Imprimir acórdão
Processo n.º 221/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente A., o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. O presente recurso não reúne os pressupostos necessários ao conhecimento do respectivo objecto, designadamente, porque o recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Na motivação do recurso que apresentou junto do Tribunal da Relação de Évora, o recorrente afirmou o seguinte (cfr. conclusão 3. da referida motivação, a fls. 871 dos autos): «O art. 129.º, n.º 1 e 2 do CPP se interpretado no sentido ou com a dimensão normativa de que é possível, durante a audiência e na formulação do acórdão condenatório, o Tribunal de primeira instância validar o testemunho de “ouvir dizer” em termos de o mesmo contribuir para a condenação do recorrente (por o Tribunal considerar provados delitos resultantes do apontado depoimento indirecto) encontra-se ferido de verdadeira inconstitucionalidade material, por violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido consignado no nosso direito penal adjectivo e no art. 32.º da Lei Fundamental, e ainda por violação do princípio da inocência dos arguidos a que faz jus o art. 32.º n.º 2 da Lei Fundamental.»
Ora, esta afirmação não consubstancia a suscitação, de forma adequada, de uma questão de constitucionalidade normativa. Pois, não põe em confronto uma norma geral e abstracta com a Constituição, antes acusa a própria decisão recorrida (a decisão de condenação do recorrente) de violar preceitos constitucionais na parte em que alegadamente validou um testemunho de “ouvir dizer”. A imputação do vício de inconstitucionalidade à decisão recorrida é, aliás, expressamente afirmada na conclusão 6. da citada motivação de recurso (fls. 871 dos autos).
Da mesma forma, o que o recorrente questiona na conclusão 7. da motivação de recurso, é a constitucionalidade da decisão que o condenou a ele, recorrente, e absolveu uma co-arguida, e não uma qualquer dimensão normativa dos artigos 127.º e 355.º do Código de Processo Penal. O objecto da questão de constitucionalidade não é definido a partir das normas destes preceitos, tendo antes como referente a decisão de condenação do recorrente e de absolvição de uma co-arguida.
No requerimento em que suscita a nulidade do acórdão recorrido (cfr. fls. 991 e s. dos autos) o recorrente limita-se a repetir o que já havia invocado nas conclusões da motivação do recurso, sendo certo, além do mais, que este já não era o momento atempado para suscitar a questão de constitucionalidade.
Conclui-se, assim, pelo incumprimento do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
3. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso. (…)»
2. Notificado da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) A., arguido já identificado nos presentes autos, notificado do teor da douta decisão sumária deste Venerando Tribunal e detectando no mesmo nulidade de omissão de pronúncia, vem mui respeitosamente, nos termos do estatuído no art.° 78.º - A n.° 3 da Lei do Tribunal Constitucional reclamar para a Conferencia como segue:
I- DA NULIDADE DO DECIDIDO
I- DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA- Nulidade do art.° 379.° n.° 1 alínea c) do CPP.
Na sua motivação de recurso, o recorrente, alegou, entre outras, as seguintes inconstitucionalidades:
a) A do art.° 129.° n.° 1 e 2 do CPP se interpretado no sentido ou com a dimensão normativa de que é possível, durante a audiência e na formulação do acórdão condenatório, o Tribunal de primeira instância validar o testemunho de “ouvir dizer” em termos de o mesmo contribuir para a condenação do recorrente (por o Tribunal considerar provados factos delituosos resultantes do apontado depoimento indirecto), encontrando-se ferido de verdadeira inconstitucionalidade material, por violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido consignado no nosso direito penal adjectivo e no art.º 32.° da Lei Fundamental e ainda, por violação do princípio da presunção da inocência dos arguidos a que faz jus o art.° 32.° da Lei Fundamental. (Conclusão n.º 3 da Motivação de recurso).
b) — A do art.° 127.° do CPP se interpretado (como o foi no caso dos autos, de que com as mesmas provas é possível a condenação do recorrente e a absolvição de uma co-arguida que também se encontrava no mesmo veiculo em que o recorrente se transportava), encontra-se ferido de inconstitucionalidade material por violação do art. 32.° n.° 2 da Lei Fundamental (Conclusão n.° 7 da Motivação).
c) — A do art.° 355,º do CPP se interpretado (como o foi no caso dos autos), de que com as mesmas provas é possível a condenação do recorrente e a absolvição de uma co-arguida que também se encontrava no mesmo veículo cm que o recorrente se transportava, encontra-se ferido de inconstitucionalidade material por violação do art.º 32.º n.° 2 da Lei Fundamental (Conclusão n.º 7 da Motivação).
Ora, quanto a estas invocada inconstitucionalidades materiais, a embora douta decisão sumária estatui no seu item 2 como segue:
“2. 0presente recurso não reúne os pressupostos necessários ao conhecimento do respectivo objecto, designadamente, porque o recorrente não suscitou, perante o Tribunal recorrido, uma questão de constitucionalidade normativa”. (a fls.1 da decisão sumária).
Como devido e merecido respeito não será bem assim,
Como decorre da apontada transcrição (em a) b) e c) deste requerimento) o recorrente suscitou, perante o tribunal recorrido, uma questão de inconstitucionalidade normativa, uma vez que, está fora de dúvida, ter o recorrente posto em confronto uma norma geral (e não só uma norma, mas três normas gerais e abstractas a saber, o art.º 129.° n.°1 e 2, o art.º 127.º e o art.º 355.º — “apud” Conclusões 3 e 7 do recurso interposto. atempadamente para o Venerando Tribunal da Relação de Évora), com a Constituição da República, alegando, expressamente, a inconstitucionalidade material
(e passa-se novamente a transcrever uma vez que a decisão sumária não alude a esta questão):
“do art.° 129.° n.° 1 e 2 do CPP se interpretado no sentido ou com a dimensão normativa (feita pela instância e que se descreve em pormenor) encontrando-se ferido de verdadeira inconstitucionalidade material, por violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido consignado no nosso direito penal adjectivo e no art. 32.° da Lei Fundamental e ainda por violação, do principio da presunção da inocência dos arguidos a que faz jus o art.° 32.° da Lei Fundamental” (Conc1usão n.º 3 da Motivação de recurso).
Apontando-se assim a dita inconstitucionalidade material da apontada norma (agora do art.° 129.° n.° 1 e 2 do CPP), — e suscitando-se expressamente a questão da sua inconstitucionalidade normativa, uma vez que, interpretada como o fez a instância (e o recorrente tem de afirmar essa interpretação feita pela instância pois é essa interpretação da norma que se encontra ferida de inconstitucionalidade material, como parece ser óbvio e não a inconstitucionalidade “em abstracto” da norma), o que, obviamente não tem a ver com a também alegada(pelo recorrente) inconstitucionalidade da decisão recorrida, esta assim apontada na conclusão 6 da citada motivação.
Mas são registos diferentes.
O que consta na Conclusão 6 da motivação refere-se a eventual inconstitucionalidade da decisão recorrida. O que agora não está em crise nem é o fundamento do presente recurso de constitucionalidade.
O que se conclui em 3 e 7 da apontada motivação é o cerne da questão. È onde o recorrente muito visivelmente põe em confronto três normas gerais e abstractas e a interpretação que delas fez a instância (o art.°129.º, n.° 1 e 2, o art.° 127..° e o art.° 355 todos do CPP), com o texto Constitucional e onde em síntese se alega a inconstitucionalidade material de tais normas “no sentido ou com a dimensão normativa” que delas fez a instância, cabendo a decisão a proferir na previsão do art.° 79.° - C da LTC, a qual incide sobre a norma que a decisão recorrida tenha aplicado”
O que parece ser — em nosso entendimento — manifestamente suficiente para a prossecução de recurso, havendo “grosso modo” o recorrente cumprido o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade.
De notar, que a decisão sumária que ora se impugna, alude à conclusão n.° 6 do recurso do recorrente, mas certamente por mero lapso, nada refere sobre a apontada conclusão 3 do mesmo recurso, conclusão essa onde o recorrente também delimita o objecto do presente recurso de constitucionalidade, invocando expressamente a inconstituciona1idade material do art.° 129.° n.° 1 e 2 do CPP.
Daí, em nossa modesta opinião, a apontada (e deduzida) nulidade de omissão de pronúncia, uma vez que o douto Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre questões de que deveria ter tomado conhecimento. - a da apontada inconstitucionalidade material do art.° 129.° n.º’ 1 e 2 suscitada pelo recorrente - (art.º 379.° n.° 1 alínea c) do CPP) previsão legal que tem aplicação subsidiária à presente decisão sumária.
Finalmente, deve dizer-se que o Exm.° Relator não fez uso da faculdade que lhe confere o art.° 78.°-B da LTC, não convidando, se fosse o caso, o recorrente, a aperfeiçoar as suas conclusões.
Termos em que, pelos fundamentos expostos se requer a admissão do presente recurso de constitucionalidade, com conhecimento do seu objecto. (…)»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou resposta com o seguinte teor:
«1º
Convém desde já esclarecer que não é aplicável à invocada nulidade por omissão de pronúncia o artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP - como afirma o recorrente -, mas sim o artigo 668.º do Código de Processo Civil, por força do disposto no artigo 69.º da LTC.
2º
Pela douta Decisão Sumária n.º 249/2011, não se conheceu do objecto do recurso porque o recorrente, na motivação do recurso para a Relação – o momento processual próprio – não suscitara uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, faltando, assim, um pressuposto de admissibilidade do recurso.
3.º
Transcrevendo e referindo as partes pertinentes daquela reclamação, na Decisão Sumária explica-se, com clareza, as razões porque se chegou àquela conclusão, não se vislumbrando, minimamente, qual a questão ou questões sobre as quais a Decisão não se pronunciou, devendo tê-lo feito.
4.º
Diremos ainda que – diferentemente do que afirma o recorrente na reclamação - , foi sobretudo tendo em atenção o que constava das conclusões n.º 3 (transcrita) e n.º 7 (expressamente referida) da motivação do recurso para a Relação, que se entendeu, na decisão Sumária, que não vinham enunciadas questões de inconstitucionalidade normativa, referentes aos artigos 129.º, n.ºs 1 e 2, 127.º e 355.º do CPP.
5.º
Na reclamação, o recorrente limita-se, pois, a reafirmar e a transcrever o que havia dito, apenas desdobrando a conclusão n.º 7 em dois segmentos distintos, o que, aliás, se mostra irrelevante.
6.º
Quanto ao recorrente não ter sido convidado a aperfeiçoar as conclusões, nos termos do artigo 78.º B da LTC, apenas diremos que tal não faria sentido, uma vez que essa competência do Relator apenas pode ser exercida quanto às conclusões de alegações apresentadas no Tribunal Constitucional e não, como é o caso, as que integram a motivação do recurso para a Relação.
7.º
Por outro lado, é evidente que não foi qualquer deficiência formal de que, eventualmente, as conclusões pudessem sofrer, que levou a que fosse proferida Decisão Sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
8.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na não suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa idónea a constituir objecto do recurso de constitucionalidade.
Sob a designação de uma alegada “nulidade por omissão de pronúncia” (à qual, como salienta o Ministério Público, seria aplicável o disposto no artigo 668.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 69.º da LTC, e não o invocado artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal), o que, na verdade, o reclamante vem invocar é a sua discordância com o sentido da decisão sumária, insistindo que cumpriu o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido no que respeita à norma do artigo 129.º, n.º 1, do CPP.
Sem qualquer razão, porém.
A simples leitura da “conclusão 3.ª” da motivação do recurso – que, contrariamente ao afirmado pelo reclamante, foi expressamente tida em consideração na decisão sumária reclamada – é reveladora da falta de suscitação, de forma adequada, da questão de constitucionalidade. Porquanto não basta que o recorrente tenha questionado a constitucionalidade de uma certa “dimensão normativa” do artigo 129.º, n.º 1 e 2, do CPP, aquela que, segundo afirma, foi “feita pela instância”.
Como este Tribunal tem reiteradamente salientado, incumbe ao recorrente identificar com precisão o sentido da norma que considera inconstitucional e que pretende submeter a julgamento, de modo a que o Tribunal a possa enunciar na sua decisão, assim permitindo, caso a venha a julgar inconstitucional, que os destinatários saibam qual o sentido da norma que não pode ser utilizado por ser incompatível com a Constituição.
Resta dizer que, pelas razões já expressas na decisão sumária reclamada, que nos prescindimos de repetir, também não se mostra suscitada, de forma adequada, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de constitucionalidade normativa respeitante aos artigos 127.º e 355.º do mesmo Código.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Junho de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.