Imprimir acórdão
Processo n.º 365/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com os seguintes fundamentos:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Quando interpostos ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de requisitos específicos, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento.
Em primeiro lugar, é necessário que o objecto do recurso seja uma norma (em si mesma ou numa sua interpretação), tal como que tal norma (ou dimensão interpretativa questionada) tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Em segundo lugar, torna-se necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de forma que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso.
E, em terceiro lugar, é mister que tenha havido o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Ora, compulsados os autos, verifica-se que em lugar algum o recorrente suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de, como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, este estar obrigado a dela conhecer.
Tal é expressamente reconhecido pelo próprio recorrente no requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade, aí se sustentando, porém, que não se lhe era de exigir o cumprimento desse ónus, porquanto a inconstitucionalidade apenas teria surgido com o Acórdão de 24.03.2011, pelo que não lhe seria exigível prever que essa inconstitucionalidade se iria verificar.
Atendendo a que o Acórdão de 24.03.2011 se limita a confirmar o despacho proferido pela Exma. Desembargadora Relatora, e os fundamentos nele oferecidos, e ao contrário do que é sustentado no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o recorrente dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade relacionada com o n.º 1 do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, podendo tê-lo feito na reclamação do despacho para a conferência (…).
Não o tendo feito, como lhe era exigível, não se encontra satisfeito o pressuposto processual de prévia suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo.
Tanto basta para que se não possa admitir o presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), concluindo do seguinte modo:
A) Vem a presente reclamação deduzida contra a Decisão Sumária n.° 313/2011, proferida em 25 de Maio de 2011, pela Juíza Conselheira Relatora deste Tribunal, através da qual se decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto pelo aqui Reclamante para o Tribunal Constitucional (em 28 de Abril de 2011).
B) De acordo com aquela Decisão Sumária o aqui Reclamante dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade relacionada com o n.° 1, do artigo 690.°-A, do Código de Processo Civil (CPC), “podendo tê-lo feito na reclamação do despacho para a conferência” do despacho proferido pela Exma. Senhora Desembargadora Relatora, e não o fez.
C) Sucede, porém, que não pode o aqui Reclamante, conformar-se com a Decisão Sumária proferida nos termos supra indicados e com os fundamentos ali aduzidos.
D) Com efeito, entende o ora Reclamante, salvo o devido respeito, que há na Decisão Sumária reclamada uma errada interpretação do disposto na alínea b), do n.° 1, do artigo 70.°, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), impondo essa norma (se correctamente interpretada) outra decisão.
E) Pese embora a LTC, limite o recurso a interpor perante o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea b), do n.° 1, do artigo 70°, às situações em que se aplique “norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”,
F) No caso dos presentes autos, as inconstitucionalidades apenas surgiram com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 24 de Março de 2011.
G) Sem que antes deste, tivesse o Reclamante condições para prever que essas inconstitucionalidades se iriam verificar e por essa razão, sem que até àquele momento tivesse o Reclamante motivos para suscitar durante o decurso do processo as inconstitucionalidades que agora pretende que sejam apreciadas pelo Tribunal Constitucional,
H) Trata-se esta de uma situação excepcional e que por essa razão impõe uma apreciação casuística face ao disposto na alínea b), do n.° 1, do artigo 70.°, da LTC.
I) A interpretação a fazer daquela norma terá, pois, que ser extensiva, integrando situações que numa abordagem mais estrita não encontrariam consagração naquela disposição normativa.
J) Muito embora a jurisprudência do Tribunal Constitucional tenha vindo a exigir que, no caso da alínea b), do n.° 1, do artigo 70°, da LTC, as questões de inconstitucionalidade hajam sido suscitadas durante o processo e não em sede de requerimento de interposição do recurso, é de concluir que esta regra admite excepções, designadamente, nas situações em que o interessado não disponha de oportunidade processual para levantar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão. É esta a situação dos presentes autos.
K) Face ao exposto, não era pois exigível ao Reclamante que, em momento anterior, tivesse alegado as inconstitucionalidades (só) agora verificadas, por não lhe ser possível representar que iria ser adoptada uma interpretação inconstitucional das normas em questão.
L) Mas, ainda que assim não fosse, ou seja, admitindo – sem conceder e apenas por mera cautela de patrocínio – que tal como refere a Decisão Sumária ora reclamada que o ora Reclamante tivesse tido (em momento prévio) oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade relacionada com o n.° 1 do artigo 690.°-A, do Código de Processo Civil, “podendo tê-lo feito na reclamação do despacho para a conferência” do despacho proferido pela Exma. Senhora Desembargadora Relatora,
M) Ainda assim sempre se teria de concluir que, ao contrário, do entendimento sufragado na Decisão Sumária, o aqui Reclamante suscitou (efectivamente) nessa sede a referida questão.
N) Com efeito, a questão foi suscitada na Reclamação deduzida para a Conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, como melhor decorre dos artigos 48.° e seguinte daquele articulado, assim como das conclusões, em concreto no que se refere às alíneas dd) e seguintes.
O) Designadamente, a questão da constitucionalidade relacionada com o n.° 1, do artigo 690.°-A do Código de Processo Civil (CPC), quando interpretado no sentido de que, não se mostrando preenchidos os requisitos de que a lei faz depender a admissão do recurso da matéria de facto, é de rejeitar esse recurso, ao invés, de se convidar o recorrente a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso de modo a satisfazer os ónus que sobre ele recaem.
P) Ora, salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação de Lisboa ao confirmar a Decisão Singular proferida pela Relatora, mantendo o entendimento de não conhecer do mérito do recurso deduzido, por as alegações do mesmo não respeitarem os requisitos previstos no n.° 1, do artigo 690.°-A, do CPC, fez uma aplicação inconstitucional quer daquela norma, quer das disposições previstas nos artigos 690.°, n.° 4 e 701 .°, n.° 1, do CPC,
Q) Violando, em consequência, quer o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18°, n.° 2, da CRP, quer o princípio da tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.°, ambas as disposições da Constituição da República Portuguesa (CRP).
R) É, também, essa interpretação inconstitucional que o aqui Reclamante pretender ver apreciada por este Tribunal.
S) Por tudo isto, não pode o aqui Reclamante, conformar-se com a Decisão Sumária proferida nos termos supra indicados e com os fundamentos ali aduzidos.
T) Face a todo o exposto, é entendimento do aqui Reclamante só agora estarem reunidas as condições para arguir a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo Acórdão da Relação de Lisboa, relativamente ao n.° 1, do artigo 690.°-A, do CPC, assim como das disposições previstas nos artigos 690.°, n.° 4 e 701 .°, n.° 1, do CPC.
U) Pelo exposto, impõe-se concluir que se encontram reunidas as condições legais para o conhecimento do recurso deduzido pelo aqui Reclamante.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. O reclamante contesta o fundamento oferecido na decisão sumária reclamada para o não conhecimento do recurso de constitucionalidade por si interposto – o de se não verificar o pressuposto processual de prévia suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de, como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, este estar obrigado a dela conhecer.
São, essencialmente, dois os argumentos oferecidos pelo reclamante.
Em primeiro lugar, afirma o reclamante que, in casu, não se lhe seria de exigir a suscitação prévia da questão de constitucionalidade, por as inconstitucionalidades apenas terem surgido com o acórdão recorrido, sem que antes disso o reclamante tivesse condições de prever que essas inconstitucionalidades se iriam verificar. No entender do reclamante, o caso dos autos deveria ser considerado como configurando uma daquelas situações jurisprudencialmente consideradas excepcionais pelo Tribunal Constitucional, por se tratar de situação inédita, imprevisível ou sequer expectável, dada a total imprevisibilidade da interpretação normativa em causa, não fazendo sentido impor ao recorrente o ónus de antecipar tal interpretação.
Em segundo lugar, para o caso de se entender que a suscitação prévia da questão de constitucionalidade não pudesse ser considerada dispensável, afirma o reclamante ter suscitado efectivamente tal questão na reclamação deduzida para a Conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, como melhor decorre dos artigos 48.º e seguintes, assim como das conclusões, em concreto no que se refere às alíneas dd) e seguintes.
Não tem razão o reclamante.
Importa começar por observar que, ao argumentar como faz, o reclamante cai em contradição.
Com efeito, como pretender justificar a inexigibilidade da suscitação prévia da questão de constitucionalidade, com fundamento na total imprevisibilidade da interpretação seguida pelo tribunal e, ao mesmo tempo, afirmar que se cumpriu o requisito de suscitação prévia da questão de constitucionalidade- Pois que, na lógica da argumentação do reclamante, se a interpretação acolhida era totalmente imprevisível, como poderia o recorrente, ora reclamante, tê-la antecipado na reclamação deduzida para a Conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, como sustenta, afinal, ter feito-
Ou bem que a interpretação acolhida pelo tribunal a quo era totalmente imprevisível e, logicamente, não poderia o recorrente, ora reclamante, tê-la de todo antecipado, ou bem que a mesma não era totalmente imprevisível e, nesse caso, não sendo dispensável a sua suscitação prévia, o recorrente, ora reclamante, teria vindo dar cumprimento a tal requisito legal justamente suscitando atempadamente a questão de modo a que o tribunal a quo pudesse sobre a mesma tomar posição.
Argumentar as duas coisas em simultâneo é logicamente impossível.
Abstraindo agora dessa contradição lógica entre os dois argumentos oferecidos pelo reclamante para contrariar o fundamento oferecido na decisão sumária reclamada e se poder considerar cumprido o requisito de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, proceder-se-á à análise de cada um deles em separado.
O primeiro argumento utilizado pelo reclamante é o de que não se lhe seria de exigir a suscitação prévia da questão de constitucionalidade dada a total imprevisibilidade da interpretação normativa em causa.
Porém, o reclamante não explica por que razão entende ser tal interpretação imprevisível. Ora, como se afirma no Ac. n.º 213/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “[é], no entanto, de exigir que o invocado elemento surpresa decorra de regras de interpretação e aplicação lógicas e, por isso, se impõe que sobre aquele que alega essa circunstância recaia o ónus de explicitar os factores, objectivos, que possam conduzir o tribunal a aceitar uma tal conclusão. É assim insuficiente afirmar, de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente, se não se aponta com o necessário rigor quer a formulação da interpretação normativa usada, quer a razão pela qual, em atenção à fase processual verificada, foi impossível ao interessado suscitar atempadamente a questão. Na verdade, a jurisprudência do Tribunal tem vincado que «só em casos excepcionais e anómalos» em que o recorrente não dispôs processualmente da possibilidade da suscitação atempada da questão é que será «admissível» a arguição em momento subsequente (Acórdãos 62/85, 90/85 e 160/94 in AcTC, 5º vol., p. 497 e 663 e DR, II, de 28MAI94) o que faz recair sobre o recorrente o dito ónus de expor, com a devida concretização, as circunstâncias pelas quais lhe foi impossível suscitar a questão de forma adequada”.
Ainda que assim não fosse, é, em todo o caso, manifesto que jamais poderia a interpretação feita pelo Tribunal a quo ser considerada totalmente imprevisível.
Na verdade, e como se disse na decisão sumária reclamada, o acórdão proferido pelo Tribunal a quo limitou-se a confirmar o despacho proferido pela Exma. Desembargadora Relatora, e os fundamentos nele oferecidos, pelo que, longe de a interpretação dada ao n.º 1 do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, ser imprevisível, ela não só não o era, de todo, como, aliás, era efectivamente do conhecimento do recorrente, ora reclamante, tendo este disposto de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade na reclamação desse despacho para a Conferência, de modo a que o Tribunal a quo sobre tal questão pudesse ter tomado posição, sendo-lhe exigível que tivesse suscitado previamente a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Vejamos então – assim analisando o segundo argumento utilizado pelo reclamante – se se pode considerar ter sido a questão de constitucionalidade que integra o objecto do presente recurso previamente suscitada.
O reclamante afirma que suscitou tal questão justamente na reclamação deduzida para a Conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, como melhor decorre dos artigos 48.º e seguintes, assim como das conclusões, em concreto no que se refere às alíneas dd) e seguintes.
Compulsados os autos, e como se disse na decisão sumária reclamada, em lugar algum é suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Aliás, o próprio reclamante reconhece que não indicou então expressamente que pretendia suscitar uma questão de constitucionalidade.
Ora, segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Ac. n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Ac. n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”.
Não se verifica, portanto, um pressuposto essencial do presente recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Tanto basta para que dele se não possa conhecer.
Assim, confirma-se a decisão sumária reclamada de não conhecimento do recurso.
III – Decisão
4. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2011. – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.