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Processo nº 760/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, interposto por A... e mulher, M..., ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, sendo recorrida P..., foi proferida decisão sumária, em 30 de Janeiro último, negando provimento ao recurso e condenando em custas os recorrentes.
2. - A decisão proferida é do seguinte teor:
'1. –P... intentou, no Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Gaia, acção de despejo, sob a forma sumária, contra A ... e mulher, M..., todos identificados nos autos, pedindo: a) a declaração de caducidade do contrato de arrendamento para habitação celebrado entre F..., como locadora, e o réu marido, como locatário, da cave do prédio sito no nº 152 da Rua Clube de Caçadores, Mafamude, naquela cidade; b) a declaração de caducidade do direito dos réus ao novo arrendamento, em virtude de o respectivo direito não ter sido exercido no prazo estabelecido no nº 1 do artigo 94º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), aplicável por remissão do nº 2 do artigo 66º do mesmo diploma; c) a condenação dos réus a despejar imediatamente o locado, entregando-o livre de pessoas e bens. Alegou, em síntese, ser dona e proprietária plena do prédio em referência, sua propriedade desde 12 de Janeiro de 1995, data em que faleceu a citada F..., que era usufrutuária do mesmo, e, nessa qualidade comunicou ao réu marido, por carta registada com aviso de recepção, em 30 desse mês e ano, o óbito, com o pedido de entrega do locado, ao que este respondeu em 28 de Junho seguinte, mediante notificação judicial avulsa, manifestando-lhe a sua pretensão em manter o arrendamento. Contestaram oportunamente os demandados, alegando, em síntese e no que ora interessa, que o contrato foi celebrado na vigência do nº 2 do artigo 1051º do Código Civil, tendo-se constituído na sua esfera jurídica a renovação do contrato, pelo que não se operou a caducidade deste. De qualquer modo, acrescentam, o nº 2 do artigo 5º do RAU padece de inconstitucionalidade orgânica, pois só a Assembleia da República tem competência para legislar sobre a matéria de arrendamento e o diploma do Governo deveria preservar as regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário. Os autos prosseguiram a sua normal tramitação e, em 31 de Janeiro de 2001, foi proferida sentença, julgando a acção procedente e condenando os réus no pedido – após afastar a alegada inconstitucionalidade, citando, nomeadamente, a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
2. - Recorreram os réus, de apelação, para o Tribunal da Relação do Porto, insistindo na inconstitucionalidade orgânica advinda da revogação da norma do nº
2 do artigo 1051º do Código Civil pelo do nº 2 do artigo 5º do RAU, já que esta foi 'produzida' pelo Governo em desrespeito pela obrigação estabelecida na alínea c) do artigo 2º da lei de autorização legislativa da Assembleia da República, a Lei nº 43/90, de 10 de Agosto. Esse Tribunal, por acórdão de 6 de Novembro de 2001, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão da 1ª instância. Também agora se concluiu pela não ocorrência do vício alegado. Escreveu-se, na parte que interessa:
'Cabe, em princípio, à Assembleia da República a competência legislativa – artº
164º, al. d) – mas pode aquela conceder autorização legislativa ao Governo para este legislar sobre matérias da sua reserva relativa de competência como o regime geral do arrendamento urbano – artºs. 168º al. h) e 201º nº 1 al. b) –, pois incumbe ao Estado assegurar a todos os cidadãos uma habitação condigna, etc. – artº 65º – todos da Constituição da República. A autorização legislativa foi concedida ao Governo pela Lei nº 42/90, de 10.08, e a alínea c) do seu artº 2º impunha-lhe o dever de salvaguardar as regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário. Dispunha o nº 2 do artº 1051º do Código Civil que ‘no arrendamento urbano, o contrato não caduca pela verificação dos factos previstos na alínea c) do número anterior se o inquilino, no prazo de 180 dias após o seu conhecimento, comunicar ao senhorio, por notificação judicial, que pretende manter a sua posição contratual’. Sob o epíteto ‘Caducidade’, dispõe o nº 2 do artº 66º do citado DL 321-B/90:
‘2. Quando o contrato de arrendamento para habitação caduque por força da alínea c) do artigo 1051º do Código Civil, o arrendatário tem direito a um novo arrendamento nos termos do artigo 90º’. Ainda que a remissão aludida no artigo 90º não se mostre muito feliz já que o preceito se refere às pessoas que têm direito a um novo arrendamento, falecido o primitivo arrendatário, há que interpretar a vontade do legislador no sentido de que o direito ao novo arrendamento por morte do senhorio usufrutuário é regulado pelo aludido artigo e subsequentes. Sendo assim o direito ao novo arrendamento deve ser exercido mediante declaração escrita enviada ao ‘senhorio’ nos trinta dias subsequentes `caducidade do contrato – artº 94º, nº 1, do DL 321-B/90. Daí não poder concluir-se, apenas porque as condições do exercício do direito a novo arrendamento foram alteradas que o Governo, no exercício da competência legislativa delegada, tenha postergado regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário.
É que para o arrendatário apenas se alterou o quadro legal vigente ao tempo da celebração do contrato mas continuou a ser o destinatário de norma legal tendente a proteger o seu direito. O não estar atento ao novo preceito da lei é questão que aqui não se releva. Daí termos de concluir, e na esteira da jurisprudência do Tribunal Constitucional nos seus Acórdãos de 18.11.98 e de 10.03.99, publicados no DR, II Série, nºs. 68 e 157, respectivamente de 22.03.99 e de 08.07.99, que não ocorre a alegada inconstitucionalidade orgânica.'
É deste acórdão que recorrem os réus para o Tribunal Constitucional, insistindo na inconstitucionalidade orgânica da norma do nº 2 do artigo 5º do RAU.
3. - Entende-se ser de proferir, desde já, decisão sumária, os termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, visto já ter sido objecto de decisões anteriores do Tribunal Constitucional.
4. - No entendimento dos recorrentes, a norma do nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, revogatória do nº 2 do artigo 1051º do Código Civil, não respeita 'as balizas da lei de autorização', violando, por conseguinte, o disposto na alínea h) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, na versão resultante da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, que atribui à reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República legislar a respeito do 'regime geral do arrendamento rural e urbano'. Com efeito, dizem os mesmos recorrentes, as alterações autorizadas no tocante ao regime jurídico do arrendamento urbano, previstas no artigo 2º da Lei nº 42/80, devem obedecer, entre outras directrizes, à 'preservação das regras socialmente
úteis que tutelam a posição do arrendatário' – alínea c) – o que não permite, em seu entender, ter como constitucional uma norma que revoga o nº 2 do artigo
1051º do Código Civil, norma indiscutivelmente e socialmente útil, pois, 'além de permitir a renovação de contratos que sem ela caducariam, deixando o arrendatário sem habitação, é imposta pelo princípio da boa fé negocial, pois, a maior parte das vezes, o arrendatário negoceia com quem tem precários poderes de representação sem ter consciência desse facto e, por isso, é apanhado de surpresa aquando da caducidade do contrato'.
5. - Ora, sobre esta mesma questão já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 658/98 (publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Março de 1999), concluindo pela não inconstitucionalidade da norma em questão, de acordo com o entendimento de que a revogação do nº 2 do citado artigo 1051º e a sua substituição pelo regime resultante dos artigos 66º, nº 2, e 90º e seguintes do RAU encontra justificação na própria alínea c) do artigo 2º da Lei nº 42/90, bem como na alínea a) do mesmo preceito. Escreveu-se, nesse aresto, designadamente:
'[...] A finalidade de protecção do inquilino [habitacional] é conseguida através do direito a um novo arrendamento, sujeito ao regime dos arrendamentos celebrados através do exercício do direito a um novo arrendamento [artigo 90º do RAU], mas admitindo a caducidade do anterior arrendamento, v.g., por morte do usufrutuário (e consequente extinção do usufruto). Ora, com esta finalidade e este sentido, a medida adoptada pelo legislador do artigo 5º, nº 2, do diploma que aprovou o RAU consistente na revogação do artigo
1051º, nº 2, do Código Civil, e a sua substituição pelo artigo 66º, nº 2, do novo regime – não se afigura ao Tribunal Constitucional nem violadora da directriz constante da alínea c) do artigo 2ºda Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, nem carecida de habilitação por esta lei de autorização legislativa.'
E, a seguir, pronunciando-se sobre o sentido da directriz mencionada, o acórdão adere aos termos com que o mesmo foi delimitado por outro aresto deste Tribunal, o nº 311/93, publicado no citado jornal oficial, II Série, de 22 de Julho de
1993, ou seja, o 'de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou travavam desigualmente os contrastes sem que para tanto houvesse fundamento material'. Nesta linha de orientação, mais se ponderou:
'Não se pode, pois, divisar nessa alínea c) uma prescrição de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime anterior do arrendamento urbano que fossem favoráveis ao arrendatário. Tal entendimento, restritivo e diverso do adoptado anteriormente pelo Tribunal não consideraria, desde logo, a limitação da alínea c) apenas às regras 'socialmente úteis', nem a natureza da fórmula empregue pelo legislador parlamentar, de molde a permitir ao Governo um juízo sobre a utilidade social das regras, ficando obrigado a preservar aquelas em relação às quais esse juízo fosse positivo. Aquela posição restritiva poderia, aliás, fazer o legislador da Lei n.º 42/90 incorrer numa contradição, entre as alíneas b) e c) do artigo 2º desse diploma, uma vez que qualquer facilitação do funcionamento da cessação do contrato - ainda que através da mera simplificação das suas regras processuais – deveria ser considerada violadora da referido imperativo legal de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime do arrendamento favoráveis ao inquilino. Tem, pois, de entender-se que o legislador ficou habilitado pela alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 a formular um juízo sobre a 'utilidade social' das regras do regime do arrendamento urbano, podendo eliminar ou reformular aquelas que se revelavam 'socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material' (formulação adoptada no citado Acórdão n.º 311/93). Ora, foi justamente isto o que o legislador do RAU fez quanto ao problema do destino do arrendamento em caso de caducidade por cessação do direito ou dos poderes legais com base nos quais tinha sido celebrado – previu a caducidade do contrato, repondo a redacção originária do Código Civil, mas atribuiu ao inquilino habitacional, cuja protecção se lhe afigurou sem dúvida 'socialmente
útil' em maior medida, o direito a um novo arrendamento. Conclui-se, assim, que a revogação do artigo 1051º, n.º 2 do Código Civil pelo artigo 5º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (e substituição daquele regime do Código Civil pelo regime resultante dos artigos 66º, n.º 2 e
90º e segs. do RAU) encontra justificação na própria alínea c) do artigo 2º da lei de autorização legislativa. E, desde logo por isto, não vislumbra este Tribunal qualquer inconstitucionalidade orgânica nesse artigo 5º, n.º 2. '
Por sua vez , no acórdão nº 60/99 (publicado no Diário referido, II Série, de 22 de Março de 1999), ao conhecer-se da conformidade da mesma norma com o artigo
65º da Constituição da República, igualmente se considerou não ser a mesma organicamente inconstitucional, com fundamento nas razões convocadas no acórdão nº 658/98, agora também no sentido do cabimento na alínea a) do artigo 2º da Lei nº 42/90. Finalmente, no acórdão nº 177/99, publicado no mesmo Diário, II Série, de 8 de Julho de 1999, subscreveu-se a doutrina subjacente naquele aresto de 1998, estando então em causa a alegada violação dos artigos 2º e 13º da Lei Fundamental.
6. - Não se vê razão válida quer susceptibilize mudança de entendimento, remetendo-se para os aresto citados e respectiva fundamentação. De resto, no concreto caso, nunca seria razoável argumentar com o princípio da boa fé negocial, como se vem fazendo, dado que a caducidade do contrato estava igualmente prevista, na alínea c) do artigo 1051º do Código Civil, sendo certo que, no contrato de arrendamento celebrado, a locadora interveio na expressa qualidade de usufrutuária do espaço locado, o que logo retira qualquer surpresa face aos 'precários poderes de administração' de quem deu de arrendamento.
7. - Em face do exposto, decide-se, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, negar provimento ao recurso. Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta.'
3. - Notificada, reclama a recorrida para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
No entanto, não aduz qualquer fundamentação, pelo que a sua reclamação 'não consubstancia as razões da discordância relativamente à decisão reclamada' (como se escreveu no acórdão, inédito, nº 293/2001).
4. - Em face do exposto, indefere-se a reclamação.
Custas pela recorrida, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa,14 de Março de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida (vencido, pelas razões da declaração de voto que juntei ao Ac. Nº 60/99).