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Processo n.º 547/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A., Lda. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo dos artigos 280.º, n.º 1, al. b), da CRP e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, de acórdão proferido pela 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 23 de Junho de 2010 (fls. 262 a 272), para que seja apreciada a constitucionalidade das normas extraídas dos artigos 33°, 36° e 37° do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 03 de Abril.
2. Notificado para tal pela Relatora, a recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«I - A Recorrente pretende pelo presente recurso que seja apreciada a constitucionalidade das normas constantes nos artigos 33°, 36° e 37° do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, face aos Princípios Constitucionais da Imparcialidade, Separação e Interdependência de Poderes, Justiça e Boa-fé, bem como das Garantias de Defesa, consagrados nos artigos 2°, 32°, n.º 1, 2, 5 e 10, e 266°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
II - A Recorrente é arguida num processo de contra-ordenação onde lhe é imputada a prática de um facto previsto e punido nos termos dos artigos 13º, n.º 1, e 34°, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril.
No âmbito deste processo de contra-ordenação em que:
a) o objecto/facto imputado à arguida foi verificado por um agente da Inspecção-Geral do Ambiente (IGA);
b) a instauração do processo coube à mesma IGA;
e) a sua instrução ficou também a cargo da IGA; e, por fim,
d) a decisão final foi tomada, igualmente, pela IGA; sendo que
e) a arguida foi, sem qualquer surpresa, condenada na coima de 5.000,00€,
f) dos quais 40%, ou seja, 2.000,00 € seriam para os cofres da IGA.
III - Assim sucedeu, e sucederá SEMPRE, uma vez que:
Nos termos do art. 33º do DL 78/2004: “A fiscalização do cumprimento das disposições do presente diploma incumbe à Inspecção-Geral do Ambiente (IGA) e às CCDR (...)“.
Já de acordo com o art. 36°, n.º 1, do mesmo DL 78/2004: a instauração e instrução dos processos relativos às contra-ordenações referidas no art. 34º , IGUALMENTE, da competência da IGA e das CCDR; sendo da competência do dirigente máximo da entidade que tenha instruído o processo de contra-ordenação decidir a aplicação de coimas e sanções acessórias (cfr. n.º 2 do mesmo art. 36°).
E para culminar, prossegue o art. 37° do DL 78/2004, estabelecendo que “O produto das coimas previstas no art. 34º é afectado, independentemente da fase processual em que estas forem liquidadas, da seguinte forma:
a) 10% para a entidade que tenha levantado o auto; e
b) 30% para a entidade que instrui o processo e aplica a coima.
IV - Ou seja: Se por um lado, as normas que enquadram o processo de contra-ordenação permitem que seja a mesmíssima entidade — IGA ou CCDR, consoante a área de jurisdição — que fiscaliza o cumprimento do referido diploma legal, que instaura os respectivos processos de contra-ordenação, e que instrui esses mesmos processos de contra-ordenação;
Por outro lado, atribuem, ainda, a essa mesma entidade a competência para decidir administrativamente da condenação dos arguidos e — “cúmulo dos cúmulos!” — conferem-lhe o direito de receber uma elevada percentagem do valor das coimas que aplica — é aqui que reside, fundamentalmente, o erro jurídico-processual que inquina todo o processo contra-ordenacional e que ora se pretende seja declarado inconstitucional, como se entende ser manifesto — trata-se mesmo do expoente máximo... do paradigma da violação dos Princípios Constitucionais da Imparcialidade, da Separação de Poderes, da Justiça e da Boa-fé!
É que perante este cenário legal, verifica-se, na prática, aquilo a que vulgarmente se chama uma verdadeira “caça à multa” por parte das entidades administrativas dotadas de todos estes poderes, com a consequente condenação da grande maioria dos arguidos, independentemente da validade dos argumentos jurídicos e de facto por estes apresentados, bem como das provas por estes apresentadas e produzidas, constantemente desprezadas.
Se não bastasse a concentração de todos estes poderes na mesma entidade, o facto de a lei lhe atribuir, ainda, uma percentagem das coimas aplicadas, propicia inevitavelmente este tipo de comportamento manifestamente parcial e atentatório da Justiça e Boa-fé — a experiência prática não cessa de comprovar e confirmar tal evidência!
V — Acrescenta-se que, desta forma, e como bem se reconhece na própria sentença do Tribunal da Relação de Lisboa (pgs. 7 e 8), de que ora se recorre, nos processos de contra-ordenação abre-se campo a uma regulamentação do direito de mera ordenação social menos garantística do que a do processo penal, o que a Recorrente considera ser atentatório do art. 32°, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa:
Mais que não seja porque o processo de contra-ordenação só permite, verdadeiramente, um único grau de recurso (face à constante parcialidade das decisões administrativas, a necessidade do “chamado” recurso judicial de primeira instância é sempre um dado mais do que adquirido — trata-se de mais um factor a “entupir” os já lotados Tribunais e a atrasar a Justiça em Portugal), sendo que este recurso — para a 2ª instância — apenas conhece de matéria de direito (cfr. art. 75º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas).
Assim sendo, os direitos de defesa do arguido — ainda que constitucionalmente exigidos — não têm na (s) lei(s) regulatória(s) do(s) processo(s) de contra-ordenação a necessária consagração, dado que esta(s), como se deixa exposto, não permite(m) o pleno controlo da evidente e já habitual parcialidade que advém do facto de uma percentagem das coimas aplicadas reverter para a autoridade administrativa que instaurou o processo.
VI - Como tal, não se pode de forma alguma deixar de considerar que qualquer procedimento de contra-ordenação, como este no qual a Recorrente é arguida e do qual vem agora recorrer, originado e desenvolvido nos termos supra expostos — ao abrigo dos já mencionados artigos 33°, 36° e 37° do DL 78/2004, de 3 de Abril, padece de uma óbvia INCONSTITUCIONALIDADE, por estas normas serem violadoras dos Princípios Constitucionais da Imparcialidade, da Separação de Poderes, Igualdade, Proporcionalidade, Justiça, Boa-fé e Contraditório, bem como das Garantias de Defesa, consagrados nos artigos 2°, 32°, n.º 1, 2, 5 e 10, e 266°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).» (fls. 293 a 297).
3. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, cujas conclusões são as seguintes:
«1º
A recorrente não curou de fundamentar, em termos adequados e convincentes, as questões de inconstitucionalidade dos artigos 33.º, 36.º e 37.º, do Decreto-Lei nº 78/2004, de 3 de Abril, face aos invocados artigos 2.º, 32.º, nº 1, 2, 5 e 10, e 266.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
2º
Mesmo, todavia, que assim se não entenda, tal como estão colocadas as referidas questões, não nos parece verificar-se qualquer violação dos princípios constitucionais da imparcialidade, da separação de poderes, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da boa-fé, do contraditório, bem como das garantias de defesa do arguido, a que fazem referência as mencionadas normas da Constituição.
3º
Na verdade, a distinta natureza do ilícito criminal e de mera ordenação social, reflecte-se no regime processual próprio de cada um desses ilícitos.
4º
Efectivamente, tendo o direito das contra-ordenações sido concedido como um instrumento de intervenção administrativa de natureza sancionatória no sentido de dar maior eficácia à acção administrativa, o núcleo fundamental dos poderes sancionatórios é atribuído à Administração, a quem incumbe o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias, sendo a intervenção judiciária relegada para um nível de subsidiariedade.
5º
No entanto, a concentração de todos esses poderes na Administração, por si só, não nos parece susceptível de ofender a Constituição.
6º
Aliás, a autonomia do tipo de sanção previsto para as contra-ordenações, repercute-se a nível adjectivo, não se justificando que sejam inteiramente aplicáveis ao processo contra-ordenacional, os princípios que orientam o direito processual penal.
7º
Do mesmo modo, a invocação das garantias de processo criminal, em sede de procedimento contra-ordenacional, deve ser precedida de especiais cautelas.
8º
De qualquer forma, a posição do arguido em processo contra-ordenacional está garantida, não só pelo disposto no artigo 32.º, nº 10, da CRP e no artigo 50.º do RGCO, como também pela circunstância de poder promover a apreciação judicial da decisão administrativa.
9º
E, porque o direito de interposição de recurso em processo contra-ordenacional não pode ser apreciado à luz do nº 1 do art.º 32.º da CRP, mas, sim, do seu nº 10, o Tribunal Constitucional não tem considerado inconstitucional a não admissibilidade de recurso jurisdicional de decisões proferidas em sede de impugnação judicial de decisões administrativas aplicadoras de coimas (cfr. Ac. nº 487/09).
10º
Pelo que, a nosso ver, o presente recurso não merece provimento.»
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. As normas cuja fiscalização de constitucionalidade se requer constam do Decreto-Lei nº 78/2004, de 03 de Abril, que aprovou o regime jurídico da prevenção e controlo das emissões poluentes para a atmosfera, estipulam o seguinte:
“Artigo 33º
Fiscalização
A fiscalização do cumprimento das disposições do presente diploma incumbe à Inspecção-Geral do Ambiente (IGA) e às CCDR, sem prejuízo das competências próprias de outras entidades, nomeadamente as entidades coordenadoras do licenciamento.
(…)
Artigo 36º
Instrução e decisão dos processos
1 – A instauração e a instrução dos processos relativos às contra-ordenações referidas no artigo 34.º é da competência da IGA e das CCDR, nas áreas sob a sua jurisdição.
2 – Compete ao dirigente máximo da entidade que tenha instruído o processo de contra-ordenação decidir a aplicação de coimas e de sanções acessórias.
Artigo 37º
Produto das coimas
O produto das coimas previstas no artigo 34.º é afectado, independentemente da fase processual em que estas forem liquidadas, da seguintes forma:
10% para a entidade que tenha levantado o auto;
30% para a entidade que instrui o processo e aplica a coima;
60% para o Estado.”
De modo resumido, entende a recorrente que a conjugação destas normas prejudica, necessariamente, o dever de imparcialidade da Inspecção-Geral do Ambiente e atenta contra o princípio da separação de poderes, na medida em que a entidade que dispõe de poderes para instaurar e instruir procedimentos contra-ordenacionais e para decidir sobre a aplicação de coimas pela prática daqueles ilícitos é, simultaneamente, a entidade que beneficia (ainda que) parcialmente do produto das referidas coimas.
Vejamos, então, se assim é.
5. Antes de mais, importa reter que a Lei Fundamental, em sede de garantias processuais dos cidadãos e das pessoas colectivas, reconhece, expressamente, que, além do Direito Penal, outros ramos do Direito Público assumem uma natureza punitiva ou sancionatória. Assim, além da referência específica ao Direito Contra-Ordenacional, a norma constitucional assume uma vocação ampliadora, abarcando todos os demais ramos do Direito Administrativo Sancionatório –, devendo a lei assegurar o respeito pelos direitos de audiência e de defesa (artigo 32º, n.º 10, da CRP).
Se atentamos nos mecanismos próprios do Direito Contra-Ordenacional, verificamos que o legislador operou a uma cisão entre uma fase de aferição administrativa do cometimento do ilícito – “fase administrativa” (artigos 33º a 58º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro) – e uma fase de controlo jurisdicionalizado da decisão sancionatória – “fase jurisdicional” (artigos 59º a 75º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro). Visando a sanção contra-ordenacional fins de prevenção geral e especial da prática de actos contrários ao bloco de legalidade – que, no entanto, não se revestem de um desvalor jurídico suficientemente forte que justifique a respectiva criminalização –, compreende-se, portanto, que o legislador tenha cometido à própria administração pública os poderes para fiscalizar o cumprimento daquele bloco de legalidade e, em caso de infracção, o poder para os sancionar. Essa função corresponde, aliás, à própria essência da função administrativa, ou seja, à execução dos comandos normativos adoptados pelos órgãos competentes, em estrita observância e prossecução do interesse público.
E nem se diga que tal função punitiva, exercida pela administração pública, coloca em causa o princípio da separação de poderes, por invadir o âmago da função jurisdicional. Com efeito, por força do n.º 2 do artigo 202º da Constituição da República Portuguesa, cabe aos tribunais “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”, mas tal comando constitucional não se opõe ao exercício por várias entidades administrativas de poderes sancionatórios, que visam, precisamente, reprimir a violação da legalidade democrática, e que, aliás, alguma doutrina qualifica como poderes de tipo para-jurisdicional (adoptando esta terminologia, ver Miguel Prata Roque, Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, in «Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras» (Separata), Coimbra, Coimbra Editora, 2009, 389-396; Ramón Parada, Derecho Administrativo – Parte General, Vol. I, 16ª edição, Madrid, Marcial Pons, 2007, pp. 407 e 408; Paula Costa e Silva, As autoridades administrativas independentes, in «O Direito», Ano 138º, 2006, Tomo III, 558 e 559; Pedro Gonçalves, Direito Administrativo da Regulação, in «Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano», FDUL, 2006,546; Vital Moreira / Fernanda Maçãs, Autoridades Reguladoras Independentes – Estudo e Projecto de Lei Quadro, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, 40.
Este Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar no sentido de que o exercício de poderes sancionatórios pela administração pública não contende, em regra, com o princípio da separação de poderes, na medida em que aquele possa ser alvo de controlo jurisdicionalizado, ainda que apenas em momento posterior à aplicação da sanção administrativa. Assim, veja-se o Acórdão n.º 161/90 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
“Só os tribunais podem aplicar penas e medidas de segurança. Mas já não cabe no principio da 'reserva do Juiz', por já não ser 'administração da justiça', a aplicação de sanções não criminais não restritivas da liberdade: estas podem ser aplicadas pelas autoridades administrativas, desde que se garanta um efectivo recurso aos tribunais e se assegurem ao arguido as necessárias garantias de defesa (o principio da defesa vale, na sua ideia essencial, para todos os domínios sancionatórios)”.
Ora, à semelhança do que sucede nos demais procedimentos contra-ordenacionais, a decisão condenatória proferida pela Inspecção-Geral do Ambiente, é passível de impugnação judicial, nos termos do n.º 1 do artigo 59º do Decreto-Lei n.º 433/82, aplicável ao caso em apreço nos autos. Tanto assim é que o presente recurso de constitucionalidade decorreu de processo jurisdicional no qual a recorrente teve oportunidade de fazer submeter a decisão administrativa de aplicação de coima a um controlo jurisdicionalizado.
Assim sendo – e aderindo-se à jurisprudência supra citada –, entende-se que as normas extraídas dos artigos 33º e 36º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 78/2004, de 03 de Abril, não contrariam o princípio da separação de poderes (artigo 111º, n.º 1, da CRP), nem tão pouco contrariam a reserva da função jurisdicional (artigo 202º, da CRP), por permitirem a uma entidade administrativa – in casu, a Inspecção-Geral do Ambiente – a instrução e a decisão de sanção a aplicar, no âmbito de um procedimento contra-ordenacional.
6. Resolvida esta questão, passemos a aferir o principal argumento esgrimido pela recorrente, segundo o qual a alínea b) do artigo 37º do referido Decreto-Lei n.º 78/2004 seria inconstitucional, por permitir que a entidade administrativa que aplica a coima beneficie, ainda que apenas parcialmente, do produto da respectiva coima. Segundo o recorrente tal norma legitimaria uma verdadeira “caça à multa”, infringindo os princípios constitucionais “da Imparcialidade, (…) Igualdade, Proporcionalidade, Justiça, Boa-fé e Contraditório, bem como das Garantias de Defesa”.
É de sublinhar que as entidades administrativas que dispõem de poderes sancionatórios, designadamente em matéria de responsabilidade contra-ordenacional, encontram-se, simultaneamente obrigadas ao respeito dos princípios gerais aplicáveis a qualquer procedimento administrativo [vide artigos 3º a 12º do Código de Procedimento Administrativo (CPA)] e ao respeito das garantias de defesa dos arguidos em procedimentos contra-ordenacionais (artigo 32º, n.º 10, da CRP). Como tal, independentemente de beneficiarem – apenas a final – do produto das coimas pagas pelos arguidos, certo é que persistem vinculados aos princípios da imparcialidade e da justiça (artigo 6º do CPA), da igualdade e da proporcionalidade (artigo 5º do CPA) e da boa fé (artigo 6º-A do CPA).
Assim sendo, em boa verdade, o problema suscitado pela recorrente situa-se mais ao nível da eventual violação de princípios e de normas de fonte infra-constitucional que conduziria à invalidade da decisão administrativa de natureza condenatória do que da constitucionalidade quanto à norma extraída da alínea b) do artigo 37º do Decreto-Lei n.º 78/2004.
Senão, vejamos.
A sanção contra-ordenacional visa a prevenção de novas infracções e a motivação dos administrados para o cumprimento da lei, não podendo as coimas ser utilizadas como meio de financiamento da própria Administração Pública, sob pena de desvio de poder na decisão administrativa que aplica a sanção (aliás, é tradicional apresentar-se como exemplo académico deste vício do acto administrativo, precisamente, o exercício de poderes de polícia administrativa com o propósito de obtenção de receitas públicas; assim, ver Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2ª reimpressão, 2003, Coimbra, p. 395). Ora, caso o recorrente tivesse logrado demonstrar, perante os tribunais recorridos, que a decisão administrativa condenatória havia sido tomada mediante violação dos deveres de imparcialidade e com o intuito de prosseguir um interesse público distinto do visado pela lei, então bastar-lhe-ia ter invocado tais fundamentos de invalidade da decisão administrativa para obstar à sua produção de efeitos. Não o fez, contudo.
Além disso, a opção legislativa relativa ao destino do produto das coimas (artigo 37º do Decreto-Lei n.º 78/2004) deve ser avaliada, à luz de uma ponderação dos vários interesses (contraditórios) em presença. A Lei Fundamental não só incumbe a administração pública de acautelar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266º, n.º 2, da CRP), garantindo os direitos de audiência e de defesa dos arguidos em procedimentos contra-ordenacionais (artigo 32º, n.º 10, da CRP), como também se encarrega de garantir o direito fundamental de todos os cidadãos “a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” (artigo 66º, n.º 1, da CRP). Como tal, justifica-se que o produto de coimas suportadas por aqueles que colocam em risco ou lesam esse ambiente revertam, parcialmente, para uma entidade administrativa encarregue da prevenção e preservação dessa mesma qualidade ambiental.
Tal exercício de poder sancionatório pressupõe sempre que as decisões condenatórias tomadas visem exclusivamente prosseguir o interesse público de manutenção de um ambiente sadio e nunca a mera obtenção de receitas próprias.
Em suma, a alínea b) do artigo 37º do Decreto-Lei n.º 78/2004 não padece de inconstitucionalidade por violação dos princípios da imparcialidade e da justiça (artigo 266º, n.º 2, da CRP), na medida em que o benefício de uma parcela do produto das coimas pela entidade administrativa que tomou a decisão condenatória não implica, por si só, que aquela deixe de observar os deveres de imparcialidade e de justiça que lhe incumbem por força da Constituição e da lei, tanto mais que a decisão final caberá sempre, em última instância, como se disse atrás, ao poder judicial.
Quanto à alegada violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da boa fé – invocados em bloco, por referência ao n.º 2 do artigo 266º da CRP – não se vislumbra de que modo é que aqueles princípios possam constituir parâmetro de validade da norma extraída da alínea b) do artigo 37º do Decreto-Lei n.º 78/2004. Por um lado, não se compreende de que modo poderia considerar-se violado o princípio da igualdade, na medida em que todas as coimas pagas a título de sanção contra-ordenacional previstas naquele diploma legal são objecto de entrega parcial à Inspecção-Geral do Ambiente. Por outro lado, não se detecta qualquer desproporção na opção legislativa atribuir 30% do produto das coimas à entidade que aplica a coima. Por último, a invocação do princípio da boa fé apresenta-se como completamente desprovido de sentido.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso interposto.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 7 de Junho de 2011. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.