final (“sem prejuízo do disposto no número seguinte”), poderá ser sustado, oficiosamente ou a requerimento do interessado, se se verificar alguma das situações previstas no nº 3 do mesmo artigo, devendo o tribunal decidir tal questão no curto prazo de 10 dias, o que assegura àquele interessado a defesa do seu direito ou interesse na continuação dos trabalhos na pendência da acção. Portanto, aquela disposição não contém uma limitação do direito de defesa do titular da licença ou autorização que viole a «proibição da “indefesa”» compreendida no âmbito normativo do nº 1 do art. 20º da CRP.
Aliás, o art. 69º do DL 555/99 mantém o regime já anteriormente consagrado no art. 53º do DL 445/91, de 20-1 1 (na redacção do DL 250/94, de 15-10), que atribuía, como resultado directo da citação do titular da licença, expressamente, efeito suspensivo ao recurso contencioso interposto pelo Ministério Público dos actos administrativos nulos ou anuláveis nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 52º desse diploma.
Em suma, o nº 2 do art. 69º do DL 555/99 não viola o direito à tutela judicial efectiva, sendo ainda perfeitamente deslocada a afirmação feita pela Recorrente a propósito desse preceito, de que o mesmo coloca “em causa valores fundamentais imanentes a qualquer Estado de Direito como a Dignidade da Pessoa Humana (arts 1º e 2º da Constituição)”.
Pelo exposto neste e no sub-ponto 3.1.1.1, improcede também a 3.ª conclusão, na parte que respeita àquele normativo, formulada pela Recorrente.
3.1.1.3- Como já se referiu, a Recorrente sustenta que o no 3 do art. 69º “enferma de inconstitucionalidade material por violação do princípio da tutela judicial efectiva (arts 20º e 268.º/4 da Constituição), colocando em causa valores fundamentais imanentes a qualquer Estado de direito como a dignidade da pessoa humana (arts 1.º e 2º da Constituição)”, “prevendo que o titular da licença, logo que citado para a acção fique de imediato privado dos efeitos jurídicos resultantes da licença administrativa sem qualquer prévia possibilidade de contraditório e defesa dos seus direitos.
Ora, não é o n.º 3 mas o nº 2 do art. 69º do DL 555/99 que estabelece que “a citação ao titular da licença ou da autorização (...) tem os efeitos previstos no artigo 103º para o embargo)).
Como já dissemos, o citado nº 3, em consonância com a parte final do nº 2, é precisamente a disposição legal que permite que o tribunal, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, autorize o prosseguimento dos trabalhos caso resultem indícios de ilegalidade na interposição da acção ou de improcedência da mesma, devendo decidir a questão no curto prazo de 10 dias.
Sendo assim, o nº 3 do art. 69º, em relação ao efeito da citação estabelecido no nº 2, não priva o titular da licença ou autorização de, perante os órgãos judiciais, defender o seu interesse na continuação dos trabalhos na pendência da acção, antes lhe assegura o exercício dessa defesa.
Mas a Recorrente entende também que o simples facto de a letra daquela disposição estabelecer que a concessão de autorização para a prossecução dos trabalhos só pode ocorrer no caso de existirem “indícios de ilegalidade da interposição da acção ou da sua improcedência” é, por si, violadora dos arts 20.º e 268.º, n.º4 da CRP, uma vez que os efeitos da licença ou autorização ficam suspensos sem que o seu titular possa ver ponderados os interesses que visa defender com a prossecução dos trabalhos.
Mais uma vez sem razão.
O legislador, perante a necessidade de salvaguardar a legalidade urbanística nas situações de mais graves violação do quadro legal em vigor, estabeleceu, no n.º3 do citado art. 69.º, que só indícios da sua improcedência justificam a possibilidade de concessão de autorização para a continuação dos trabalhos de construção até a acção ser definitivamente decidida, o que não com os arts. 20.º e 268.º, n.º4 da CRP
Não prevendo o citado n.º 3, para a concessão da referida autorização, uma ponderação dos prejuízos decorrentes para interesses privados concretos em causa e o seu confronto com os decorrentes para o interesse público urbanístico prosseguida na acção, é de concluir que a decisão judicial recorrida fez correcta interpretação desse preceito ao entender que a autorização para a continuação dos trabalhos requerida pelo titular da licença só poderia fundar-se na existência de indícios de ilegalidade na interposição da acção ou de improcedência da mesma”.
2. Inconformado, o recorrente recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, em requerimento do seguinte teor:
“As questões de inconstitucionalidade que se pretendem ver decididas foram suscitadas durante o processo, no pedido de autorização apresentado junto do Tribunal de 1:ª Instância (v. arts. 1.º a 7.º desse pedido) e nas alegações de recurso jurisdicional apresentadas junto do Tribunal Central Administrativo (v. conclusões 1.ª e 5.ª).
As normas ou princípios constitucionais violados, cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, são as seguintes:
1) Os nºs 2 e 3 do art. 69º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dez. aplicados na decisão recorrida, violam o princípio da tutela judicial efectiva (arts. 20º e 268º/4 da Constituição), ao atribuir efeito suspensivo à acção com a simples citação do contra- interessado sem que este antes possa defender-se (v. conclusão 1.ª das alegações de recurso para o TCA)
2) O n.º 2 do art. 69º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dez. aplicado na decisão recorrida, ao atribuir efeito suspensivo à acção com a simples citação do contra-interessado, configura uma medida sancionatória com base em culpa presumida, violando o princípio da culpa e a presunção de inocência (v. artigos 5.º e 6.º do pedido de autorização apresentado junto do Tribunal de 1.ª Instância)
3) O n.º 3 do art. 69º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dez., interpretado na perspectiva adoptada no acórdão recorrido, no sentido do juízo acerca do pedido de autorização previsto nesse normativo prescindir da ponderação entre os interesses (públicos e privados) com a suspensão das obras e os interesses (públicos e privados) com a sua execução, viola o princípio da tutela judicial efectiva (arts. 20.º e 268º/4 da Constituição) – v. conclusão 5.ª das alegações de recurso para o TCA
4) O n.º 3 do art. 69º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dez. interpretado na perspectiva adoptada no acórdão recorrido, no sentido do juízo acerca do pedido de autorização previsto nesse normativo prescindir da ponderação entre os interesses (públicos e privados) com a suspensão das obras e os interesses (públicos e privados) com a sua execução, impedindo em absoluto a prossecução de todo o qualquer trabalho independentemente da avaliação concreta dos prejuízos (privados e/ou públicos) que o particular visa defender, viola o princípio da proporcionalidade – v. conclusão 5.ª das alegações de recurso para o TCA
E porque está em tempo requer a sua admissão, devendo o recurso subir nos termos e condições requeridos.
3. Recebido o recurso, o recorrente foi convidado a alegar, tendo concluído da seguinte forma:
1ª Ao atribuir efeito suspensivo às acções administrativas especiais aí previstas em resultado da sua simples propositura pelo Ministério Público, prevendo que o titular da licença, logo que citado para a acção, fique de imediato privado dos efeitos jurídicos resultantes da licença administrativa sem qualquer prévia possibilidade de contraditório e defesa dos seus direitos, os ns° 2 e 3 do artigo 69° do DL 555/99, de 16 de Dez., enfermam de inconstitucionalidade material por violação do princípio da tutela judicial efectiva (arts. 20° e 268°/4 da Constituição), colocando em causa valores fundamentais imanentes a qualquer Estado de Direito como a Dignidade da Pessoa Humana (arts. 1° e 2 da Constituição).
2ª A suspensão imediata e automática de actos de licenciamento de obras em virtude da propositura de uma acção pelo Ministério Público, sem audição prévia do réu e/ou do contra-interessado e sem qualquer apreciação por um órgão jurisdicional, ainda que indiciária, acerca da eventual invalidade do acto impugnado, viola frontalmente a proibição da indefesa e o direito ao processo.
3ª O nº 2 do art. 69º em questão é incompatível com o princípio da administração executiva e com o princípio da prossecução do interesse público, dos quais decorre a eficácia e exequibilidade imediata dos actos da administração, que só podem ser suspensos por decisão judicial.
4ª O artigo 69°/2 do DL 555/99, de 16 de Dez., é materialmente inconstitucional por ofensa do princípio da igualdade, ao distinguir o efeito das acções aí previstas consoante o seu autor seja o Ministério Público ou qualquer cidadão, dispensando o Ministério Público (e já não outro cidadão) de qualquer ónus de alegação e prova de factos e razões de direito capazes de convencer o Tribunal da justiça e utilidade da suspensão da eficácia da licença objecto de impugnação, ofendendo ainda o princípio da proporcionalidade.
3ª O n° 3 do artigo 69° do DL 555/99, de 16 de Dez., reclama a ponderação dos interesses que o titular da licença visa defender com a prossecução dos trabalhos e com a execução da licença e de todos os interesses públicos e privados em presença, sob pena de inconstitucionalidade.
4ª O artigo 69°/3 do DL 555/99, de 16 de Dez., na interpretação dele feita no acórdão recorrido, com o sentido de que a autorização aí prevista só poder ser concedida nos casos de existência de indícios de improcedência da acção e/ou da ilegalidade da sua interposição, impedindo em absoluto a prossecução de trabalhos - de todos e quaisquer trabalhos - fora desses casos, é materialmente inconstitucional por violação dos princípios da tutela judicial efectiva (v. arts. 20° e 268°/4 da CRP).
5ª Os nº 3 do art. 69º do DL 555/99, na interpretação do Tribunal a quo, limitando os requisitos de procedência do incidente de autorização aí previsto, impede que o requerente possa invocar e fazer prova perante o tribunal dos factos e fundamentos que determinariam a desnecessidade ou falta de justificação da suspensão de eficácia da licença, em clara ofensa ao direito à tutela judicial, ao processo e à prova.
6ª O artigo 69°/3 do DL 555/99, de 16 de Dez., na interpretação dele feita no acórdão recorrido, com o sentido da autorização aí prevista só poder ser concedida nos casos de existência de indícios de improcedência da acção e/ou da ilegalidade da sua interposição, impedindo em absoluto a prossecução de trabalhos - de todos e quaisquer trabalhos - fora desses casos, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (v. arts. 2°, 13° e 266°/2 da CRP).
7ª A solução legislativa não se revela como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, maxime a defesa da legalidade urbanística, nem salvaguarda eficazmente outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, pelo que viola o princípio da adequação.
8ª O princípio da exigibilidade mostra-se violado pelo art. 69º/3 do DL 555/99, pois verifica-se que as medidas legais destinadas a salvaguardar a legalidade urbanística não são as exigidas para alcançar os fins em vista, e que o legislador dispunha e dispõe de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato.
9ª Também o princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito, se mostra violado, pois as medias legais são claramente excessivas e desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos.
10ª Nos feitos submetidos a julgamento não podem os Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados (v. art. 204° cio Diploma Fundamental), pelo que, no caso dos autos, deveria o Tribunal a quo ter decidido pela inconstitucionalidade material das normas dos nºs 2 e 3 do art. 69º do DL 555/99, desaplicando as mesmas.
4. O representante do Ministério Público neste Tribunal alegou e concluiu:
a) o presente recurso é interposto de uma decisão interlocutória, do TAF de Lisboa, confirmada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, pelo que constitui um juízo de mera probabilidade, não definitivo, como tal insusceptível de ser qualificado como “decisão do tribunal”, para efeitos do nº 1 do art. 280 da Constituição e do art. 70 nº 1 alínea b) da LTC;
b) no presente recurso, não parece estar em causa uma “questão de constitucionalidade normativa”, mas sim a recusa da recorrente em aceitar a forma como o tribunal de 1ª instância aplicou um determinado preceito legal – o art. 69 do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro; duvida-se, por isso, que se encontre igualmente verificado, no presente recurso, o requisito constante do art. 72 nº 2 da LTC, que o poderia legitimar;
c) mesmo que assim se não entenda, um dos princípios gerais a atender, no âmbito do Decreto-Lei 555/99, é o de que “a validade das licenças ou autorizações das operações urbanísticas depende da sua conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis em vigor à data da sua prática” (cfr. art. 67 do mesmo diploma);
d) são nulas, por isso, designadamente, “as licenças ou autorizações previstas no presente diploma que violem o disposto em plano municipal de ordenamento do território” (cfr. art. 68 do mesmo diploma);
e) os factos geradores de nulidades e quaisquer outros factos de que possa resultar a invalidade dos actos administrativos previstos no referido diploma “devem ser participados, por quem deles tenha conhecimento, ao Ministério Público, para efeitos de interposição do competente recurso contencioso” (cfr. art. 69 nº 1 do diploma citado);
f) quando tenha por objecto actos de licenciamento ou autorização feridos de nulidade, “a citação ao titular da licença ou da autorização para contestar o recurso referido no nº 1 tem os efeitos previstos no artigo 103º para o embargo”, ou seja, determina “a suspensão imediata, no todo ou em parte, dos trabalhos de execução da obra” (cfr. art. 69 nº 2 do referido diploma);
g) o tribunal pode, contudo, autorizar o prosseguimento dos trabalhos, mas apenas no caso em que do recurso “resultem indícios de ilegalidade da sua interposição ou da sua improcedência” (cfr. art. 69 nº 3 do mesmo diploma) – trata-se, pois, de um poder vinculado do tribunal, estranho a qualquer forma de exercício de poderes discricionários;
h) a acção administrativa, que deu origem ao presente recurso, resultou da detecção de abundantes ilegalidades no processo de licenciamento da obra em questão, o que colocou o Ministério Público na necessidade de propor a referida acção, para tentar remediar tais ilegalidades;
i) ao proceder desta forma, o Ministério Público agiu em defesa da legalidade democrática, dos interesses difusos e dos interesses públicos, ou seja, em defesa de valores como a protecção do ambiente, do ordenamento do território e do urbanismo, em suma, na defesa de um interesse público e do bem comum;
j) o Ministério Público agiu, por isso, também, na acção administrativa em apreciação, em defesa de interesses constitucionalmente protegidos, designadamente previstos nos arts. 65 nº 2, alínea c), 66 nº 2, alínea c), 81 alínea i) e 219 nº 1 da Constituição da República Portuguesa;
k) não há, no processo administrativo que deu origem ao presente recurso, nenhuma violação do princípio da tutela judicial efectiva: o recorrente encontrou-se, sempre, em situação de poder contestar a decisão interlocutória impugnada, designadamente dela interpondo recurso para o TCAS, o STA e, finalmente, o Tribunal Constitucional; e poderá continuar a fazê-lo até que a acção em curso se encontre concluída;
l) o disposto no art. 69 do Decreto-Lei 555/99 tem, apenas, em vista acautelar o efeito útil das acções administrativas intentadas com base na suspeita da prática de actos administrativos de licenciamento, ou de autorização de obras, feridos de nulidade, de modo a evitar a ocorrência de situações de facto consumado, que tornem tais acções absolutamente inúteis;
m) é justamente por haver, normalmente, um enorme desnível entre a posição dos infractores e a dos cidadãos, em matéria urbanística e de ordenamento do território, que a lei cometeu ao Ministério Público a defesa destes, bem como dos interesses difusos, de forma a repor a igualdade no processo, assegurando, por essa via, o efeito útil deste;
n) o art. 69 nº 2 do Decreto-Lei 555/99 determina a suspensão da execução da obra, desde que haja suspeita de nulidades que possam afectar actos de licenciamento ou autorização;
o) nessa medida, o tribunal apenas poderá autorizar o prosseguimento dos trabalhos – sublinha-se, apenas nesta situação – “caso do recurso resultem indícios de ilegalidade da sua interposição ou da sua improcedência” – o que não era, de todo, o caso dos autos;
p) tratando-se de um poder vinculado do tribunal, como se viu, este não carecia de proceder, nesta fase do processo, a nenhuma ponderação de interesses, públicos ou privados, mas apenas a de assegurar a protecção do bem comum e a defesa estrita do princípio da legalidade – o que fez!
q) não há, assim, nenhuma violação do princípio da proporcionalidade, que, aliás, se não vê como poderá ter lugar no âmbito de um poder vinculado, por natureza, não discricionário;
r) ao presente recurso deverá, por isso, ser negado provimento.
5. A recorrida Câmara Municipal de Vila Franca de Xira não alegou.
II - FUNDAMENTAÇÃO
6. Invoca o Ministério Público que não se encontram preenchidos os pressupostos para a interposição do presente recurso ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pois não se estaria perante uma decisão definitiva de um tribunal, já que a decisão sobre a suspensão das obras durante a pendência da acção seria uma decisão meramente provisória.
De facto, é jurisprudência do Tribunal Constitucional que as decisões judiciais provisórias são insusceptíveis de ser qualificadas como “decisão do tribunal” para os efeitos da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional. No Acórdão n.º 151/85, respeitante à apreciação de uma norma aplicada em sede de providência cautelar da suspensão do despedimento, afirmou o Tribunal:
“Nos procedimentos cautelares não cabe senão uma decisão 'provisória' relativamente a questão da constitucionalidade de normas de que substantivamente dependa a resolução da questão a decidir no processo principal e, portanto, a concessão da providência.
(…)
De tal decisão não cabe recurso para o Tribunal Constitucional, pois que de outro modo se teria que admitir ou que também este Tribunal proferisse uma decisão 'provisória' sobre a constitucionalidade, o que seria absurdo e incongruente com o sistema de fiscalização de constitucionalidade delineado na Lei Fundamental; ou que decidisse definitivamente no próprio procedimento cautelar questão que haveria de ser resolvida na acção de que tal procedimento depende, o que significaria a subversão da índole e finalidade do próprio procedimento”.
Este entendimento tem sido seguido pela jurisprudência do Tribunal, nomeadamente nos Acórdãos n.ºs 400/97, 664/97, 442/00, 235/01 e 394/07.
Todavia, o presente caso reporta-se a uma situação diversa dos casos que deram origem aos citados arestos. O acórdão aqui recorrido trata da impugnação de uma decisão interlocutória proferida em 1ª instância que não envolve uma apreciação sobre o fundo das questões em causa na acção principal. Já as normas impugnadas nos processos que deram origem à mencionada jurisprudência eram aplicáveis simultaneamente no domínio do procedimento cautelar e no domínio da acção principal correspondente. Nesses acórdãos, foi precisamente a circunstância de as normas imputadas de inconstitucionais serem decisivas para a solução da causa principal que o Tribunal Constitucional considerou inadmissível a interposição de recurso no âmbito do procedimento cautelar. Como se diz no Acórdão n.º 394/07:
Tem entendido o Tribunal Constitucional, na verdade, que não cabe recurso de constitucionalidade das decisões proferidas nos procedimentos cautelares quando a solução dada à questão que é objecto do recurso se repercute não só na providência em análise como na acção principal de que aquela depende. Efectivamente, dada a natureza do procedimento cautelar – que não visa a resolução definitiva da questão jurídica que lhe está subjacente, mas apenas a sua solução provisória para evitar o periculum in mora que poderá resultar em cada caso submetido a apreciação jurisdicional – da decisão proferida no âmbito destes procedimentos não pode caber, por princípio, recurso de constitucionalidade, por não ser possível dar sequer por verificada, numa decisão que se limita a valorar o fumus bonnus iuris, a aplicação definitiva de norma substantiva aplicada como ratio decidendi da decisão provisória. Além disso, uma decisão (por natureza definitiva) quanto à inconstitucionalidade de norma substantiva aplicada no procedimento cautelar teria como resultado o julgamento definitivo da lide.
[...]
É perante esta dependência do procedimento cautelar face à acção principal que tal jurisprudência se tem firmado e reiterado, por ser efectivamente inconcebível, no sistema de fiscalização de constitucionalidade normativa delineado na Constituição, que o Tribunal houvesse de proferir uma decisão provisória de constitucionalidade – ver, neste sentido, o Acórdão n.º 151/85, publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Dezembro de 1998.
O caso das normas impugnadas no presente recurso é diverso. As normas ínsitas nos n.º 2 e 3 do Artigo 69.º do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com a redacção dada pelo DL n.º 177/2001, de 4 de Junho, visam produzir um efeito liminar decorrente da mera interposição da acção, não sendo aplicadas no julgamento do mérito da acção administrativa especial intentada pelo Ministério Público. A decisão tomada com base nas referidas normas é uma decisão definitiva sobre os efeitos suspensivos da autorização administrativa resultante da citação até ao trânsito em julgado da decisão final da acção principal. Como explica o Acórdão n.º 442/00:
“O critério decisório assenta não na natureza adjectiva ou substantiva da norma em causa, mas na circunstância de estar ou não em causa a sua aplicação, simultaneamente, na acção principal e na providência cautelar, o que não é equivalente.
A circunstância de a mesma norma ser aplicável em ambos os casos é que torna inadmissível o recurso interposto no âmbito da providência cautelar, atento o valor meramente provisório, não da decisão de mérito nela proferida, mas do juízo de constitucionalidade emitido igualmente ao julgar a providência cautelar”.
Em suma, os n.º 2 e 3 do artigo 69.º do DL n.º 555/99 são normas susceptíveis de afectar directamente os direitos ou interesses do particular e, por outro lado, não serão a ratio decidendi da causa principal, pelo que o juízo a proferir pelo Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade das mesmas não poderá considerar-se meramente provisório, para o aludido efeito.
7. Invoca ainda o recorrido Ministério Público que a recorrente contesta, não o disposto no artigo 69.º, mas sim a aplicação que dessa norma fizeram os tribunais administrativos. Todavia, deve reconhecer-se que a recorrente põe em causa, para além do juízo subsuntivo dos factos ao direito realizado pelo acórdão recorrido, a conformidade constitucional da norma ínsita nos n.ºs 2 e 3 do artigo 69.º do DL 555/99, com a sua vocação de regra susceptível de aplicação a uma generalidade de situações. De facto, a recorrente contesta directamente a solução normativa que as referidas normas autorizam, que impõe, por um lado, o efeito suspensivo da acção decorrente da simples citação do contra-interessado e, por outro, a interpretação de acordo com a qual o juízo acerca do pedido de autorização previsto no n.º 3 do artigo 69.º prescindir da ponderação dos interesses postos em causa com a sua execução.
8. As normas imputadas de inconstitucionais no presente recurso são o n.º 2 e o n.º 3 do artigo 69.º do DL n.º 555/99 de 16 de Dezembro, com a redacção dada pelo DL n.º 177/2001, de 4 de Junho. É a seguinte a redacção das referidas normas:
Artigo 69.º
Participação e recurso contencioso
1 – Os factos geradores das nulidades previstas no artigo anterior e quaisquer outros factos de que possa resultar a invalidade dos actos administrativos previstos no presente diploma devem ser participados, por quem deles tenha conhecimento, ao Ministério Público, para efeitos de interposição do competente recurso contencioso e respectivos meios processuais acessórios.
2 – Quando tenha por objecto actos de licenciamento ou autorização com fundamento em qualquer das nulidades previstas no artigo anterior, a citação ao titular da licença ou da autorização para contestar o recurso referido no n.º 1 tem os efeitos previstos no artigo 103.º para o embargo, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 – O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, autorizar o prosseguimento dos trabalhos caso do recurso resultem indícios de ilegalidade da sua interposição ou da sua improcedência, devendo o juiz decidir esta questão, quando a ela houver lugar, no prazo de 10 dias.
São vários os fundamentos de inconstitucionalidade invocados no requerimento de interposição, onde se fixa o objecto do recurso. Em primeiro lugar, a violação do princípio da tutela judicial efectiva. Em segundo lugar, a violação do princípio da culpa e a presunção de inocência. Por fim, a violação do princípio da proporcionalidade, por a norma prescindir da ponderação dos interesses postos em causa com a suspensão das obras.
Na sua alegação, a recorrente abandonou a invocação da violação do princípio da culpa e da presunção de inocência, embora adiante um novo fundamento, a violação do princípio da igualdade. Ora, a verdade é que ambos estes motivos de desconformidade constitucionalidade das norma impugnadas sempre seriam manifestamente improcedentes; o primeiro, porque o princípio da culpa e da presunção da inocência previsto no artigo 32.º da Constituição tem um campo de aplicação circunscrito ao processo criminal. Mas, sendo certo que alguns dos princípios inerentes ao processo penal se aplicam subsidiariamente a outros domínios sancionatórios, não poderá afirmar-se que as normas objecto do presente recurso tenham essa natureza. No que toca à violação do princípio da igualdade (o recorrente considera que o artigo 69.º, n.º 2 é inconstitucional “por ofensa do princípio da igualdade, ao distinguir o efeito das acções aí previstas consoante o seu autor seja o Ministério Público ou qualquer cidadão, dispensando o Ministério Público (e já não outro cidadão) de qualquer ónus de alegação e prova de factos e razões de direito capazes de convencer o Tribunal da justiça e utilidade da suspensão da eficácia da licença objecto de impugnação”) cumpriria dizer o seguinte: se é certo que a solução consagrada na norma em referência para as acções que tenham por fundamento os factos elencados no artigo 68° do Decreto-Lei n.º 555/99 distingue os efeitos a atribuir a tais acções consoante o seu autor seja o Ministério Público ou qualquer cidadão, reservando o efeito suspensivo apenas para os casos em que a iniciativa da acção seja pertença do Ministério Público, já não poderá dizer-se que não existem razões para distinguir as duas situações. Na verdade, como dispõe o n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, ao Ministério Público compete “defender a legalidade democrática”, tendo, assim, uma posição especial nestes processos, desligada de quaisquer interesses particulares e unicamente orientada pela defesa do interesse público. É esta característica da matéria em causa que justifica que o simples impulso processual produza, neste caso, efeitos diferentes das acções propostas pelos particulares, por ser de presumir que a defesa do interesse público aconselha essa solução de natureza cautelar.
O objecto do presente recurso circunscreve-se, portanto, à análise da violação do princípio da tutela judicial efectiva e do princípio da proporcionalidade pelos artigos 69.º, n.º 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro, com as alterações do Decreto-Lei n.º 177/2001 de 4 de Junho.
9. O princípio da tutela judicial efectiva, considera a recorrente, está duplamente posto em causa. Em primeiro lugar, pelos n.º 2 e n.º 3 do artigo 69.º, ao atribuírem efeito suspensivo à acção, com a simples citação do contra-interessado, sem que este possa defender-se antecipadamente. Em segundo lugar, pelo n.º 3, quando entendido no sentido de que a autorização prevista na norma prescinde da ponderação dos interesses em presença.
Está em causa, assim, saber, em primeiro lugar, se os n.ºs 2 e 3 do artigo 69.º do DL n.º 555/99 ao atribuírem aquele efeito suspensivo à simples citação do contra-interessado, violam o princípio da tutela judicial efectiva, consagrado nos artigos 20.º e 268.º n.º 4 da Constituição.
O princípio do acesso ao direito, em si mesmo, não fica prejudicado pela simples suspensão da eficácia dos actos administrativos em causa. Assim já o afirmou o Tribunal Constitucional: “não se vê como é que o mecanismo da suspensão de eficácia pode afectar, e em que medida, o direito ao acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos dos interessados requerentes” (Acórdão n.º 450/91). Em sentido semelhante, o Acórdão n.º 345/99 (Diário da República, II Série, de 17 de Fevereiro de 2000) referiu:
“E também não há inconstitucionalidade por violação da garantia de tutela juridicional efectiva mediante a adopção de medidas cautelares adequadas, consagrada a partir de 1997 no nº 4 do artigo 268º, seja porque os limites resultantes dos interesses constitucionalmente protegidos que já se referiram são visados à partida pela exigência constitucional de adequação daquelas medidas cautelares, ou seja porque se deduzem sistematicamente da protecção constitucional ao interesse público prosseguido pela Administração e à necessária eficácia desta”.
Para a recorrente, está em causa uma específica dimensão do direito à tutela judicial efectiva, a designada 'proibição da indefesa'. Alega, com efeito, que o particular, titular da licença de construção, fica de imediato privado dos efeitos da sua licença logo que recebe a citação para a acção, à margem de qualquer decisão judicial e sem possibilidade de exercer o seu direito de defesa.
O princípio da proibição da indefesa, ínsito no direito fundamental de acesso à justiça, tem sido caracterizado pelo Tribunal Constitucional como a proibição da “privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito' (Acórdão n.º 278/98). No Acórdão n.º 353/08 (Diário da República, IIª Série, de 11-08-2008) refere o Tribunal:
“ O Tribunal tem entendido o contraditório, exigido no artigo 20.º da Constituição, essencialmente, como o direito de ser ouvido em juízo, do qual retira uma genérica proibição de indefesa, isto é, a proibição da limitação intolerável do direito de defesa do cidadão perante o tribunal onde se discutem questões que lhe dizem respeito”.
Mas o Tribunal tem feito sentir a necessidade de ponderar a preocupação de garantir o acesso ao tribunal para permitir o contraditório, com outros princípios processuais. Afirmou-se no Acórdão n.º 20/2010, (Diário da República, II Série, de 22-02-2010):
“Da estrutura complexa que detém o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da Constituição, decorrem, para o legislador ordinário, para além da obrigação que se cifra em não lesar o princípio da 'proibição da indefesa', a obrigação de conformar o processo de modo tal que através dele se possa efectivamente exercer o direito a uma solução jurídica dos conflitos, obtida em tempo razoável e com todas as garantias de imparcialidade e independência, existindo à partida, entre os valores da 'proibição da indefesa' e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica, uma relação de equivalência constitucional, devendo o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em benefício exclusivo de outro ou de outros”
O Tribunal reconhece, portanto, ser possível introduzir limitações à garantia de acesso aos tribunais em nome do interesse geral ou público (assim, o Acórdão n.º 658/06, publicado no Diário da República, IIª Série, de 09-01-2007).
Desta jurisprudência decorre que o princípio da proibição da indefesa não é um princípio absoluto, devendo ser ponderado com outros princípios conflituantes, o que pode levar à limitação do seu alcance, desde que não se transforme numa restrição intolerável.
A propósito da suspensão da eficácia de actos administrativos, o Tribunal tem-se debruçado principalmente sobre a questão de saber se a inexistência de efeito suspensivo do recurso contencioso (hoje, acção administrativa especial) e a consagração de um mecanismo de suspensão judicial de eficácia, sujeito à exigência da verificação de prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação, viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva. Mas tem sido entendimento constante que a exigência dos referidos requisitos se revela conforme aos parâmetros constitucionais de acesso à justiça administrativa, já que, em concreto, os pressupostos legais dessa suspensão – que se radicam na liberdade de conformação do legislador ordinário – têm preservado o conteúdo essencial da garantia de recurso contencioso, não impedindo o interessado de obter protecção para os seus direitos e interesses legalmente protegidos (assim, os Acórdãos n.ºs 450/91, 8/95, 194/95).
Se é verdade que a situação analisada nesses arestos se diferencia da situação presente, alguns aspectos importa ter em conta no presente caso. Desde logo, no que toca à suspensão dos actos administrativos, pondera-se estar “na livre disposição do legislador ordinário admiti-la ou não e, caso afirmativo, definir-lhe os pressupostos” (Acórdão n.º 187/88). No mesmo sentido, o Acórdão n.º 181/98, que reiterou ficar “na livre disponibilidade do legislador limitar (ou eliminar) o poder instrumental de suspensão dos actos impugnados”. Essa margem de conformação do legislador terá de respeitar os princípios constitucionais, nomeadamente o da proibição da indefesa, pelo que haverá que saber se um sistema que preveja a regra da suspensão da eficácia do acto administrativo por interposição de recurso contencioso em casos específicos – como faz o n.º 2 do artigo 69.º do DL n.º 555/99 – mas que ao mesmo tempo preveja a possibilidade de se requerer o contrário (i.e., a execução do acto administrativo durante a pendência da acção principal) – como o faz o n.º 3 do artigo 69.º –, cabe ainda dentro da margem de conformação do legislador.
Mas a verdade é que a análise do regime do artigo 69.º permite concluir sem esforço que o legislador não ultrapassou essa margem de conformação, pois não limitou de forma intolerável o direito de defesa do contra-interessado. Se, por mero efeito da interposição da acção, a eficácia da licença ou autorização que a este foram concedidas fica suspensa, o certo é que o particular pode reagir judicialmente a este efeito, nos termos do n.º 3 do artigo 69.º, que expressamente prevê a possibilidade de o juiz autorizar o prosseguimento dos trabalhos. Assim, o particular lesado com a suspensão da eficácia dos actos administrativos em causa tem plena oportunidade de aceder aos tribunais. Tanto assim é que, no presente caso, esse direito foi exercido. A recorrente teve oportunidade, que concretizou sem obstáculo, de pedir ao tribunal autorização para prosseguimento dos trabalhos, apresentando os seus argumentos sucessivamente em duas instâncias.
Em boa verdade o referido efeito suspensivo previsto no artigo 69.º do DL 555/99 é um efeito suspensivo sob condição de o juiz não autorizar o prosseguimento dos trabalhos, autorização essa que pode ser concedida a requerimento do particular contra-interessado. Assim, do equilíbrio e da conjugação das normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 69.º do DL n.º 555/99 não resulta uma violação intolerável do princípio da indefesa. O particular, apesar do efeito automático de suspensão, goza de uma oportunidade razoável de levar ao conhecimento do tribunal as razões que militam contra esse efeito suspensivo e de, sendo caso disso, obter, em curto prazo, uma decisão favorável à sua pretensão.
10. Invoca seguidamente a recorrente que o n.º 3 do artigo 69.º viola o princípio da tutela judicial efectiva por “prescindir da ponderação entre os interesses (públicos e privados) com a suspensão as obras e os interesses (públicos e privados) com a sua execução”. Isto porque o incidente processual previsto no n.º 3 não prevê que o tribunal tenha de ponderar os prejuízos que adviriam para o interessado da paralisação das obras, já que a autorização só poderia ser concedida em caso de indícios de ilegalidade da interposição da acção ou da sua improcedência.
É certo que o princípio da proibição da indefesa se não basta com a possibilidade de o interessado se dirigir aos tribunais: deve ser-lhe permitido a demonstração dos factos que, na sua óptica, suportam o seu pedido. Assim o afirmou o Tribunal no Acórdão nº 646/2006:
“o direito de acesso à justiça integra, inter alia, o direito de o interessado produzir demonstração dos factos que, na sua óptica, suportam o «direito» ou o «interesse» que visa defender pelo recurso aos tribunais, o problema que se põe há-de residir na formulação de um juízo que pondere se o legislador, ao editar a norma em análise, respeitou, proporcionada e racionalmente, aquele direito na vertente em questão, em termos de conduzir a que, para a generalidade de situações, o interessado se não veja constrito à impossibilidade de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito”.
Ora, também aqui não assiste razão à recorrente. O n.º 3 do artigo 69.º do DL n.º 555/99 prevê que possa ser autorizada a continuação das obras em caso de ilegalidade da interposição do recurso ou de improcedência do mesmo. Nada se refere que limite a oportunidade de invocação de argumentos ou de apresentação de meios de prova, no âmbito do incidente de autorização de continuação dos trabalhos. Os interessados podem invocar factos, ou prejuízos, pois tais elementos serão tidos em consideração pelo juiz, embora, de acordo com a interpretação adoptada pelo tribunal a quo, sejam irrelevantes se não respeitarem à legalidade ou procedência da acção principal.
Ora, a questão verdadeiramente em causa neste ponto é, não o que os interessados podem invocar ou provar perante o tribunal, e o que este pode ponderar, mas sim o o facto de o tribunal estar limitado quanto aos fundamentos que podem ditar uma decisão no sentido de autorizar a continuação dos trabalhos. Essa questão não se prende com o direito de defesa dos interessados, mas sim em saber se o legislador pode limitar o poder decisório do tribunal a apenas dois fundamentos em concreto, prescindindo da tomada em consideração de interesses dos interessados que não assumam relevância para a decisão acerca da legalidade ou procedência da acção – ponto que se analisará seguidamente.
11. É neste contexto que a recorrente invoca a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 69.º, interpretado no sentido de o juízo acerca do pedido de autorização previsto nesse normativo prescindir da ponderação entre os interesses (públicos e privados) afectados com a suspensão as obras e os interesses (públicos e privados) prosseguidos com a sua execução, impedindo em absoluto a prossecução de todo e qualquer trabalho, independentemente de avaliação concreta dos prejuízos que o particular visa defender. Em causa estaria a violação do princípio da proporcionalidade. Sendo esta a interpretação que resulta da sentença recorrida, facto que não cabe ao Tribunal Constitucional discutir, resta saber se a mesma coloca em causa o aludido princípio.
O princípio da proporcionalidade decorre, desde logo, do artigo 2.º da Constituição, enquanto subprincípio estruturante do princípio de Estado de Direito (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, p. 259 e ss.). Inicialmente pensado para limitar o poder executivo, o princípio é hoje pacificamente encarado como um limite ao exercício de todas as espécies de poderes públicos – legislador, executivo e jurisdicional.
Acontece, no entanto, que a solução normativa aqui em causa resulta já da ponderação de interesses realizada pelo legislador na eleição das preferências e das opções relativas à protecção de interesses públicos e privados, no domínio das atribuições que este último se encontra democraticamente legitimado a realizar (Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2003, p. 881).
Esses interesses seriam, por um lado, os interesses que, alicerçados na defesa do princípio da legalidade, reclamariam a suspensão imediata dos trabalhos – visando evitar uma situação de facto consumado, geradora de potenciais prejuízos de difícil reparação para o interesse público, uma vez executada a obra. Por outro lado, estariam os interesses que reclamariam a continuação dos trabalhos: interesses particulares em evitar prejuízos eventualmente sofridos pelos titulares da licença ou autorização em caso de suspensão da obra.
Nesse exercício de ponderação, o legislador entendeu conceder primazia à defesa do princípio da legalidade, que reclama a imediata suspensão dos trabalhos autorizados pela licença ou autorização tida como ilegal e, mesmo assim, o efeito suspensivo ditado pela interposição de acção por parte do Ministério Público apenas se verifica em relação a actos administrativos inquinados de um vício grave, cominado com nulidade. De facto, abrangidos pela norma estão apenas actos administrativos imputados de, nos temos do artigo 68.º do DL n.º 555/99, violarem o disposto em plano municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas ou licença ou autorização de loteamento em vigor, não terem sido precedidos de consulta das entidades cujos pareceres, autorizações ou aprovações sejam legalmente exigíveis, ou não estejam em conformidade com esses pareceres, autorizações ou aprovações, e finalmente não terem sido precedidos de apresentação de documento comprovativo da aprovação da administração central nos casos em que a lei o exige. Trata-se, assim, de um efeito que apenas ocorre em casos de ilegalidade especialmente grave.
O legislador entendeu que, estando em causa o estrito cumprimento da lei, seria difícil visualizar de que forma considerações ligadas a interesses meramente privados se poderiam opor à defesa da legalidade. Na perspectiva do legislador, a eficácia dos actos de autorização de obras, em casos de ilegalidade especialmente grave, deve ser paralisada mediante mecanismos expeditos que obviassem à continuação dos trabalhos e à ocorrência de situações de facto consumado gravemente violadoras da lei e do interesse público correspondente. Foi esta ponderação de interesses que determinou o legislador a, por um lado, prever um efeito suspensivo automático por simples efeito de citação e, por outro lado, a apenas permitir o afastamento dessa consequência quando se revelar patente a falência da acção.
Neste exercício de ponderação entre os vários interesses conflituantes, não se pode dizer que o legislador tenha ultrapassado a margem de conformação que lhe cabe, com violação do princípio da proporcionalidade.
Desde logo, porque os interesses que o legislador entendeu como merecedores primazia – e que são os interesses em defesa dos quais o Ministério Público age no âmbito do artigo 69.º – são interesses constitucionalmente protegidos: urbanismo e ambiente (artigos 65.º 66.º da Constituição). O legislador entendeu, assim, dar prevalência – no âmbito das acções em que se discute a grave ilegalidade de actos de autorização de obras – ao interesse público, em detrimento dos interesses privados eventualmente sacrificados.
Por outro lado, a suspensão dos trabalhos e a permissão de autorização da continuação dos mesmos apenas em caso de indícios de ilegalidade ou de improcedência da acção principal constituem meios adequados e necessários para o fim em vista – a salvaguarda da defesa da legalidade e dos interesses gerais urbanísticos que o Ministério Público visa acautelar com a interposição da acção. A referida solução normativa visa obviar aos inconvenientes advindos da natural demora do processo e da continuação da execução dos trabalhos, evitando a consumação de ilegalidades urbanísticas graves.
Já no que toca ao respeito do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, ele pressupõe uma ponderação em concreto entre dois termos de comparação. Ora, o particular não logrou, em boa verdade, especificar quais os direitos ou princípios constitucionais que seriam desproporcionadamente sacrificados com a suspensão da licença ou autorização, limitando-se a invocar “prejuízos”. Pressupondo o princípio da proporcionalidade, nesta óptica, uma relação de protecção entre dois bens constitucionalmente protegidos – um que se salvaguarda, outro que se sacrifica –, difícil é vislumbrar o resultado da valência deste princípio sem ocorrer sacrifício de um bem constitucionalmente protegido. Ora, para o Tribunal Constitucional o ius aedificandi não representa um corolário essencial do direito fundamental de propriedade privada (Acórdão n.º 517/99 – Diário da República, IIª Série, de 11-11-1999, e Acórdão n.º 496/08 – Diário da República, IIª Série, de 11-11-2008). Este último aresto afirmou, inclusivamente, que “não se pode considerar que o direito a construir seja um elemento integrante da tutela constitucional da propriedade, impondo-se enquanto tal ao legislador ordinário enquanto direito análogo a um direito, liberdade e garantia”, pelo que: “não restringindo nenhuma das normas sob juízo qualquer direito, liberdade e garantia, não se vê como lhes pode vir a ser aplicável, como parâmetro de validade, um qualquer dever (do legislador) de escolha dos meios de prossecução do interesse público que sejam menos onerosos para os particulares”.
Mas mesmo que assim se não entenda, ainda assim dificilmente se poderia considerar ter existido uma limitação constitucionalmente proibida ao direito de propriedade, por efeito da paralisação dos trabalhos durante a pendência da acção, já que se trata de uma situação, por natureza, meramente provisória.
Os eventuais prejuízos que o particular poderá ter sofrido serão considerados na decisão final da acção principal; o efeito suspensivo da citação pretende apenas acautelar o efeito útil da acção intentada, deixando para a acção a discussão dos demais aspectos.
III – DECISÃO
12. Em conclusão, o Tribunal decide negar provimento ao recurso. Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Junho de 2011. – Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.