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Processo n.º 206/10
Plenário
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:I – Relatório1. O Ministério Público interpôs recurso para o Plenário, ao abrigo do artigo 79.°-D da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores, adiante LTC), do Acórdão n.º 35/2011 (1.ª Secção) que decidiu “não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, quando interpretada no sentido que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão de execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora.”
Invoca oposição com os Acórdãos n.ºs 24/2011, 26/2011 e 85/2011 (todos da 2.ª secção) nos quais se decidiu julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, interpretada com o sentido de que aí se consagra uma responsabilização subsidiária pelas coimas que se efectiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra os gerentes e administradores da sociedade devedora.
2. Admitido o recurso, o recorrente Ministério Público apresentou alegações, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma.
3. A recorrida Fazenda Pública apresentou alegações no sentido da improcedência do recurso.
II – Fundamentação4. Mostram-se verificados os pressupostos do recurso para o Plenário, ao abrigo do disposto no artigo 79.°-D da LTC, uma vez que a questão de constitucionalidade foi julgada em sentido divergente ao anteriormente adoptado quanto à mesma norma.
Na verdade, os acórdãos em confronto decidiram em sentido oposto quanto à questão da constitucionalidade da norma do artigo 8.º do RGIT, na interpretação que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão de execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora.
a) Do objecto do recurso
5. O presente recurso tem por objecto o artigo 8.º, n.º 1 do RGIT o qual apresenta a seguinte redacção:
Artigo 8.º
Responsabilidade civil pelas multas e coimas
1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
Em causa, nos autos, estavam coimas por infracções fiscais aplicadas a um gerente, enquanto responsável subsidiário, dada a comprovada insuficiência patrimonial da devedora originária. Os autos não esclarecem, no entanto, se a imputação foi feita ao abrigo da alínea a) ou da alínea b) do artigo 8.º, n.º 1 do RGIT.
b) Do mérito do recurso
6. A questão que o Tribunal Constitucional é agora, em Plenário, chamado a apreciar, tem merecido amplo tratamento jurisprudencial não só neste Tribunal mas também nas instâncias administrativas, designadamente no Supremo Tribunal Administrativo. Este Supremo Tribunal tem vindo a entender, de modo reiterado, que a responsabilização subsidiária de gerentes e administradores por coimas resultantes de infracções fiscais é inconstitucional, essencialmente por violação do princípio constitucional da proibição de transmissão da responsabilidade penal, constante do artigo 30.º, n.º 3, bem como dos direitos de audiência e de defesa decorrentes do artigo 32.º, n.º 10, ambos da Constituição (cfr., por todos, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Dezembro de 2009, proferido no processo n.º 01074/09, para o qual remete especificamente a decisão proferida pelo TAF de Coimbra, e que se encontra disponível em www.dgsi.pt).
7. Já neste Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 129/2009 (publicado no Diário da República, II série, de 16 de Abril de 2009), se debruçou sobre questão parcialmente idêntica à que se apresenta nestes autos, tendo então decidido não julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação. Esta jurisprudência foi seguida, posteriormente, pelo Acórdão n.º 150/2009, publicado no Diário da República, II série, de 18 de Maio de 2009. O objecto deste acórdão residiu no artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA) que consagrava a responsabilidade subsidiária de administradores e gerentes e outras pessoas com funções de administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados, por dívida resultante de coima fiscal aplicada à pessoa colectiva. O Tribunal, aplicando a fundamentação do Acórdão n.º 129/2009, entendeu que não havia qualquer transmissão da sanção decorrente do ilícito contra-ordenacional, e sim da “responsabilidade culposa pela frustração do crédito correspondente que se efectiva contra o gerente ou administrador que, incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efectuasse o pagamento da coima em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva.”
8. Esta jurisprudência não foi, no entanto, acolhida no Acórdão n.º 481/2010, da 2.ª secção (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 79, pp. 311 e seguintes) que julgou inconstitucional o artigo 7.º-A do RJIFNA, na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade. A mesma orientação da 2.ª secção foi posteriormente seguida, a propósito do artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, nos acórdãos n.ºs 24/2011, 26/2011, 85/2011 e 125/2011 (os dois primeiros, publicados no Diário da República, II série, de 23 de Fevereiro de 2011 e 9 de Março de 2011, e os dois últimos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
9. É este conflito jurisprudencial que o Tribunal é chamado agora a dirimir. O acórdão recorrido integrou a fundamentação do acórdão n.º 129/2009, já citado, e que se passa a transcrever:
“O que a norma, por conseguinte, prevê é uma forma de responsabilidade civil, que recai sobre administradores e gerentes, relativamente a multas ou coimas em que tenha sido condenada a sociedade ou pessoa colectiva, cujo não pagamento lhes seja imputável ou resulte de insuficiência de património da devedora que lhes seja atribuída a título de culpa.
Note-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de emitir um juízo de não inconstitucionalidade em relação a um idêntico efeito de responsabilidade subsidiária que resulta da norma do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, que igualmente prevê que os direitos e obrigações das sociedades extintas por incorporação ou por fusão se transmitam para a sociedade incorporante ou a nova sociedade.
Esse juízo assentou, no entanto, essencialmente, no entendimento de que, nesses casos, só formalmente se verifica uma transmissão, visto que não há lugar à liquidação ou dissolução das sociedades incorporadas, antes se regista o aproveitamento, no seio da sociedade incorporante, dos elementos pessoais, patrimoniais e imateriais da sociedade extinta, o que conduz à inaplicabilidade, nessa situação, da proibição da transmissibilidade das penas constante do artigo 30º, n.º 3, ainda que estejam em causa obrigações decorrentes de responsabilidade contra-ordenacional (cfr. os acórdãos n.ºs 153/04, de 16 de Março, 160/04, de 17 de Março, 161/04, de 17 de Março, 200/04, de 24 de Março, e 588/05, de 2 de Novembro).
Alguns desses arestos não deixaram, todavia, de enquadrar a questão da intransmissibilidade das penas, em termos que mantêm plena validade para o caso dos autos.
No acórdão n.º 160/04, por exemplo, considerou-se o seguinte:
‘A evolução do texto constitucional – que anteriormente previa a insusceptibilidade de transmissão de ‘penas’ [e agora prevê que ‘A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão’] – não se ficou, porém, a dever a qualquer intenção de transcender o domínio do direito penal (como, aliás, resulta claramente também da nova redacção), mas sim evitar que o princípio da intransmissibilidade se confinasse às situações em que a decisão de aplicação da lei penal transitara em julgado, sobrevindo apenas na fase da aplicação da pena.
Ora, não obstante a doutrina e a jurisprudência constitucionais irem no sentido da aplicação, no domínio contra-ordenacional, do essencial dos princípios e normas constitucionais em matéria penal, não deixa de se admitir, como se escreveu no citado acórdão n.º 50/03, a ‘diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contra-ordenações’. Diferença, esta, que cobra expressão, designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que aplica as sanções contra-ordenacionais (como se decidiu no acórdão n.º 158/92, publicado no DR, II Série, de 2 de Setembro de 1992) e na diferente natureza e regime de um e outro ordenamento sancionatório (cfr. v. g. acórdãos n.ºs 245/00 e 547/01, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 3 de Novembro de 2000 e de 9 de Novembro de 2001).
Nestes termos, a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal, não tem de implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa.
Nem sequer se pode, pois, a partir da referida norma, obter um padrão constitucional previsto a partir do qual se pudesse censurar o referido entendimento do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Não o impõe, também, o artigo 30º da Constituição, referido aos ‘Limites das penas e medidas de segurança’; não o impõe o artigo 32º, n.º 10, da Constituição, que estende apenas os direitos de audiência e defesa do arguido aos processos de contra-ordenação e a quaisquer outros processos sancionatórios; e não o impõe a lógica de tutela do arguido que justificou a jurisprudência constitucional em matérias como o princípio da legalidade, ou a aplicação da lei mais favorável (v.g., acórdãos n.ºs 227/92 e 547/01, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 12 de Setembro de 1992 e de 15 de Julho de 2001).
Mais do que verificar a desconformidade de um certo sentido da norma impugnada em relação ao parâmetro invocado, conclui-se, pois, pela inexistência do pretendido parâmetro, aplicável para o efeito pretendido.’
O referido aresto, embora centrado ainda na sobredita questão da transmissão de responsabilidade por incorporação ou fusão de sociedades, não deixa de fornecer elementos decisivos para a interpretação da norma do artigo 30º, n.º 3, da Constituição, salientando que ela não pode servir de parâmetro uniforme para a responsabilidade penal e a responsabilidade contra-ordenacional.
Procurando decifrar o sentido e alcance da norma, também Gomes Canotilho e Vital Moreira salientam que a insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal está associada ao princípio da pessoalidade, daí resultando como principais efeitos: (a) a extinção da pena (qualquer que ela seja) e do procedimento criminal com a morte do agente; (b) a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros; (c) a impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas. O que, em todo o caso, não obsta – como acrescentam os mesmos autores - à transmissibilidade de certos efeitos patrimoniais conexos das penas, como, por exemplo, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime, nos termos da lei civil (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pág. 504)).
No caso vertente, importa ter em consideração, antes de mais, que não estamos perante uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou tão pouco de transmissão de responsabilidade contra-ordenacional.
O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa colectiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
A simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contra-ordenacional.
Por outro lado, o facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma responsabilidade subsidiária, e não constitui, em si, qualquer indício de que ocorre, no caso, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de contra-ordenação (cfr. artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Acresce que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infracção contra-ordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal.
É esse facto, de carácter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
Tudo leva, por conseguinte, a considerar que não existe, na previsão da norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é liquido - que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contra-ordenações.
Concluindo-se, como se concluiu, que a norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT não pode entender-se como consagrando uma modalidade de transmissão para gerentes ou administradores da coima aplicada à pessoa colectiva, facilmente se compreende que esse dispositivo não pode também pôr em causa o princípio da presunção da inocência do arguido, a que o tribunal recorrido também fez apelo para declarar a inconstitucionalidade do preceito.
Na verdade, o artigo 32º, n.º 2, da Constituição, ao estipular no seu primeiro segmento que ‘[t]odo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação’, estabelece um princípio da constituição processual criminal que assenta essencialmente na ideia de que o processo deve assegurar ao arguido todas as garantias práticas de defesa até vir a ser julgado publicamente culpado por sentença definitiva (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 355).
Ainda que se aceite que este princípio tem também aplicação no âmbito dos processos de contra-ordenação, como refracção da garantia dos direitos de audiência e de defesa do arguido, que é tornada extensiva a essa forma de processo pelo artigo 32º, n.º 10, da Constituição, o certo é que, no caso, conforme já se esclareceu, não estamos perante uma imputação a terceiro de uma infracção contra-ordenacional relativamente à qual este não tenha tido oportunidade de se defender, mas perante uma mera responsabilidade civil subsidiária que resulta de um facto ilícito e culposo que se não confunde com o facto típico a que corresponde a aplicação da coima.”
9.1. O Tribunal entendeu então que a responsabilidade dos gerentes ou administradores consagrada no artigo 8.º, n.º 1 do RGIT é titulada pelo instituto da responsabilidade civil delitual ou aquiliana: aqueles sujeitos são chamados, a título subsidiário, na exacta medida do dano que produziram à Administração Fiscal ao terem impossibilitado, pela sua administração, a realização do pagamento das coimas devidas. A imputação não prescinde, como realçou então o Tribunal, da verificação dos pressupostos gerais, atinentes ao cometimento de um facto ilícito e culposo, bem como ao nexo de causalidade adequada entre a acção e o dano produzido. Esta configuração da responsabilidade prevista nas alíneas a) e b) do artigo 8.º, n.º 1, do RGIT torna inadequada a convocação de qualquer dos parâmetros contidos nos artigos 30.º e 32.º da Constituição. De facto, e independentemente da questão de se determinar, previamente, o âmbito de aplicação das garantias de defesa em processo criminal quando estejam em causa ilícitos contra-ordenacionais, pode-se concluir liminarmente pela inadequação das mesmas enquanto parâmetros de apreciação da questão em apreço, uma vez que a mesma se localiza num outro lugar do sistema, atinente à responsabilidade extracontratual.
9.2. Esta é também a posição de Germano Marques da Silva, que defende que “[a] responsabilidade civil pelo pagamento da multa penal nada tem a ver com os fins das penas criminais, porque a sua causa não é a prática do crime, mas a colocação culposa da sociedade numa situação de impossibilidade de cumprimento de uma obrigação tributária. É evidente que para a responsabilização do administrador é necessário que a sentença dê por verificados os pressupostos da responsabilidade e a respectiva condenação” (in Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes, Verbo, 2009 p. 443, nota) De acordo com este autor, “[t]rata-se de um caso de um caso de responsabilidade civil por facto próprio, facto culposo causador do não pagamento pelo ente colectivo da dívida que onerava o seu património, quer porque por culpa sua o património da pessoa colectiva se tornou insuficiente para o pagamento, quer porque também por culpa sua o pagamento não foi efectuado quando devia, tornando-se depois impossível.”
9.3. Se se proceder à comparação do regime da responsabilidade civil emergente do artigo 24.º da LGT (responsabilidade civil do administrador pelo não pagamento do imposto) com o regime da responsabilidade pelo não pagamento das coimas estabelecido pelo artigo 8.º do RGIT, constata-se que estas disposições legais se aproximam ao que se encontra previsto no artigo 78.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC), de acordo com o qual “os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.”
Trata-se aqui de responsabilidade delitual pelos danos causados pelo incumprimento das dívidas da sociedade perante os credores sociais em virtude de, por facto culposo do administrador ou gerente, o património social se tornar insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
Com efeito, a ratio do artigo 78.º, n.º 1 do CSC consiste em facultar aos credores uma garantia legal pessoal do pagamento dos seus créditos para com a sociedade, impondo essa obrigação de garantia aos membros dos órgãos sociais a título de sanção aquiliana pela violação, com culpa, das normas de protecção dos credores. Assim, a responsabilidade em apreço não abrange todos e quaisquer prejuízos que os credores possam sofrer, mas sim e apenas os inerentes à falta de pagamento das dívidas respectivas (Cfr. Miguel Pupo Correia, Direito Comercial. Direito da Empresa, 9.ª ed., Ediforum, 2005, p. 275).
10. Para que se possam dar por preenchidos os requisitos de onde resulta a obrigação de indemnizar, é imprescindível que sobre essa factualidade tenha incidido o indispensável contraditório. Isso mesmo decorre do direito fundamental de acesso aos tribunais. Como se escreveu no acórdão n.º 259/2000 (publicado no Diário da República, II série, de 7 de Novembro de 2000), “(…) o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder expor as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição (…).”
11. Antes de nos debruçarmos sobre a situação concreta em face das normas fundamentais atinentes ao direito de defesa e ao princípio do contraditório, torna-se necessário enquadrar o modo como é efectivada, pela Administração Fiscal, a responsabilidade civil subsidiária dos gerentes e administradores que vimos analisando. Essa efectivação ocorre por via do mecanismo da reversão o qual, encontrando-se previsto no artigo 23.º da Lei Geral Tributária (LGT), se destina, primordialmente, à responsabilidade tributária subsidiária. A reversão da execução fiscal é o mecanismo legal facultado à administração para lograr a efectivação da responsabilidade subsidiária. A execução fiscal diz respeito, no entanto, à cobrança coerciva de tributos e de coimas e outras sanções pecuniárias relativas a contra-ordenações tributárias (cfr. artigo 148.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPPT). A reversão pode ainda ser desencadeada para cobrança de outras dívidas que devam ser pagas por força de acto administrativo bem como de reembolsos ou reposições (cfr. artigo 148.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPPT).
É indiscutível que o sistema da reversão da execução não se encontra especificamente desenhado para a efectivação da responsabilidade civil subsidiária dos gerentes e administradores das sociedades, sendo o RGIT, aliás, omisso quanto a esta figura. O recurso à mesma em situações desta índole decorrerá da aplicação, ainda que implícita, das previsões da LGT, designadamente dos seus artigos 23.º e 24.º, que apresentam a seguinte redacção:
Artigo 23.º
Responsabilidade tributária subsidiária
1 - A responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de execução fiscal.
2 - A reversão contra o responsável subsidiário depende da fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão.
3 - Caso, no momento da reversão, não seja possível determinar a suficiência dos bens penhorados por não estar definido com precisão o montante a pagar pelo responsável subsidiário, o processo de execução fiscal fica suspenso desde o termo do prazo de oposição até à completa excussão do património do executado, sem prejuízo da possibilidade de adopção das medidas cautelares adequadas nos termos da lei.
4 - A reversão, mesmo nos casos de presunção legal de culpa, é precedida de audição do responsável subsidiário nos termos da presente lei e da declaração fundamentada dos seus pressupostos e extensão, a incluir na citação.
5 - O responsável subsidiário fica isento de custas e de juros de mora liquidados no processo de execução fiscal se, citado para cumprir a dívida constante do título executivo, efectuar o respectivo pagamento no prazo de oposição.
6 - O disposto no número anterior não prejudica a manutenção da obrigação do devedor principal ou do responsável solidário de pagarem os juros de mora e as custas, no caso de lhe virem a ser encontrados bens.
Artigo 24.º
Responsabilidade dos membros de corpos sociais e responsáveis técnicos
1 - Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.
2 - A responsabilidade prevista neste artigo aplica-se aos membros dos órgãos de fiscalização e revisores oficiais de contas nas pessoas colectivas em que os houver, desde que se demonstre que a violação dos deveres tributários destas resultou do incumprimento das suas funções de fiscalização.
3 - A responsabilidade prevista neste artigo aplica-se aos técnicos oficiais de contas desde que se demonstre a violação dos deveres de assunção de responsabilidade pela regularização técnica nas áreas contabilística e fiscal ou de assinatura de declarações fiscais, demonstrações financeiras e seus anexos.
O facto de a reversão não se encontrar especificamente prevista para estas situações de responsabilidade subsidiária pelo não pagamento de coimas ou multas não constitui, em si mesmo, factor de censura constitucional. Com efeito, o que releva, para efeitos da apreciação da questão de constitucionalidade, é determinar se o funcionamento, em concreto, do mecanismo legal (independentemente da sua maior ou menor adequação), é susceptível de ferir os ditames constitucionais.
Essencial para que não se verifique qualquer inconstitucionalidade é que em concreto seja acautelada a existência de um processo equitativo e o inerente direito de defesa através do exercício do contraditório.
12. A satisfação destas exigências constitucionais impõe, em primeiro lugar, o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade subsidiária, nomeadamente a culpa. Nos termos do artigo 8.º, distinguem-se duas situações de responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelas multas e coimas, com pressupostos diversos. A primeira, prevista na alínea a) do n.º 1, integra a responsabilidade pelas multas ou coimas aplicadas em virtude de factos praticados no período do exercício do cargo ou por facto anteriores, quando tiver sido por culpa daqueles que o património societário se tornou insuficiente para a respectiva satisfação. O segundo caso, previsto na alínea b) do n.º 1, abrange as multas ou coimas resultantes de factos anteriores [ao exercício do cargo], quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante aquele período e lhes seja imputável a falta de pagamento.
Existindo diferentes pressupostos nas duas hipóteses, elas apresentam-se, todavia, bastante próximas no que toca à relevância jusconstitucional da questão sub judicio. Nas duas situações o quadro legal exige a verificação da culpa dos eventuais responsáveis subsidiários na não satisfação do crédito público resultante das multas ou coimas em causa, seja por um não pagamento culposo das mesmas, no caso da alínea b), seja pelo facto de a insuficiência do património societário causadora do não pagamento a eles lhes ser imputável, como dispõe a alínea a). Na verdade, apesar de diferente, o enquadramento das alíneas a) e b) do artigo 8.º, n.º 1 é comum no que toca ao pressuposto da culpa dos eventuais responsáveis subsidiários. Mas a legislação vai mais longe ao estipular, em ambos os casos, que compete à Administração Fiscal alegar e provar a culpa daqueles cuja responsabilidade subsidiária pretende accionar.
Uma vez alegada, e intentada a prova da culpa [bem como dos restantes pressupostos constantes das alíneas a) e b)] por parte da Administração, deve então acautelar-se uma tramitação processual mínima que salvaguarde os direitos de defesa e de contraditório dos sujeitos que são agora “chamados” ao processo o qual, recorde-se, baseia-se num título de dívida “originário” que não irá sofrer, por via de tal “chamamento”, quaisquer alterações. Face ao princípio constitucional do processo equitativo, autonomizado, por via da revisão constitucional de 1997, no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, os gerentes ou administradores accionados devem ver respeitado o seu direito defesa e de contraditório. Concretizando o conteúdo destes valores constitucionais, Gomes Canotilho e Vital Moreira falam na “(...) possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor de resultado destas provas.” (in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 415).
Por outro lado, nos termos do artigo 23.º, n.º 4, da LGT, “a reversão, mesmo nos casos de presunção legal de culpa, é precedida de audição do responsável subsidiário nos termos da presente lei e da declaração fundamentada dos seus pressupostos e extensão, a incluir na citação.” O que significa que, mesmo naqueles casos em que a lei estabelece uma presunção da culpa dos revertidos, o processo impõe, por um lado, a audição dos mesmos e, por outro, a alegação (e prova, quando disso for caso) dos respectivos pressupostos e extensão.
13. Do despacho de reversão constante de fls. 80 dos autos, resulta que os responsáveis subsidiários foram notificados para o exercício do seu direito de audição, nos termos do artigo 23.º, n.º 4 da LGT, em obediência ao princípio da participação expresso, no âmbito específico daquele diploma, no artigo 60.º. No exercício do seu direito de audição, o Recorrido A. veio alegar que, não obstante ter sido gerente de direito da empresa originariamente executada, nunca havia exercido a gerência de facto, juntando então os elementos que entendeu pertinentes para a prova desse não exercício da gerência. Na sequência do exercício do direito de audição, foi então proferido pela Administração Fiscal o despacho de reversão, do qual foi deduzida, por aquele, oposição constante de fls. 2 e seguintes. De modo a afastar a responsabilidade subsidiária que sobre si impendia, o Recorrido alegou o não exercício de facto da gerência da executada, invocando, por um lado, que foi apenas gerente “no papel”, e, por outro, que renunciou à gerência em 15 de Novembro de 2000, juntando prova documental e testemunhal relevante. A produção de prova testemunhal foi ordenada posteriormente, tendo até ocorrido substituição de testemunhas inicialmente indicadas na oposição. A convicção do julgador, como consta da sentença do TAF de Coimbra, assentou nos documentos juntos aos autos nomeadamente pelo oponente, bem como na prova testemunhal produzida [transcrevendo parte da decisão, “(…) pessoas que trabalharam na executada juntamente com o oponente de sol a sol, e ainda o actual patrão do oponente (…)].”
A decisão daquela instância, a final, veio a reflectir, em parte, o que havia sido invocado pelo oponente, considerando que não se podia ter por provado o exercício efectivo da gerência. Como referiu o TAF, “a prova produzida no processo, sem outra por parte da Fazenda que possa abalar ou contrariar a que foi feita, não permite ao Tribunal concluir, claramente, que o oponente agiu em nome e em representação da sociedade no desenvolvimento da sua actividade” (cfr. fls. 159). Resulta, portanto, claro, que o tribunal interpretou o artigo 8.º do RGIT no sentido de competir à Administração a prova dos requisitos da responsabilização subsidiária, designadamente a prova do exercício efectivo da gerência.
É fácil concluir, perante a evolução processual dos autos, que não só foi garantido ao oponente o pleno exercício do seu direito de audição e de defesa, como o mesmo produziu reflexo útil no sentido da decisão, tendo sido considerada procedente a sua defesa no que se refere ao afastamento de um dos pressupostos da responsabilização subsidiária por coimas consubstanciado no exercício efectivo da gerência. Assim, e retomando novamente a expressão já citada de Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao Recorrido foi assegurada a possibilidade de invocar as suas razões de facto e de direito, e de oferecer provas, resultando, do exercício destes seus direitos processuais, a possibilidade comprovada de influir no sentido da decisão final. Os direitos de defesa e de contraditório não sofreram, portanto, qualquer compressão inadmissível resultante da reversão da execução originária por insuficiência patrimonial da empresa, resultando assim afastados os argumentos assentes na inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1 do RGIT por violação daqueles parâmetros fundamentais.
III – Decisão14. Face ao exposto, o Plenário do Tribunal Constitucional decide:
a) negar provimento ao recurso;
b) manter a decisão recorrida no sentido de não julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Outubro de 2011.- José Borges Soeiro – Vítor Gomes – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – Carlos Pamplona de Oliveira – com declaração – Ana Maria Guerra Martins – Carlos Fernandes Cadilha (vencido, por considerar que a efectivação da responsabilidade subsidiária do gerente por via do mecanismo da reversão no processo de execução fiscal viola o princípio do processo equitativo, atendendo a que se trata de uma responsabilidade civil por facto próprio, relativamente à qual o processo de execução fiscal não oferece as necessárias garantias de defesa e contraditório, corroborando, nesse ponto, a declaração de voto do Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos no Acórdão n.º 35/2011) – João Cura Mariano (vencido, pelas razões constantes da declaração que anexo). – Maria João Antunes (vencida, pelas razões constantes da declaração que junto). – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, de acordo com a declaração que anexo) – J. Cunha Barbosa (vencido nos termos da declaração de voto que anexa) – Catarina Sarmento e Castro (vencida, nos termos da declaração de voto que junto) – Rui Manuel Moura Ramos. Vencido. Pronunciei-me pela inconstitucionalidade da dimensão normativa em apreciação pelas razões constantes das declarações de voto anexas aos acórdãos n.º 24/11 e 26/11, da 2.ª Secção.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Entendo dever retirar as objecções que formulara quando o caso foi discutido na 1ª Secção; a relativa ao conhecimento do objecto do recurso, em virtude de a questão ter ficado definitivamente ultrapassada com a decisão de conhecer do objecto; a relativa à conformidade constitucional da norma, em virtude de a presente análise se alicerçar no critério normativo extraído directamente do preceito legal em que se contém. Assim, uma vez que o objecto do recurso consiste, conforme afirma o acórdão, no 'artigo 8.º, n.º 1 do RGIT', entendo que a norma que resulta das alíneas a) e b) desse n.º 1 não ofende a Constituição por ser um meio adequado à prevenção das situações que resultem em infracções tributárias.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
No presente recurso não está em causa a inconstitucionalidade do conteúdo do artigo 8.º, do RGIT, mas sim de uma determinada leitura desse conteúdo efectuada pelo tribunal recorrido.
Na interpretação normativa efectuada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra a responsabilidade dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração, pelo pagamento de coimas da pessoa colectiva que administram, é encarada como uma transmissão do dever de pagar a coima da pessoa colectiva para aquelas pessoas.
Encontrando-se o Tribunal Constitucional no exercício de uma fiscalização concreta de constitucionalidade, está sujeito à interpretação efectuada pelo tribunal recorrido, não sendo este um caso em que possa impor uma interpretação diferente, utilizando o mecanismo previsto do artigo 80.º, n.º 3, da LTC, uma vez que não estamos perante uma interpretação manifestamente inviável.
Por isso, não é possível, como faz o presente acórdão, partir do pressuposto que o artigo 8.º, do RGIT, consagra apenas uma responsabilidade civil aquiliana pelo não cumprimento da obrigação de pagar a coima, pois não foi essa a interpretação que a decisão recorrida fez do referido preceito legal.
Ora, estando nós perante uma interpretação normativa que vê no artigo 8.º, do RGIT, um caso de transmissão da responsabilidade pelo pagamento de uma coima, aplicam-se as considerações que foram efectuadas no acórdão n.º 481/2010 e que julgaram tal transmissão de responsabilidade inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
Por estas razões votei pelo provimento do recurso, devendo alterar-se o Acórdão recorrido no sentido de julgar inconstitucional o artigo 8.º do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas, que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora. – João Cura Mariano.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti do decidido, por entender que a norma em apreciação é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade que se extrai do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Acompanho o entendimento de que a proibição constitucional de transmissão da responsabilidade penal (artigo 30.º, n.º 3, da Constituição) não se estende à responsabilidade contraordenacional (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 129/2009, 150/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), mas considero que a norma que é objecto do presente recurso não prevê uma forma de responsabilidade civil, acompanhando, neste ponto, o Acórdão n.º 481/2010 (disponível no mesmo sítio).
A norma que é objecto do presente recurso sujeita os gerentes ou administradores a uma coima fixa, obstando a que a determinação da medida da sanção seja feita em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa e da situação económica do agente, o que significa que permite a sujeição a uma coima desproporcionada. – Maria João Antunes.
DECLARAÇÃO DE VOTO
As razões que me levam a não subscrever o presente acórdão prendem-se essencialmente com o que consta das fundamentações dos acórdãos n.ºs 481/2010 e 26/2011, de que fui relator, e para as quais me permito remeter.
Acrescentarei apenas, quanto à qualificação do regime impugnado como sendo de responsabilidade civil, que a verificação de uma “situação de responsabilidade”, de entre as categorias taxativamente identificadas como tal pelo direito civil, é também muitíssimo problemática. Não estando em causa um abuso do direito nem a violação de um direito absoluto, a ilicitude extracontratual só poderia dar-se por violação de “uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil). Não basta que alguém tenha cometido um facto culposo causador de prejuízos a outrem para que este possa imediatamente reivindicar daquele o pagamento de uma indemnização. Para que proceda a imputação ao autor do facto de responsabilidade civil, de que beneficia o titular do interesse afectado, é mister que este esteja juridicamente protegido, ou por um direito absoluto, ou por uma norma legal que tenha como escopo justamente a protecção desse interesse. A responsabilidade civil traduz-se numa relação obrigacional entre duas esferas jurídicas, e só assim se identifica o sujeito credor da indemnização.
Por isso mesmo é que o artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais apenas responsabiliza os gerentes, administradores ou directores para com os credores da sociedade “pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção destes”. Se não for esse o caso, os credores ficam sem a faculdade de accionar directamente aqueles sujeitos. E a restrição tem a virtualidade de integrar coerentemente a norma no sistema de responsabilidade civil extracontratual.
É a conexão entre o facto culposo e um interesse protegido (perante o autor desse facto) do credor da indemnização que também falta aqui, para que a solução fosse compatível com o instituto da responsabilidade civil extracontratual. E, como (bem) se diz no Acórdão, não pode haver responsabilidade civil se não estiverem verificados os seus pressupostos gerais.
A solução é uma manifestação clara da “fuga para o direito privado”, fenómeno hoje recorrente e que, em si mesmo, não merece oposição. Mas os institutos e regimes privatísticos não são livremente moldáveis para mais fácil e expedita satisfação dos interesses públicos que, em cada caso, inspiram a solução. Há que respeitar limites, desde logo os limites constitucionais.
E os resguardos que o direito civil adopta, quanto à definição das situações de ilicitude extracontratual, não correspondem a detalhes técnico-jurídicos facilmente descartáveis. Há que ver que a responsabilidade civil é sempre um travão à liberdade de acção, valor que sobremodo o direito civil preza e que constitui também um relevante valor constitucional.
Longe de mim contestar que quem assume poderes de direcção de estruturas organizativas, erigidas em pessoas colectivas, cuja actividade transcende a esfera pessoal para produzir efeitos na “esfera pública” (no sentido que Habermas dá ao conceito) assume simultaneamente deveres funcionais, por cujo cumprimento deve responder perante a comunidade e o Estado. Mas a responsabilidade por papéis sociais é o terreno próprio da responsabilidade contra-ordenacional, não da responsabilidade civil.
A qualificação, que consta da epígrafe do preceito, de “responsabilidade civil” é apenas, recorrendo ao nosso Eça, o “manto diáfano” que mal esconde a “nudez forte” da responsabilidade contra-ordenacional, sujeita aos princípios que a regem, designadamente o da proporcionalidade. E é por violação desses princípios, como mais desenvolvidamente defendo nos acórdãos acima citados, que nasce a inconstitucionalidade de que a norma padece.
Tendo encontrado esse vício primário na norma sob apreciação, globalmente considerada, fico dispensado de avaliar separadamente a sua vertente de direito adjectivo, atinente à utilização, nesta matéria, do mecanismo da reversão.
Direi apenas que tenho por desajustadas ao controlo de constitucionalidade normativa, que é o nosso, as considerações, constantes da parte final da fundamentação, quanto ao modo como se processou, em concreto, a lide que estes autos documentam. – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da decisão resultante do acórdão e seus fundamentos pelas razões constantes dos acórdãos n.º 24/2011, 26/2011 e 481/2010, este último para cuja fundamentação os dois primeiros, em essência, remetem.
Mais acompanho as razões expendidas pelo Exm.º Juiz Conselheiro Joaquim Sousa Ribeiro na sua declaração de voto, ora, junta.
Por tudo, concluiria pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, quanto à parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas às pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal, efectivada através do mecanismo da reversão da execução fiscal.
J. Cunha Barbosa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da posição maioritária, não subscrevendo o presente acórdão, por considerar que, no caso, se justificariam plenamente as considerações que foram efectuadas no Acórdão n.º 24/2010, no Acórdão n.º 26/2011 e no Acórdão n.º 85/2011, que julgaram a transmissão de responsabilidade pelo pagamento da coima inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade. Reforço, ainda, que entendo que está em apreciação, nesta situação, uma especial interpretação normativa do artigo 8.º do RGIT (quando interpretada no sentido que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão de execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora), distinta da apreciada no Acórdão n.º 129/2009.
Catarina Sarmento e Castro