Imprimir acórdão
Processo n.º 382/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, em 21 de Julho de 2008, acção de investigação da paternidade contra B., pedindo o estabelecimento do vínculo jurídico de paternidade jurídica entre o autor e o réu.
O Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro considerou que o prazo legal para a proposição da referida acção se encontrava caduco, visto o disposto no artigo 1817.º n.ºs 1 e 3, alínea c) do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, pelo que absolveu o réu do pedido. Inconformado, A. recorreu para a Relação de Coimbra, que, por acórdão de 11 de Julho de 2010, decidiu o seguinte:
“A particular relevância da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, decorre da circunstância desse diploma conter uma norma de direito transitório (o art. 3º) estabelecendo a aplicação das alterações por ele introduzidas nos artigos 1817.º e 1842ºº do Código Civil “aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”.
No caso em apreço, o decisor fazendo dela uma interpretação literal projectou-a retroactivamente atingindo a presente acção que já se encontrava pendente desde 21/07/2008, e julgou procedente a caducidade decorrente da al. c), nº 3, do art. 1817º nessa nova redacção.
Os prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade, são os previstos no artigo 1817º do Código Civil, norma aplicável em função do disposto no artigo 1873º do mesmo Código.
É conhecida a evolução do ordenamento jurídico português no que respeita aos limites temporais à investigação da paternidade.
Relembrando esse desenvolvimento legislativo e jurisprudencial de forma muito breve, constata-se que o Tribunal Constitucional numa primeira fase defendeu o entendimento de que o regime da caducidade previsto no Código Civil era compatível com os princípios constitucionais, designadamente com o fundamento, entretanto abandonado, de que os prazos de caducidade eram meros condicionamentos, e não verdadeiras restrições, do direito de investigação inerente ao direito fundamental à identidade pessoal (cfr. os Acórdãos n.ºs 99/88, 413/89, 451/89, 370/91, 311/95 e 506/99).
Posteriormente, inverteu a sua jurisprudência nesta matéria nos Acórdãos n.ºs 456/2003 e 486/2004, acolhendo nova orientação jurisprudencial no entendimento de que o prazo limite de proposição de uma acção de investigação de paternidade previsto no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, comportava uma violação dos princípios constitucionais decorrentes da conjugação dos artigos 26º, nº 1 (direito à identidade pessoal), 36º, nº 1 (direito de constituir família) e 18º, nº 2 (princípio da proporcionalidade) da Constituição da República Portuguesa (CRP), que veio a culminar na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral plasmada no Acórdão no 23/2006, publicado na I Série-A, do Diário da República de 8/02/06.
Acórdão que não visou a consagração de uma inconstitucionalidade na averiguação da verdade biológica da filiação temporalmente limitada, mas tão só o concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, de dois anos a contar da maioridade ou emancipação. Como nele bem se vinca, “Antes o que está em causa é, apenas, a constitucionalidade da específica limitação prevista nesta norma, que (salvo casos excepcionais, como o da existência de «posse de estado») exclui o direito a averiguar a paternidade depois dos 20 anos de idade: a acção «só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação». É este limite temporal de «dois anos posteriores à maioridade ou emancipação», e não a possibilidade de um qualquer outro limite, que cumpre apreciar — e, consequentemente, só sobre aquele especifico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir.”.
Mais recentemente, o Acórdão n.º 626/2009, julgou inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 1817.º, do Código Civil (redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro), quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da paternidade.
A declaração, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade de uma norma tem efeitos ex tunc, tudo se passando, em princípio, como se a norma nunca tivesse vigorado. Então, a consequência para a norma em causa desta decisão do Tribunal Constitucional, traduz-se na produção de efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional repristinando as normas que ela haja eventualmente revogado (cfr. art. 282º, nº 1, da CRP).
Esta eficácia retroactiva da declaração de inconstitucionalidade implica não só a invalidade e consequente inaplicabilidade da norma, mas também, como afirma Gomes Canotilho, a sua proibição de aplicação a situações ou relações desenvolvidas à sombra da sua eficácia e ainda pendentes.
Ora, sendo certo que o prazo nessa norma previsto foi desde logo introduzido pela versão inicial do Código Civil de 1967 (Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966) no texto do artigo 1854º, nº 1, que posteriormente transitou no essencial para o artigo 1817.º, n.º 1, na revisão introduzida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro de 1977 do Código seríamos remetidos, por via do efeito repristinatório, para o regime do Código de Seabra, no trecho temporal deste posterior à chamada “Lei da protecção dos filhos” da I República (art. 37.º, do Decreto nº 2 de 25 de Dezembro de 1910, publicado no Diário do Governo, nº 70, de 27 de Dezembro de 1910) em que se estabeleciam diversos prazos para a proposição das acções de investigação de paternidade ilegítima.
Repristinação de uma solução legal também ela com prazos de caducidade que à época tinha fortes razões a alicerçá-la – direito do investigado à sua reserva da intimidade da vida privada para além de certo prazo considerado razoável, a estabilidade das suas relações pessoais e familiares, “envelhecimento” das provas, e o facto de a ser possível a investigação a todo o tempo tal poder dar azo a actuações oportunistas de “caça à fortuna” de êxito fácil quando baseadas na falível prova testemunhal – mas desfasada do nosso tempo em que, fruto da evolução científica e a aplicação de novas técnicas através de exame de ADN, se pode apurar com elevadíssimo grau de probabilidade, senão de certeza, se o investigado foi ou não o progenitor do investigante. Desfasamento bem espelhado na jurisprudência do STJ posterior ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, no sentido da inconstitucionalidade do prazo de caducidade não repristinar qualquer norma, apenas deixando sem prazo tais acções. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo previsto naquele nº 1, suprimia todos os prazos, deixava de sujeitar a qualquer prazo a proposição de uma acção de investigação de paternidade, pois que, como se refere no Acórdão do STJ de 17/04/2008, Proc. n.º 08A474, “Esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito de personalidade é um direito inviolável e imprescritível.”
A tanto impunha o respeito pelos direitos fundamentais “ à integridade pessoal”, “à identidade pessoal” e ao “direito ao desenvolvimento da personalidade” consagrados no nº 1 do art. 25º e n.º 1 e 3 do art. 26º da Constituição da República.
Como se lê no Acórdão do TC n.º 626/2009, a “desvalorização de todas as referidas razões que vinham justificando a previsão de limites temporais, relativamente ao exercício do direito de investigação e reconhecimento de paternidade, e a ausência de quaisquer outras razões reportadas a outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, determinou que se começasse a considerar insustentável continuar a alegar a não inconstitucionalidade dos prazos de caducidade estabelecidos nos artigos 1817.º e 1873.º do Código Civil”.
Assim sendo, a valorização dos direitos fundamentais da pessoa na vertente da sua ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, fazem-na prevalecer sobre os filiação, o que confere particular ênfase à conclusão de que esta nova Lei nº 14/2009 na sua projecção retroactiva aos processos pendentes à data da entrada em vigor da mesma, frustra intoleravelmente a confiança depositada pelo proponente da acção de que a sua proposição não estaria sujeita a qualquer prazo.
A aplicação a um caso como este, em que a acção foi proposta em 21/07/2008, da disposição transitória constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, resulta numa evidente violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, decorrente do artigo 2º da CRP.
Esta constatação conduz, inexoravelmente, à inconstitucionalidade material desse artigo 3º da Lei nº 14/2009, e à consequente recusa de aplicação dessa norma nos termos do artigo 204º da CRP.
Nas palavras de Gomes Canotilho, “O princípio do estado de direito, densificado pelos princípios da segurança e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objectivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas, por outro lado, como dimensão garantística jurídico-subjectiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respectivas situações jurídicas”
“O legislador não pode constitucionalizar através de lei o que é inconstitucional e como tal foi declarado pelo TC. Daí a existência de um limite negativo geral vinculativo do legislador, proibição da reprodução, através de lei, da norma declarada inconstitucional. Neste sentido se diz que a relação bilateral Constituição – Lei se transforma numa relação trilateral Constituição – Sentença – Lei em que o parâmetro positivo da Constituição é medido pela declaração judicial da inconstitucionalidade. A proibição abrange os casos de recuperação do conteúdo da lei declarada ilegal embora com nova formulação”.
Para concluir, por bastante impressiva, deixamos ficar aqui a síntese expressa no Acórdão desta Relação que bem de perto seguimos, evidenciando o absurdo da situação: “tratar-se-ia de dizer, aplicando a nova redacção do artigo 1817.º, nº 1 do CC aos processos pendentes, como pretende o legislador, que um direito de acção exercido tempestivamente no passado, caducaria, por intempestividade, no futuro”.
Acresce que a proposição da acção é facto impeditivo da caducidade (artigo 331º, nº 1, do Código Civil).
Resta formular a síntese imposta pelo art. 713º, n.º 7 do CPC:
1 - A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1873º do mesmo Código, constante do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, tem vindo a ser generalizadamente interpretada pela jurisprudência do STJ, como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, com o fim da sujeição deste a prazos;
2 - Esta circunstância conduziu a que tivesse sido intentada a presente acção no pressuposto da inexistência de qualquer prazo de caducidade
3 - A posterior aplicação retroactiva à acção da Lei nº 14/2009, por força do seu artigo 3º, determinando a aplicação da nova redacção por ela introduzida ao artigo 1817.º do Código Civil aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, ofende ostensivamente a confiança depositada pelo proponente da acção de que a sua proposição não estaria sujeita a qualquer prazo;
4 - Essa aplicação retroactiva viola, em tais situações, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicitação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor desta Lei.
III-DECISÃO
Em face de todo o exposto, decide-se:
A) Recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material, do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 Abril, a esta acção proposta subsequentemente à publicação do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, em 08/02/2006, e anteriormente à data da entrada em vigor dessa Lei nº 14/2009, em 02/04/2009;
B) Fundar tal recusa de aplicação na violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, previsto no artigo 2º da Constituição;”
2. É desta decisão que recorre obrigatoriamente o Ministério Público para este Tribunal, nos termos do disposto nos artigos 70.º n.º 1 alínea a) e 72.º n.º 1 alínea a) e n.º 3 e 75.º-A da Lei 28/82 de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
“Esta, pois, a norma e o respectivo sentido, que constituem o objecto do presente recurso, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra precisado, um pouco melhor, a sua ideia, ao sintetizar, no final do mesmo Acórdão:
“1 – A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1873º do mesmo Código, constante do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, tem vindo a ser generalizadamente interpretada pela jurisprudência do STJ, como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, com o fim da sujeição deste a prazos;
2 – Esta circunstância conduziu a que tivesse sido intentada a presente acção no pressuposto da inexistência de qualquer prazo de caducidade;
3 – A posterior aplicação retroactiva à acção da Lei nº 14/2009, por força do seu artigo 3º, determinando a aplicação retroactiva por ela introduzida ao artigo 1817.º do Código Civil aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, ofende ostensivamente a confiança depositada pelo proponente da acção de que a sua proposição não estaria sujeita a qualquer prazo;
4 – Essa aplicação retroactiva viola, em tais situações, o princípio da confiança ínsito no principio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor desta Lei”.
– Está, pois, em causa, a inconstitucionalidade do art. 3º da Lei 14/2009, de 1 de Abril, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, previsto no art. 2º da Constituição, enquanto aplicável aos processos de investigação de paternidade pendentes à data da sua entrada em vigor.”
3. Admitido o recurso, o Ministério Público alegou e concluiu:
“a) Na esteira do Acórdão recorrido, de 16 de Março de 2010, do Tribunal da Relação de Coimbra, este Tribunal Constitucional deverá recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material, do artigo 3º, da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, diploma este que veio proceder à alteração dos artigos 1817º e 1842º do Código Civil, relativos, respectivamente, às acções de investigação de maternidade e de impugnação de paternidade;
b) Com efeito, nos termos da nova redacção introduzida no art. 1817º, nº 1, do Código Civil, por aquela lei, as acções de investigação de maternidade – e igualmente as acções de investigação de paternidade, por remissão do art. 1873º, nº 1, do Código Civil – passaram a poder ser propostas “durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”;
c) Na versão originária do art. 1817º, nº 1 do mesmo Código, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 344/66, de 25 de Novembro, o referido prazo era substancialmente inferior, ou seja, de apenas dois anos;
d) No entanto, por força da prolação do Acórdão 23/2006, deste Tribunal Constitucional, tal prazo foi considerado insuficiente, tendo o mesmo Acórdão, por esse motivo, declarado “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26, nº 1, 36.º, nº 1 e 18º. N.º 2 da Constituição da República Portuguesa”;
e) No seguimento da publicação do Acórdão 23/2006, o Supremo Tribunal de Justiça, em sucessivos acórdãos, veio reconhecer a imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade, considerando, assim, o direito a conhecer a paternidade como um direito inviolável e imprescritível;
f) A proposição de acções de investigação de paternidade (ou maternidade) deixou, pois, de estar sujeita, por via da referida jurisprudência do STJ, a um prazo de caducidade, podendo tais acções ser, por isso, intentadas a qualquer altura;
g) Com a publicação da Lei 14/2009, esta situação alterou-se, estabelecendo-se, agora, um prazo de dez anos, após se atingir a maioridade, para a proposição de acções de investigação de maternidade ou de paternidade;
h) A nova lei, porém, no seu artigo 3º, determinou a sua aplicação não apenas aos processos instaurados após a sua publicação, ou seja, para o futuro, mas, também, “aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”, ou seja, para o passado;
i) O novo diploma não ponderou, assim, devidamente o critério geral, previsto no art. 297º, nº 1, do Código Civil, para as situações de sucessão de leis no tempo, nos casos em que o decurso dum prazo funciona como pressuposto da aquisição ou da perda de um direito subjectivo;
j) Em consequência da aplicação do artigo 3º, da nova lei, situações há, como no caso dos presentes autos, em que o direito de acção, devidamente existente na altura da proposição da acção, acaba por caducar supervenientemente, por aplicação retroactiva da Lei 14/2009;
1) Ora, uma tal consequência - de extinção do direito de investigar a paternidade, por aplicação retroactiva do art. 3º, da Lei 14/2009 –, revela-se materialmente inconstitucional, por violação dos art.s 26º, nº 1, 36º, nº i e 18º, nº 2 da Constituição da República;
m) Deve, nessa medida, confirmar-se o Acórdão recorrido, de 16 de Março de 2010, do Tribunal da Relação de Coimbra.
O recorrido A. não apresentou alegação.
II. Fundamentação
4. Importa, antes de mais, circunscrever o âmbito do presente recurso. A norma cuja conformidade constitucional é contestada é a resultante do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril. A referida Lei n.º 14/2009 criou um novo regime de prazos aplicável às acções de investigação da maternidade e paternidade, alterando os artigos 1817.º e 1842.º do Código Civil. O artigo 3.º diz:
Artigo 3.º
Disposição Transitória
A presente lei aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
Está, assim, em causa uma norma transitória, que manda aplicar a processos pendentes o novo regime de prazos resultante da Lei n.º14/2009, de 1 de Abril. No caso concreto discute-se, em específico, a aplicação da nova Lei a processo instaurado em 21 de Julho de 2008, que se encontrava pendente à data da entrada em vigor da Lei n.º 14/2009.
A Lei n.º 14/2009 veio instituir um novo sistema de prazos de caducidade para o exercício do direito à investigação da maternidade e paternidade: o prazo-regra passou a ser de dez anos após o investigante ter atingido a maioridade ou emancipação (artigo 1817.º, n.º1). Excepcionalmente, transcorrido esse prazo-regra, o novo regime veio ainda possibilitar ao investigante reagir nos três anos posteriores à ocorrência de um dos seguintes factos:
ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a paternidade ou maternidade do investigante (artigo 1817.º, n.º3, alínea a));
ter o investigante tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no nº1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe / pai (artigo 1817.º, n.º3, alínea b));
em caso de inexistência de maternidade / paternidade determinada, ter o investigante tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação (artigo 1817.º, n.º3, alínea c)).
O Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro absolveu o Réu do pedido por considerar que o prazo legal para a proposição da acção se encontrava caduco, invocando simultaneamente os prazos resultantes do n.º 1 e do n.º 3 alínea c) do artigo 1817.º do Código Civil, conforme resultam da nova redacção introduzida pela Lei n.º 14/2009. Não obstante, a Relação de Coimbra pronunciou-se apenas sobre a aplicação a este processo do prazo de três anos a que se refere o artigo 1817.º, n.º 3, alínea c), do Código Civil, na redacção conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 Abril. De facto, o aresto é claro quando refere:
“As questões colocadas, por ordem cronológica e tendo em conta a prejudicialidade existente entre elas, traduzem-se em saber se:
a) O art. 3º da Lei nº14/2009 de 1 de Abril é inconstitucional;
b) O prazo de três anos a que se refere o art. 1817.º, n.º3, al.c) do Código Civil, pela nova redacção conferida pela Lei nº14/2009 de 1 de Abril, só deve ser contado a partir do início da vigência da nova lei”.
A Relação de Coimbra discute, de forma decisiva, a aplicação do regime resultante da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, enquanto determina, no caso concreto, a aplicação do prazo resultante da nova redacção alínea c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil ao presente processo.
A questão não incide, portanto, sobre a concreta previsão do prazo de três anos previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, mas, antes, sobre a precisa questão de determinar se é constitucionalmente admissível a aplicação, por força do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, do novo prazo a processos que se encontravam pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 14/2009. É nesta sede que deverá ser analisado o presente recurso.
5. O Tribunal a quo e o recorrente consideram que o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 é inconstitucional enquanto determina a aplicação do novo prazo previsto no artigo 3.º, alínea c) do artigo 1817.º do Código Civil a um processo pendente, já que a acção foi instaurada antes da entrada em vigor da Lei n.º 14/2009 de 2 de Abril, mas em data posterior ao Acórdão n.º 23/2006 do Tribunal Constitucional, de 10 de Janeiro de 2006, publicado em 08 de Fevereiro de 2006 no Diário da República, Iª Série-A, n.º 28. O fundamento invocado foi a violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, previsto no artigo 2.º da Constituição.
Determinante para esse juízo foi, não apenas a aplicação de um novo prazo de investigação da paternidade a um processo pendente, mas, principalmente, o facto de a acção ter sido instaurada após a publicação do referido Acórdão n.º 23/2006 do Tribunal Constitucional. Nesse aresto, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, tal como resultava da redacção anterior à Lei n.º14/2009 de 1 de Abril, na medida em que previa, para a caducidade do direito a investigar, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º1, 36.º, n.º1, e 18.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa.
Em causa está saber, pois, se a aplicação deste novo prazo, introduzido pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, é violadora do principio da segurança jurídica, na sua vertente de protecção da confiança, devido à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral emitida pelo Acórdão n.º 23/2006.
6. O Tribunal Constitucional tem, aliás, ampla jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica, na sua vertente de protecção da confiança. Constitui entendimento constante (já adoptado pela Comissão Constitucional) que o princípio da 'protecção da confiança' vai ínsito no princípio do 'Estado de direito democrático', consagrado no artigo 2º da Constituição. A título de exemplo, veja-se o Acórdão n.º 128/2009 (os acórdãos deste Tribunal doravante citados sem menção do lugar de publicação acham-se disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
“De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção”.
7. No entendimento do tribunal a quo, o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 seria inconstitucional por violação do princípio da segurança jurídica, já que se trataria de uma norma retroactiva violadora das expectativas dos cidadãos.
Mas há que começar por questionar a qualificação do artigo 3.º como autêntica norma retroactiva. Importa distinguir os casos de retroactividade autêntica dos casos em que a norma apenas pretende vigorar para o futuro, mas que acaba por tocar em situações, direitos ou relações jurídicas desenvolvidos no passado, mas ainda existentes. Ora, ainda que a acção de investigação da paternidade se encontrasse instaurada e pendente à data de entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, certo é que o hipotético direito do investigante a conhecer a identidade do seu progenitor ainda não se encontrava consolidado, pois apenas no momento do trânsito em julgado da sentença que determinasse a correcção do registo de paternidade é que tal situação jurídica se consolidaria.
Nesse sentido, precisamente a propósito do princípio da confiança, este Tribunal já afirmou, através do Acórdão n.º 287/90 (Diário da República, Iª Série, de 20 de Fevereiro de 1991):
“Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que ‘apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/83, de 12 de Outubro de 1982, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., pp. 11 e segs.; no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissão Constitucional, no Acórdão n.º 463, de 13 de Janeiro de 1983, publicado no Apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983, p. 133 e no Boletim do Ministério da Justiça, n. 314, p. 141, e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional, designadamente através dos Acórdãos nºs. 17/84 e 86/84, publicados nos 2º e 4º vols. dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, a pp. 375 e segs. e 81 e segs., respectivamente).”
(…)
Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime de casamento, de arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes.»
Assim sendo, a aplicação de determinadas normas a situações jurídicas pré-existentes – como é o caso das leis que se aplicam a processos pendentes – não pode ser integrada nos fenómenos de “retroactividade autêntica”, mas apenas na categoria de “mera retrospectividade” ou de “retroactividade inautêntica”. Só se o artigo 3º da Lei n.º 14/2009 determinasse a aplicação do prazo de dez anos a processos judiciais já findos e transitados em julgado é que se poderia falar de “retroactividade autêntica”, sem qualquer margem para dúvidas. No que toca a esta forma de aplicação da lei no tempo, tem-se afirmado que a protecção do princípio da confiança reveste, nestes casos, uma menor intensidade (assim, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 1998, p. 255). No mesmo sentido, refere Jorge Reis Novais que “a não consolidação plena das situações a que a nova lei se pretende aplicar gera uma diminuição do peso dos interesses relativos à segurança jurídica e à protecção da confiança dos cidadãos” (As Restrições aos Direitos Fundamentais…, p. 819).
E de, facto, mesmo no que toca à retroactividade autêntica, é de entender que está vedado que uma nova normação possa ter implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações / situações criadas pela lei antiga mesmo quando a estatuição vier dispor num verdadeiro sentido retroactivo; tudo depende, em concreto, da ponderação dos vários interesses em conflito. Veja-se, nesse sentido, o Acórdão nº 156/95 ('Acórdãos do Tribunal Constitucional', 30º vol., págs. 753 e segs.):
“Tem este Tribunal, aliás na esteira de uma jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional (…), defendido que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a Revisão Constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º) postula 'uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas', razão pela qual 'a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica' (palavras do Acórdão nº 303/90, publicado na 1ª Série do Diário da República de 26 de Dezembro de 1990) (…)'.
Todavia, isso não leva a que seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou quando tal estatuição venha dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coartar a 'liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade' do legislador, características que são 'típicas', 'ainda que limitadas', da função legislativa (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, 309).
Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte.
Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será alcançado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar.
Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas 'que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável' (cfr. Acórdão nº 365/91 no Diário da República, 2ª Série, de 27 de Agosto de 1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a referida protecção em nome do primado do Estado de direito democrático.
A admissibilidade de normas retroactivas resulta, portanto, de um balanceamento entre vários factores: a solidez e justificação das expectativas jurídicas dos particulares e a liberdade conformadora do legislador. A norma inovadora, mesmo que retroactiva, só será ilegítima se se concluir que não é ditada pela necessidade de proteger interesses prevalecentes. E a verdade é que “nesta avaliação devem ser devidamente tidos em conta dados como o merecimento e dignidade objectiva de protecção da confiança que o particular depositava no sentido de inalterabilidade de um quadro legislativo que o favorecia, o peso relativo dos interesses dos particulares e a intensidade da sua afectação e, não menos importante, a própria margem de livre conformação que deve ser deixada ao legislador democrático em Estado de Direito” (Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais …, p. 264).
No mesmo sentido, o Acórdão n.º 307/90 (Diário da República, IIª Série, 1991, n.º 52) afirma:
“para se demonstrar a afectação do princípio da confiança não basta provar que a nova norma afectou (só afectou) um dado direito ou expectativa; necessário é a concorrência das demais circunstâncias atrás indicadas (a dignidade das expectativas criadas, o não peso suficiente dos interesses sociais e de bem comum desejados prosseguir pela nova lei de sorte a não derrogar aquelas expectativas, e a não intolerabilidade, arbitrariedade ou opressividade da afectação)”.
Resta aferir do concreto balanceamento entre os vários interesses em presença no presente caso, de forma a determinar se a aplicação do novo prazo previsto na alínea c) do n.º3 do artigo1817.º do Código Civil a processo pendente, por força do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, constitui uma violação do princípio da segurança jurídica, na sua vertente de protecção da confiança. O primeiro elemento a avaliar é o da solidez e legitimidade das expectativas dos particulares.
8. Decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional que, para que o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança seja tutelado constitucionalmente é necessário, em primeiro lugar, que o Estado tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados a expectativa de continuidade de um determinado modelo jurídico. A expectativa que alegadamente foi violada, no presente caso, é a de que as acções de investigação da paternidade (e da maternidade) teriam deixado, por força do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, de estar sujeitas a qualquer prazo.
Importa, por isso, averiguar se a doutrina do Acórdão n.º 23/2006 do Tribunal Constitucional é adequada a gerar nos particulares semelhante expectativa.
O acórdão é claro quando refere que, em causa, estava apenas a apreciação da constitucionalidade do limite temporal de dois anos previsto pela redacção então em vigor do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil. De facto, antes de proceder à apreciação da questão, o acórdão sublinha:
“Importa começar por deixar bem vincado que, na averiguação da conformidade constitucional da solução limitativa, actualmente consagrada na norma ora em apreço, o que está em questão não é qualquer imposição constitucional de uma “ilimitada (…) averiguação da verdade biológica da filiação”. Pese embora a tese defendida pelo recorrente, de que qualquer caducidade da acção de investigação de paternidade é inconstitucional, no presente recurso está apenas em questão o concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, de dois anos a contar da maioridade ou emancipação (portanto, no máximo, os vinte anos de idade do investigante). Não constitui, assim, objecto do presente processo apurar se a imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme. Antes o que está em causa é, apenas, a constitucionalidade da específica limitação prevista nesta norma, que (salvo casos excepcionais, como o da existência de “posse de estado”) exclui o direito a averiguar a paternidade depois dos 20 anos de idade: a acção “só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”. É este limite temporal de “dois anos posteriores à maioridade ou emancipação”, e não a possibilidade de um qualquer outro limite, que cumpre apreciar – e, consequentemente, só sobre aquele específico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir”.
(…)
Seja como for – e é o ponto que, para deixar claro o alcance do juízo que o Tribunal profira, importa frisar –, no presente processo está apenas em apreciação o prazo de dois anos a contar da maioridade ou emancipação, e não a possibilidade de um qualquer outro limite temporal para a acção de investigação de paternidade, conte-se este a partir também da maioridade ou da emancipação, ou tenha outro dies a quo.
Por outro lado, a fundamentação do juízo de inconstitucionalidade assenta na violação do princípio da proporcionalidade, por se entender que o concreto limite temporal de dois anos era exíguo, esgotando-se “num momento em que, por natureza, o investigante não é ainda, naturalmente, uma pessoa experiente e inteiramente madura (…) e, sobretudo, que tal prazo começa a correr, e terminar, sem que existam quaisquer possibilidades concretas de – ou apenas justificação para – interposição da acção de investigação de paternidade”.
A jurisprudência do Tribunal tem, aliás, mantido a orientação de que o legislador não está impedido de fixar prazos de caducidade no que toca às acções de investigação de paternidade/maternidade. Assim, o Acórdão n.º 451/89 (Diário da República, IIª Série, n.º 218):
“(…) a solução legislativa consistente em fixar prazos de caducidade para a propositura das acções de investigação da paternidade não pode, em si mesma, ser tida como contrária à Constituição”.
Em sentido semelhante, o recente Acórdão n.º 446/2010:
“Digno de nota é também o facto de o Tribunal nunca ter assumido que a imprescritibilidade é o único regime constitucionalmente conforme. As decisões de inconstitucionalidade foram sempre tomadas por razões atinentes à exiguidade do prazo estabelecido ou/e ao seu termo inicial”.
A tese adoptada no Acórdão n.º 23/2006 não se radicou na ideia da desconformidade constitucional da previsão de qualquer prazo de caducidade neste tipo de acções e não poderia, por isso, ter gerado nos particulares a expectativa de que, ao declarar-se inconstitucional o prazo de dois anos previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, isso significaria que a única alternativa restante apenas seria a inexistência de prazo. O Acórdão n.º 23/2006 sublinha este entendimento ao afirmar:
“Nem é, aliás, o regime de imprescritibilidade a única alternativa pensável ao regime do artigo 1817.º, n.º 1, do actual Código Civil”.
Em segundo lugar, a decisão de inconstitucionalidade emitida pelo Acórdão n.º 23/2006 apenas diz respeito ao prazo geral contido no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, que se contava a partir de um facto objectivo (a maioridade do investigante), não podendo ser transposta para os demais prazos previstos nesse artigo, a maior parte dos quais se contava a partir de factos subjectivos – o conhecimento, ou, quanto muito, a cognoscibilidade do facto.
Determinante para o juízo de inconstitucionalidade foi, portanto, a circunstância de o limite temporal de dois anos se começar a contar a partir da verificação de um facto puramente objectivo, independentemente do conhecimento de factos que pudessem gerar no investigante a desconfiança de quem seria o seu progenitor. Diz o acórdão:
“Importa, na verdade, considerar que a norma em apreço exclui a possibilidade de investigar a paternidade depois de esgotado um prazo de dois anos que se conta a partir de um dies a quo puramente objectivo, isto é, que não depende de quaisquer elementos relativos à possibilidade concreta do exercício da acção – como, por exemplo, a procedente impugnação da paternidade (cfr., sobre esta hipótese, o já citado acórdão n.º 456/2003), fundadas dúvidas sobre a paternidade que esteja estabelecida, ou, mesmo em caso de inexistência de paternidade determinada, o conhecimento ou a cognoscibilidade supervenientes de factos ou circunstâncias que possibilitem ou justifiquem a investigação(…)
(…) não pode ignorar-se (…) sobretudo, que tal prazo pode começar a correr, e terminar, sem que existam quaisquer possibilidades concretas de – ou apenas justificação para – interposição da acção de investigação de paternidade, seja por não existirem ou não serem conhecidos nenhuns elementos sobre a identidade do pretenso pai (os quais só surgem mais tarde), seja simplesmente por, v.g., no ambiente social e familiar do filho ser ocultada a sua verdadeira paternidade, ou não existir justificação para pôr em causa a paternidade de quem sempre tenha tratado o investigante como filho (…)”.
Além de ter restringido a declaração de inconstitucionalidade ao limite temporal de dois anos, o Tribunal Constitucional restringiu-a também ao prazo geral previsto no artigo 1817.º, n.º1 do Código Civil, contado a partir da maioridade do investigante. É, por isso, ilegítimo estender esta doutrina aos demais prazos previstos no preceito.
Aliás, posteriormente ao Acórdão n.º 23/2006, o Tribunal Constitucional vincou a diferença entre os prazos excepcionais e o prazo-regra de investigação da paternidade / maternidade. Assim o sublinhou o Acórdão n.º 626/2009:
“(…) o prazo especial previsto no n.º 3, do artigo 1817.º, do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, apresenta uma diferença assinalável relativamente ao prazo-regra outrora consagrado no n.º 1 do mesmo artigo, quando aplicável às acções de investigação da paternidade.
Diversamente do que sucedia com o prazo-regra declarado inconstitucional, que começava a correr inexorável e ininterruptamente desde o nascimento do filho e se podia esgotar integralmente sem que o mesmo tivesse qualquer justificação para a instauração da acção de investigação de paternidade contra o pretenso pai, o prazo especial, ora sob análise, apenas começa a correr a partir do momento em que o investigante – com mais de vinte anos de idade – conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito de pai, o que, em princípio, viabilizará a instauração da acção de investigação de paternidade a todo o tempo ainda que sujeita à referida limitação temporal.
Não estamos aqui perante um prazo “cego”, que começa a correr independentemente de poder haver qualquer justificação para o exercício do direito pelo respectivo titular, como sucede com o prazo estabelecido no n.º 1, do artigo 1817.º, do C.C., mas sim perante um prazo cujo início de contagem coincide com o momento em que o titular do direito tem conhecimento do facto que o motiva a agir.
Nesta situação, pelo menos o direito à segurança jurídica, nomeadamente o direito do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, justifica que se condicione o exercício do direito do filho à investigação da paternidade, através do estabelecimento de um prazo para o accionar.
Na verdade, tendo o titular deste direito conhecimento dos factos que lhe permitem exercê-lo é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a propositura da respectiva acção, após esse conhecimento, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada daquele”.
Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 23/2006 foram inequivocamente restritos ao concreto prazo geral previsto na anterior redacção do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, enquanto se previa, para as acções de investigação da filiação, um prazo de dois anos contados a partir da maioridade do investigante. O Tribunal censurou, em suma, o limite temporal concreto de dois anos conjuntamente com o facto de esse prazo contado a partir de um facto puramente objectivo – a maioridade do investigante. Tratou-se, enfim, na terminologia de J.J. Gomes Canotilho, de caso de nulidade parcial, em que a declaração geral de inconstitucionalidade incidiu sobre um mero segmento ideal de um preceito (Direito Constitucional…, p. 906), devendo os efeitos da referida declaração cingir-se apenas a esse segmento.
A declaração de inconstitucionalidade em causa, com a concreta delimitação feita pelo Tribunal Constitucional, não é, por isso, uma circunstância objectivamente adequada a gerar a expectativa que outros prazos de caducidade da investigação da filiação, com outros limites temporais ou com outras formas de contagem, seriam, também eles, inconstitucionais. Para além do mais, o Acórdão n.º 23/2006 prevê expressamente a possibilidade de criação, por via legislativa, de outros prazos:
“são possíveis (…) alternativas, quer ligando o direito de investigar às reais e concretas possibilidades investigatórias do pretenso filho, sem total imprescritibilidade da acção (por exemplo, prevendo um dies a quo que não ignore o conhecimento ou a cognoscibilidade das circunstâncias que fundamentam a acção), quer para obstar a situações excepcionais, em que, considerando o contexto social e relacional do investigante, a invocação de um vínculo exclusivamente biológico possa ser abusiva, não sendo de excluir, evidentemente, o tratamento destes casos-limite com um adequado “remédio” excepcional”.
Da passagem que agora se transcreveu ressalta que o legislador ordinário goza aliás de uma ampla margem para determinar, desde que acautelado o conteúdo essencial do direito ao desenvolvimento da personalidade, se pretende submeter as acções de investigação da paternidade a um prazo preclusivo ou não, cabendo-lhe ainda fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração do respectivo prazo.
Uma alteração legislativa no sentido da introdução de novos prazos de caducidade das acções de investigação da filiação não poderia ser configurada como uma normação inesperada, pois a letra do acórdão não inculca razoavelmente o entendimento de que o legislador deveria abster-se de prever qualquer outro prazo. Não pode afirmar-se, portanto, que o Acórdão n.º 23/2006 é adequado a gerar a «expectativa» de que as acções de investigação da paternidade e maternidade deixariam de estar sujeitas a prazos de caducidade.
9. No que toca aos prazos previstos no artigo 1817.º do Código Civil que não haviam sido abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade, há que ter em conta que, dos trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da Lei n.º 14/2009 parece resultar que o legislador terá pretendido que os sujeitos processuais de processos pendentes beneficiassem do prazo mais longo previsto na lei nova.
Com efeito, do «Relatório da Discussão e Votação na Especialidade do Projecto de Lei n.º 158/X» (http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx-BID=21079), resulta que a proposta de inclusão do actual artigo 3º teve como único propósito “a conformação com o princípio geral de aplicação da lei no tempo” (cfr. p. 3, ob. cit.).
Na mesma ordem de ideias, no que toca ao caso em presença, a redacção da nova lei veio, através da alínea c) do n.º 3 do artigo 1817.º, criar uma possibilidade até então inexistente – a de o investigante poder promover a investigação da filiação no prazo de três anos após o conhecimento de factos ou circunstâncias de que tenha tido conhecimento superveniente, mesmo após decorrido o prazo geral contado a partir da maioridade do mesmo. De facto, de acordo com os prazos em vigor à data de propositura da acção, não abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade, tal possibilidade não era prevista. Assim, também aqui se pretendeu, com a retrospectividade da norma, conceder aos investigantes uma possibilidade que até então não lhes era atribuída.
Por outro lado, a aplicação imediata dos novos prazos a processos que se encontrassem pendentes é uma opção legislativa legítima, e justificada, as mais das vezes, para salvaguardar o princípio da igualdade. De facto “vedar a possibilidade de o legislador alterar a legislação em vigor ou obrigá-lo a considerar, excluir ou tratar diferenciadamente todas as situações provindas do passado seria fragmentar de uma forma praticamente inadmissível a ordem jurídica ordinária, incluindo à luz do princípio da igualdade, e degradar inconstitucionalmente a própria posição do legislador democrático” (Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais …, p. 267). Através do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, trata-se da mesma forma todos os processos pendentes, não privilegiando aqueles investigantes que tivessem a “sorte” de propor a acção no lapso de tempo compreendido entre o Acórdão n.º 23/2006 e a entrada em vigor da nova lei.
A previsão da aplicação retrospectiva dos novos prazos introduzidos pela Lei n.º 14/2009 aos processos pendentes não se afigura, por isso, injustificada, ilegítima ou irrazoável.
A previsão da aplicação do prazo previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo 1817.º a processos pendentes à data de entrada em vigor da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, por força do artigo 3.º da referida Lei não viola, em suma, o princípio da segurança jurídica, na sua vertente de protecção da confiança.
III. Decisão
10. Pelos fundamentos expostos, decide-se:
– Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o precedente julgamento.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Junho de 2011. – Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – José Borges Soeiro (com a declaração que considero que a inconstitucionalidade decidida pelo Ac. 23/2006 foi relativa à exiguidade do prazo de dois anos e não ao estabelecimento de qualquer prazo) – Gil Galvão (vencido pelas razões constantes do Acórdão N.º 164/2011) – Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, pelas razões constantes do Acórdão n.º 164/2011.