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Proc. nº 382/01 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – Por apenso aos autos de acção executiva que correm termos no Tribunal Judicial de Setúbal, movida pela C... contra F... e M..., veio o Ministério Público, em representação do Estado, reclamar os seguintes créditos:
· o montante de 66.420$00 e juros moratórios, relativa a contribuição autárquica do ano de 1998, inscrita para cobrança nesse ano, que incide sobre o móvel penhorado, invocando para o efeito o privilégio imobiliário especial previsto no artigo 744º nº. 1 do Código Civil;
· a quantia de 12.562$00, reportada à dívida do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do ano de 1998, inscrita para cobrança em
1999, invocando para o efeito o privilégio imobiliário geral previsto no artigo
104º do CIRS.
Por sentença de fls. 9 e segs., o Tribunal Judicial de Setúbal decidiu julgar inconstitucional, por violação do artigo 2º da CRP, a norma contida no artigo
104º do CIRS, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela concedido à Fazenda Pública para pagamento do IRS preferia à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil, com fundamentos idênticos àqueles que levaram o Tribunal Constitucional, nos Acórdãos nºs. 354/00 e 160/00, a julgar inconstitucional norma semelhante relativa à garantia dos créditos da Segurança Social.
Nesta conformidade, foi decidido graduar os créditos do seguinte modo:
1º - O crédito reclamado a título de contribuição autárquica;
2º - O crédito exequendo da C...;
3º - O crédito reclamado a título de IRS.
O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea a) da LTC, o qual foi admitido nos termos do despacho de fls. 18.
Nas suas alegações, o Ministério Público concluiu:
'1º - O privilégio imobiliário geral conferido à Fazenda Pública pelo artigo
104º do CIRS – interpretado em termos de conferir àquela um direito real de garantia, dotado de sequela e prevalência, nos termos do artigo 751º do Código Civil, sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora à data da penhora ou acto equivalente, garantido os créditos de IRS referentes aos três últimos anos – oponível, independentemente de registo, a quem adquira e registe hipoteca sobre os mesmos bens, viola, em termos intoleráveis, o princípio da confiança, ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa constante da decisão recorrida.'
Cumpre apreciar e decidir.
2 – O Tribunal Constitucional pronunciou-se já no sentido da inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, ínsito no artigo
2º da CRP, das normas constantes dos artigos 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho e 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas concedido à Segurança Social preferem à hipoteca nos termos do artigo 751º do Código Civil (Acórdãos nº.
160/00 e 354/00, publicados, in DR, II Série, respectivamente de 10/10/00 e
7/11/00):
Escreve-se no primeiro dos arestos citados:
'No entanto, a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante a aplicação do regime do artigo 751º do Código Civil, confere a este privilégio a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe preferência sobre direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos. Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no artigo 751º, designadamente a hipoteca - que é o caso dos autos.(...)'
Ponderando esta interpretação normativa face ao princípio da confiança, escreveu-se depois:
'Com efeito, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs. 303/90 e
625/98, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Dezembro de 1990 e
18 de Março de 1999, respectivamente).
A esta luz, pergunta-se – e os recorrentes fazem-no – que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa.' E acrescenta :
'Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social.
Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece.'
Por seu turno, o Acórdão nº. 354/00 mantém este mesmo entendimento, nele se dizendo:
'Com efeito, a tutela dos interesses do terceiro adquirente do imóvel impedirá que este venha a ser inesperada e imprevisivelmente confrontado com a existência de um privilégio oculto. Por outro lado, nenhuma das finalidades prosseguidas pela Segurança Social legitima ou exige o benefício de um privilégio com essa natureza. Assim, o privilégio imobiliário geral conferido à Segurança Social pelo artigo
11º do Decreto-Lei nº 103/80, dotado de sequela sobre todos os imóveis existentes à data da instauração da execução no património do devedor, oponível independentemente do registo a todos os adquirentes de direitos reais de gozo sobre os bens onerados (não tendo o adquirente a possibilidade de se informar sobre as dívidas do anterior proprietário, em face do sigilo fiscal), configurando-se como um verdadeiro ónus oculto, afecta, em termos desproporcionados, a boa fé e a confiança no comércio jurídico.
Conclui- se, pois, que a norma em apreciação, no entendimento agora referido, é inconstitucional, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, em conjugação com o artigo 18º, nº 2, da Constituição.'
Ora, na situação em apreço, o crédito reclamado pelo Estado resulta de dívida do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, tendo, como se disse, o tribunal recorrido recusado a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma então constante do artigo 104º do CIRS (actualmente, artigo 111º do mesmo Código) com a seguinte redacção:
'Privilégios creditórios Para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.'
Segundo a interpretação dada na sentença recorrida, a norma em causa dá preferência aos créditos do IRS relativamente à consignação de rendimentos, à hipoteca e ao direito de retenção, mesmo sendo estas garantias anteriores, nos termos do artigo 751º do Código Civil. E é com esta interpretação que a mesma sentença formula o seu juízo de inconstitucionalidade em termos idênticos aos que constam dos citados acórdãos do Tribunal Constitucional.
Ora, a tese que fez vencimento nestes arestos relativamente aos créditos da Segurança Social é, com efeito, inteiramente transponível para o caso dos autos, não constituindo as diferenças entre o regime do artigo 11º do Decreto-Lei nº
103/80 e o que se estabelece no artigo 104º (actual artigo 111º) do CIRS – garantia independente da data da constituição dos créditos e incidência do privilégio sobre os bens existentes à data da instauração da execução, no primeiro caso, garantia abrangendo apenas os três últimos anos do IRS e incidência sobre os bens existentes à data da penhora ou acto equivalente, no segundo caso - razão suficiente para a afastar, mostrando-se, também aqui e nos mesmo termos, afectado o princípio da confiança.
Com efeito, disse-se no recente Acórdão nº 109/2002 do Plenário deste Tribunal:
'(...) em ambos os casos a lei garante com um privilégio imobiliário geral
(portanto, onerando todos os imóveis do património do devedor, e não sujeito a registo) um crédito, desprovido de qualquer conexão com aqueles imóveis, no caso da segurança social, não necessariamente com eles relacionado, no caso presente
(diferentemente do que se verifica com os privilégios imobiliários especiais constantes dos artigos 743º e 744º do Código Civil), de que é titular uma entidade pública, que visa 'permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas' (acórdão nº 160/00); em ambos os casos a norma que o prevê foi interpretada no sentido de tal privilégio ser dotado de preferência sobre direitos reais de garantia, da titularidade de terceiros, sobre os bens onerados; e em ambos os casos são atingidos terceiros a quem não é acessível o conhecimento, nem da existência do crédito, em virtude de estar protegido pelo segredo fiscal, nem da oneração pelo privilégio, devido à inexistência de registo. Estas semelhanças justificam que se siga, também neste caso, o juízo de inconstitucionalidade, por se mostrar violado, nos mesmos termos, o princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.
6. Na verdade, as referidas diferenças de regime não são suficientes para afastar esta conclusão.
É exacto, como afirma o Ministério Público nas suas alegações, que o privilégio conferido à Fazenda Pública pela norma agora em apreciação é menos 'agressivo', pois que apenas beneficia os créditos constituídos nos últimos três anos, e só incide sobre os imóveis existentes no património do devedor à data da penhora. Igualmente exacto é que a Fazenda Pública não goza da hipoteca legal que é conferida à Segurança Social, que a pode registar, como se observou no acórdão nº 160/00. Todavia, e em primeiro lugar, não se vê que aquela limitação temporal seja apta a inverter o juízo de inconstitucionalidade, pois que, não tomando em consideração nenhuma relação de valores entre o crédito de imposto e o crédito do exequente, pode conduzir ao mesmo resultado a que levaria a inexistência de limite. Em segundo lugar, não há grande diferença, dentro da tramitação normal da execução, entre o momento da sua instauração e o da penhora; e a que existe não
é relevante para o efeito. Finalmente, não é a circunstância de a lei não ter curado de proteger o crédito de imposto com uma hipoteca legal que há-de justificar o sacrifício dos terceiros nos termos em que a norma em crise os afecta.'
É esta a jurisprudência que aqui se reitera, pelo que a sentença recorrida não merece censura.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a. julgar inconstitucional a norma vertida no artigo 104º do CIRS
(actualmente ínsita no artigo 111º do mesmo Código), na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele contido prefere à hipoteca, conforme o disposto no artigo 751º do Código Civil; b. negar provimento ao recurso obrigatório interposto pelo Ministério Público, confirmando-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida. Lisboa, 14 de Março de 2002 Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa