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Processo n.º 16/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O Conselho Superior da Magistratura, na Sessão Plenária de 19 de Janeiro de 2010, deliberou instaurar um processo disciplinar e suspender preventivamente de funções, nos termos do artigo 116.º, da Lei 21/85, de 30 de Julho, que aprovou o Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), a Juíza A., então a exercer funções na Vara Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal.
Esta juíza interpôs recurso da decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido em 16 de Dezembro de 2010, considerou inútil a prossecução da lide, declarando extinta a instância.
Inconformada com esta decisão, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos:
“As normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada são as dos artºs 116º e 158º, nº 3 da EMJ, 135º do Cod. Proc. Administrativo, e também os dos artºs 287º al. e) do CPC e 1º do CPTA.
E os preceitos e princípios constitucionais que se entende terem sido violados pelas referidas normas, se e quando interpretadas e aplicada na vertente normativa em que o foram no Acórdão recorrido, são os dos artºs 6º da CEDH (recebido na ordem jurídica interna cx vi do artº 8º da CRP) e bem como 268º, nº 4 e 212º, nº 3, 2º, 20º nºs 1 e 5 e 32º, nºs 1, 2 e 10 bem como 268º, nº 4 e 212º, nº 3 todos da CRP.”
Convidada a completar o requerimento de interposição de recurso de forma a indicar qual o conteúdo das interpretações normativas sustentadas pela decisão recorrida, cuja constitucionalidade pretendia ver fiscalizada, a Recorrente apresentou novo requerimento, com o seguinte teor, além do mais:
“…A decisão recorrida fez uma interpretação e aplicação do artº 116º do EMJ com uma vertente normativa no sentido de possibilitar que um Juiz de Direito (para mais sem processo disciplinar e sem proposta do respectivo instrutor, mesmo depois de aquele ter sido instaurado e este ter sido notificado) possa ser imediatamente suspenso do serviço sob a mera invocação de uma mera fórmula abstracta e tabelar de juízos valorativos e conclusivos, e sem a indicação de um único facto concreto mas a partir de uma mera “informação e de uma “proposta” apresentadas por quem não tem poderes de instrutor, e não sujeitas a qualquer espécie de contraditório ou de controle de legalidade (tendo-se mesmo revelado de todo incorrectas) e que tal acto administrativo não padeceria de qualquer vício, interpretando e aplicando também o artº 135º do CPAd. de modo que inutiliza por completo a sindicabilidade contenciosa e a tutela jurisdicional efectiva contra os actos lesivos, previstas no artº 268º, nº 4 da CRP,
Tal vertente normativa viola o conteúdo essencial dos direitos fundamentais às máximas garantias de defesa nos processos de natureza sancionatória, ao acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, a um processo justo equitativo e à presunção de inocência, consagrados nos já citados artºs 6º, nº 1 e 2 do CEDH e 2º, 20º, nº 1, 5 e 32º, nº 1, 2 e 10 da CRP.
Por outro lado, a decisão recorrida aplicou também o artº 168º, nº 1 e 2 do EMJ na vertente normativa de que esta procede à atribuição de competência para conhecer da impugnação contenciosa dos actos administrativos praticados pelo CSM, como o são as decisões em matéria disciplinar do Conselho Superior da Magistratura, não aos Tribunais Administrativos e Fiscais como determina o artº 212º, nº 3 da CRP mas ao Supremo Tribunal de Justiça e, mais especificamente ainda, a uma Secção “ad hoc” deste – constituída pelo mais antigo dos seus Vice-Presidentes, que tem voto de qualidade, e por um Juiz de cada uma Secção, anual e sucessivamente designado pelo Presidente do STJ, que é simultaneamente o Presidente do Conselho Superior da Magistratura (artº 137º, nº 1 do EMJ) ! – e assim tal norma é, no entender do recorrente, desde logo materialmente inconstitucional por violação do supracitado artº 212º, nº 3 da CRP.
É que as relações que se estabelecem entre os magistrados judiciais e o órgão competente para sobre eles exercer a acção disciplinar [ou seja o CSM, “ex vi” do artº 149º, al. a) do EMJ] são, inequivocamente, relações administrativas e os actos em tal sede claramente verdadeiros e próprios actos administrativos, sendo que o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto a impugnação de tais actos está constitucionalmente atribuído, pelo já diversas vezes citado artº 212º, nº 3 da CRP, aos Tribunais Administrativos e, logo excluído dos Tribunais Judiciais, cuja jurisdição só abrange as áreas atribuídas a outras ordens judiciais (artº 211º, nº 1 da mesma CRP).
E, por outro lado, o mesmo artº 168º, nº 2 do EMJ, ao atribuir a competência para julgar os actos do CSM que é presidido pelo Presidente do STJ a uma Secção do mesmo STJ, presidida pelo mais antigo dos Vice-Presidentes deste e constituída por ele e por Juízes das Secções designados pelo mesmíssimo Presidente, violenta por completo o artº 6º do CEDH (inteiramente vigente na Ordem Jurídica interna portuguesa por força do artº 8º, nº 2 da CRP) na vertente do direito de todos os cidadãos, incluindo os Juízes, a um processo justo e equitativo, até por a entidade “ad quem” não ser verdadeiramente, e muito menos aparecer como tal aos olhos da comunidade, como distinta e, sobretudo, como distanciada da Entidade a quo, como o imporia a salvaguarda da exigência do julgamento desses processos por um Tribunal independente e imparcial.
E afigura-se meridianamente evidente que Justiça não aparece à comunidade como sendo feita com a atribuição à Secção “ad hoc” do STJ da competência para julgar os recursos das decisões, em matéria disciplinar, do CSM, no âmbito das relações administrativas que em tal campo, se estabelecem entre aquele órgão (CSM) e os magistrados judiciais.
Por outro lado, a recorrente mantinha, e mantém, pleno e legítimo interesse em obter uma decisão que, desde logo, declarasse a falta de fundamento legal do acto aqui impugnado, não apenas para definição da sua situação jurídica futura [Juíza no pleno exercício das suas funções ou Juíza com a “capitis diminutio” de meramente adstrita exclusiva e parcelarmente (apenas) à Jurisdição cível], mas que também esclarecesse e definisse, com poder de autoridade, se o acto impugnado tinha ou não fundamento legal e, consequentemente, qual a sua situação jurídica face ao mesmo.
Havendo o acto recorrido atingido os direitos e interesses legítimos da recorrente nos termos e com os fundamentos alegados no próprio requerimento de recurso – e os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos – o recurso jurisdicional efectivo contra actos lesivos como o aqui impugnado é um direito fundamental consagrado nos artºs 268º, nº 4 e 20º, nº 1 da CRP, beneficiando, à luz do artº 17º da vinculação e força jurídica afirmada no artº 18º da mesma Lei Fundamental,
Assim, a norma da al. e) do artº 287º do CPC – interpretada e aplicada pela decisão recorrida, sob a invocação da remissão do artº 1º do CPTA, na exacta vertente normativa que conduz a esse resultado (considerando verificada uma pretensa inutilidade ou impossibilidade superveniente da presente lide, por os efeitos da decretada suspensão preventiva objecto do recurso terem alegadamente sido – e não o foram, muito menos de modo completo – entretanto extintos pela supra-referenciada deliberação da entidade a quo), padece de óbvia inconstitucionalidade material (por violação dos já citados artºs 268º, nº 4 e 20º, nº 1, ambos da CRP),
Ficam assim suficientemente explicitadas as interpretações dos preceitos oportunamente indicados pela recorrente, que foram sustentadas na decisão recorrida e que representam, como se viu, a interpretação e aplicação de normas que, nessa vertente normativa, se revelam violadoras dos preceitos e princípios constitucionais igualmente já supra – indicados.”
Apresentou posteriormente alegações com as seguintes conclusões:
“1ª As normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, os preceitos e princípios constitucionais que elas – na vertente normativa em que foram aplicadas pelo Acórdão recorrido – violaram e as peças processuais onde tal inconstitucionalidade foi arguida foram clara e suficientemente indicados no requerimento de interposição do presente recurso.
2ª O qual respeitou integralmente os requisitos formais e substanciais do artº 75º-A da LTC.
3ª E foram de novo e mais amplamente explicitados na peça de resposta ao despacho liminar do Sr. Juiz Conselheiro Relator. Por seu turno,
4ª A advertência feita no despacho de fixação de prazo para alegações acerca da possibilidade de não conhecimento do mesmo recurso não tem bastante fundamento legal e antes corporiza uma versão hiper-formalista do processo (que a Lei e o Direito não admitem) e um verdadeiro pretexto para o não conhecimento do mérito das questões.
5ª O actual regime de custas do Tribunal Constitucional – nos termos do qual é possível a este fixar custas muito superiores às que resultariam do regime geral e de valor extremamente elevado, e, além disso, tais custas constituem receita corrente do próprio TC, torna esta entidade objectivamente interessada num dado desfecho (desfavorável aos recorrentes) dos recursos em apreciação e contraria o direito de todo o cidadão, consagrado no artº 6º do CEDH, ao julgamento da sua causa num processo justo e equitativo perante uma entidade isenta e imparcial.
6ª Além de possibilitar que os Tribunais “a quo” possam eximir-se à fiscalização da constitucionalidade das normas usando do subterfúgio de não invocar expressamente em seu abono a aplicação de qualquer norma (embora esta, evidentemente, ocorra).
7ª A tese consagrada no Acórdão recorrido é a de que o CSM pode livremente suspender juízes do exercício das suas funções, sem que estes contra tal deliberação, e por mais injusta, infundada e ilícita que ela seja, jamais disponham da tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, reconhecida porém a todos os seus concidadãos pelo artº 268º, nº 4 da CRP,
8ª Pois que o recurso interposto dessa mesma decisão de suspensão nunca tem efeito suspensivo e, desde que o CSM entretanto ponha termo à dita suspensão, o mesmo recurso nunca chega afinal a ser conhecido e decidido, porque é entretanto declarado pretendidamente inútil!
9ª Assim, contra deliberações do CSM que suspendam das suas funções um determinado juiz, este, por mais infundadas e erróneas que sejam as respectivas motivações, não dispõe afinal de qualquer tutela jurisdicional efectiva, e muito menos eficaz.
10ª Ou seja, primeiro priva-se o cidadão recorrente de obter a imediata suspensão dos efeitos danosos e depois pretende-se impedir a declaração da ilicitude do acto danoso (um dos pressupostos da constituição da obrigação de indemnização), sob o argumento de que o respectivo recurso se tornou supervenientemente inútil, e que se o dito cidadão quiser, que vá intentar outro(s) procedimentos)!-
11ª Por outro lado, a interpretação e aplicação do artº 116º, nº 1 do EMJ, na vertente normativa consagrada na decisão recorrida, significa que, afinal, o magistrado pode ser suspenso preventivo ainda antes de ser arguido, com base em “informações” e “diligências” feitas à margem da lei e de qualquer processo legalmente regulado, e com invocados indícios de tal modo inexistentes que não apenas o instrutor vem a propor, no decurso da instrução, e o CSM vem a aprovar o termo da suspensão preventiva como, posteriormente, deliberar mesmo o arquivamento do processo disciplinar por... total ausência de indícios da mesma infracção disciplinar!
12ª E tudo isto sob a invocação formal, abstracta, valorativa e conclusiva de que a continuação na efectividade de serviço seria prejudicial ao prestigio e dignidade da função!-
13ª O acórdão recorrido fez mesmo uma interpretação e aplicação do artº 116º do EMJ com uma vertente normativa no sentido de possibilitar que um Juiz de Direito (para mais sem processo disciplinar e sem proposta do respectivo instrutor), possa ser imediatamente suspenso do serviço sob a mera invocação de uma mera fórmula abstracta e tabelar de juízos valorativos e conclusivos, e sem a indicação de um único facto concreto mas a partir de uma mera “informação” e de uma “proposta” apresentadas por quem não tem poderes de instrutor, e não sujeitas a qualquer espécie de contraditório ou de controle de legalidade (tendo-se revelado de todo incorrectas).
14ª O Acórdão recorrido consagra também a vertente normativa de que tal acto administrativo não padeceria de qualquer vício, interpretando e aplicando assim o artº 135º do CPAd. de um modo que inutiliza por completo a sindicabilidade contenciosa e a tutela jurisdicional efectiva contra os actos lesivos, previstas no artº 268º, nº 4 da CRP!
15ª Tal vertente – que tem obvio cariz normativo – viola, e de forma grosseira, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais às máximas garantias de defesa nos processos de natureza sancionatória, ao acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, a um processo justo equitativo e à presunção de inocência, consagrados nos já citados artºs 6º, nº 1 e 2 do CEDH e 2º, 20º, nº 1, 5 e 32º, nº 1, 2 e 10 da CRP.
16ª Por outro lado, o Acórdão do STJ impugnado aplicou também o artº 168º, nº 1 e 2 do EMJ na exacta vertente normativa de que esta procede correcta e constitucionalmente à atribuição de competência para conhecer da impugnação contenciosa dos actos administrativos praticados pelo CSM, não aos Tribunais Administrativos e Fiscais, tal como determina o artº 212º, nº 3 da CRP, mas ao próprio Supremo Tribunal de Justiça e, mais especificamente ainda, a uma Secção “ad hoc” deste, pelo que tal norma é, desde logo, materialmente inconstitucional por violação do supracitado artº 212º, nº 3 da CRP. Com efeito,
17ª O julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto a impugnação de tais actos está constitucionalmente atribuído, de forma inequívoca e sem excepções para o caso dos autos, pelo já diversas vezes citado artº 212º, nº 3 da CRP, aos Tribunais Administrativos e, logo, excluído dos Tribunais Judiciais, cuja jurisdição só abrange as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artº 211º, nº 1 da mesma CRP), não podendo, pois, essa outra atribuição de jurisdição (à secção do STJ) ser operada por via da lei ordinária e, muito menos, de forma que esvazia e inutiliza por completo o referido principio constitucional.
18ª Por outro lado, o mesmo já referenciado artº 168º, nº 2 do EMJ, ao atribuir a competência para julgar os actos do CSM que é presidido pelo Presidente do STJ, a uma Secção do mesmo STJ, presidida pelo mais antigo dos Vice-Presidentes deste e constituída por ele e por Juízes das Secções designados pelo mesmíssimo Presidente, também violenta por completo o artº 6º do CEDH (inteiramente vigente na Ordem Jurídica interna portuguesa por força do artº 8º, nº 2 da CRP) na vertente do direito de todos os cidadãos, incluindo os Juízes, a um processo justo e equitativo e por uma entidade isenta e imparcial.
19ª Até por a entidade “ad quem” não ser verdadeiramente, e muito menos aparecer como tal aos olhos da comunidade, em absoluto distinta e, sobretudo, suficientemente distanciada da Entidade a quo, como o imporia a salvaguarda da referida exigência do julgamento desses processos por um Tribunal independente e imparcial.
20ª À luz dos indicados princípios consagrados, também, no artº 6º do CEDH, é manifesto que esse sistema de recurso significa deixar o cidadão – Juiz visado pelo(s) acto(s) administrativo(s) em questão totalmente indefeso e sujeito à lógica – absolutamente inadmissível num Estado de Direito – do “facto consumado” e da irreversibilidade de efeitos decorrentes de actos decisórios ilícitos.
21ª Por outro lado, e até por isso mesmo, é também óbvio que a recorrente mantinha, e mantém, pleno e legítimo interesse em obter uma decisão que, desde logo, declarasse a falta de fundamento legal do acto aqui impugnado, não apenas para definição da sua situação jurídica futura [Juíza no pleno exercício das suas funções ou Juíza com a “capitis diminutio” de meramente adstrita exclusiva e parcelarmente (apenas) à Jurisdição cível], mas que também esclarecesse e definisse, com poder de autoridade, se o acto impugnado tinha ou não fundamento legal.
22ª Havendo o acto recorrido atingido os direitos e interesses legítimos da recorrente nos termos e com os fundamentos alegados no próprio requerimento de interposição, o recurso jurisdicional efectivo contra actos lesivos como os aqui em causa é um direito fundamental consagrado nos artºs 268º, nº 4 e 20º, nº 1 da CRP, beneficiando, à luz do artº 17º, da vinculação e força jurídica afirmadas no artº 18º da mesma Lei Fundamental,
23ª Por isso, a norma da al. e) do artº 287º do CPC, interpretada e aplicada como o foi pela decisão recorrida, sob a invocação da remissão do artº 1º do CPTA, ou seja, na exacta vertente normativa que conduz a esse resultado (considerando verificada uma pretensa inutilidade ou impossibilidade superveniente da presente lide) padece de óbvia inconstitucionalidade material (por violação dos já citados artºs 268º, nº 4 e 20º, nº 1, ambos da CRP)!
24ª As questões de inconstitucionalidade suscitadas no presente recurso resultam da vertente normativa com que, ineludivelmente, a denominada “secção de contencioso” do STJ interpretou e aplicou ao caso dos autos as disposições legais supra – referenciadas, sendo indiferente que o Tribunal a quo, propositadamente ou não, haja ou não invocado expressamente as mesmas disposições, se é inequívoco que as aplicou.
25ª Pretender que a decisão recorrida, nos termos e nos pontos em que o foi para este Tribunal Constitucional, não teria cariz ou carácter normativo e assim se justificaria não chegar a conhecer do objecto do presente recurso não passa afinal da invocação de uma formulação “tabelar”, mas não tem correspondência com a realidade.
26ª Quer o artº 116º do EMJ, quer o artº 135º do CPA, quer a al. e) do artº 287º do CPC (aqui aplicável em conjugação com o artº 1º do CPTA) são absolutamente contrários aos preceitos e princípios constitucionais atrás examinados – se forem – como efectivamente foram no Acórdão do STJ, de que ora se recorre – interpretados e aplicados na vertente normativa em que este o fez.
27ª E todas estas questões de inconstitucionalidade foram correcta, atempada e suficientemente arguidas pela recorrente no decurso do processo.
Termos em que, deve o presente recurso ser conhecido e julgado procedente e, consequentemente, devem as disposições legais dos artºs 116º do EMJ, 135º do CPA, 287º, al. e) do CPC, com a remissão do artº 1º do CPTA ser declarados inconstitucionais na exacta vertente normativa em que foram interpretadas e aplicadas pelo Acórdão recorrido, revogando-se este, pois só assim se fará inteira JUSTIÇA!”
O Conselho Superior de Magistratura apresentou contra-alegações em que concluiu que o recurso interposto deveria ser julgado totalmente improcedente, sem prejuízo de não dever ser conhecido no que concerne às questões de inconstitucionalidade das invocadas interpretações dos artigos 11.º do EMJ, 135.º do CPA, 287.º, alínea e), do CPC, e 1.º do CPTA.
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
O objecto do recurso de constitucionalidade é definido, em primeiro lugar, pela indicação efectuada pelo recorrente, no respectivo requerimento de interposição, das normas cuja constitucionalidade pretende que o Tribunal fiscalize.
No primeiro requerimento apresentado a Recorrente limitou-se a referir que pretendia ver apreciada a constitucionalidade das normas contidas em vários preceitos legais que indicou. Mas como também referiu que essa apreciação devia recair nas normas se e quando interpretadas e aplicadas na vertente normativa em que o foram no Acórdão recorrido, determinou-se a notificação da Recorrente para completar aquele requerimento, de modo a explicitar as interpretações normativas sustentadas pelo Acórdão recorrido que constituíam o objecto do seu recurso.
Na verdade, o artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC, exige que no requerimento de interposição de recurso se indique a norma cuja inconstitucionalidade se impugna. Ora, quando se trata duma interpretação normativa adoptada pela decisão recorrida, a mesma tem de ser suficientemente explicitada, de modo a poder ser perfeitamente identificada, possibilitando a verificação dos requisitos de admissão do recurso e delimitando com rigor o seu objecto.
A Recorrente apresentou um segundo requerimento em que, apesar de manifestar a sua discordância relativamente à necessidade de corrigir o conteúdo do primeiro requerimento, procurou corresponder ao convite efectuado, enunciando do seguinte modo as “interpretações normativas”, alegadamente adoptadas pela decisão recorrida, cuja constitucionalidade pretendia ver apreciadas:
- do artigo 116º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), interpretado no sentido de possibilitar que um Juiz de Direito (para mais sem processo disciplinar e sem proposta do respectivo instrutor, mesmo depois de aquele ter sido instaurado e este ter sido notificado) possa ser imediatamente suspenso do serviço sob a mera invocação de uma mera fórmula abstracta e tabelar de juízos valorativos e conclusivos, e sem a indicação de um único facto concreto mas a partir de uma mera “informação e de uma “proposta” apresentadas por quem não tem poderes de instrutor, e não sujeitas a qualquer espécie de contraditório ou de controle de legalidade (tendo-se mesmo revelado de todo incorrectas) e que tal acto administrativo não padeceria de qualquer vício;
- do artigo 135.º, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), interpretado de modo que inutiliza por completo a sindicabilidade contenciosa e a tutela jurisdicional efectiva contra os actos lesivos, previstas no artº 268º, nº 4 da CRP;
- do artigo 168º, nº 1 e 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na vertente normativa em que atribui a competência para julgar os actos em matéria disciplinar do CSM, que é presidido pelo Presidente do STJ, a uma Secção do mesmo STJ, presidida pelo mais antigo dos Vice-Presidentes deste e constituída por ele e por Juízes das Secções designados pelo mesmíssimo Presidente;
- da alínea e), do artigo 287.º, do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 1.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na exacta vertente normativa que conduz a esse resultado (considerando verificada uma pretensa inutilidade ou impossibilidade superveniente da presente lide, por os efeitos da decretada suspensão preventiva objecto do recurso terem alegadamente sido – e não o foram, muito menos de modo completo – entretanto extintos pela supra-referenciada deliberação da entidade a quo).
Quanto à primeira questão, a invocada interpretação aí enunciada depende da verificação de um conjunto muito específico de circunstâncias que a tornam incidível do caso concreto. Não se descortina aqui a enunciação de uma qualquer regra abstracta susceptível de uma aplicação potencialmente genérica. Muito pelo contrário, a “interpretação” indicada confunde-se com a perspectiva da Recorrente do caso concreto (é essa perspectiva do caso concreto que reúne todos os elementos, muitos deles de carácter fáctico, que formam o todo que a Recorrente reputa inconstitucional).
É verdade que pode admitir-se a hipótese de encontrar outro caso idêntico ao descrito pela Recorrente, mas essa hipótese não retira o cariz casuístico à interpretação enunciada. Esta só se mostraria apta a abarcar outro caso por este ser idêntico no planos dos factos e não por a interpretação, em si, ter um carácter de generalidade e abstracção que a vocacionasse a reger situações diversas.
Sendo patente a estruturação da referida questão em torno das particularidades do caso, reproduzindo uma série de elementos especificamente caracterizadores de uma dada situação, mais do que identificando um critério normativo, não se vê que dela se destaque, com um mínimo de “distanciamento” uma dimensão normativa, como seria indispensável para a pretensa interpretação não se fundir com o acto de aplicação.
E, ainda que, por hipótese de raciocínio, se considerasse que o objecto desta questão tinha um cunho normativo que possibilitasse ao Tribunal Constitucional a apreciação da sua constitucionalidade, da leitura da decisão recorrida constata-se que vários dos dados que ela integra não foram assumidos pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido, nomeadamente que o acto de suspensão impugnado tivesse como fundamentação uma mera invocação de uma mera fórmula abstracta e tabelar de juízos valorativos e conclusivos, e sem a indicação de um único facto concreto mas a partir de uma mera “informação e de uma “proposta” apresentadas por quem não tem poderes de instrutor, e não sujeitas a qualquer espécie de contraditório ou de controle de legalidade (tendo-se mesmo revelado de todo incorrectas).
Na verdade, consta da decisão recorrida o seguinte:
A falta de indicação de factos concretos fundamento da suspensão, seria para a recorrente geradora de anulabilidade. Mas porque sempre poderia contender com o exercício dos direitos de defesa, dir-se-á que tal fundamentação está suficientemente assegurada, pela remissão para o relatório da Exmª Inspectora que propôs a suspensão. Relatório apreciado pelo C S M, que sempre seria acessível à recorrente, e que o C S M juntou a estes autos. Não se violou, portanto, o art. 125º do C P A.
A decisão de suspender a recorrente foi concomitante com a de instaurar procedimento disciplinar. A partir do momento em que a recorrente teve conhecimento da identidade do Exmº Inspector nomeado para o processo disciplinar, passou a ter a possibilidade de desencadear os procedimentos que entendesse em matéria de impedimentos e suspeições.
A decisão de suspensão, foi tomada a partir de uma proposta fundada de uma Exmª Inspectora e não de um instrutor, mas foi acolhida pelo mesmo órgão decisor, o C S M.
A decisão de suspensão foi imposta, face à alegada necessidade de intervenção, em simultâneo com a decisão de instauração do processo disciplinar. Não foi tomada depois de o processo disciplinar já estar pendente. A recorrente foi notificada de ambas as decisões ao mesmo tempo.
Ora, os procedimentos adoptados são por si insusceptíveis de comprometer o núcleo duro do direito de defesa, e, se algum desvio ocorreu, em relação ao que manda a lei, não serão causadores, todos e cada um, de nenhuma nulidade.”
Deste modo, verifica-se que a primeira questão de constitucionalidade colocada pela Recorrente, além de não incidir sobre uma interpretação com cariz normativo, integra dados que não constituíram a ratio decidendi do Acórdão recorrido, pelo que acresce mais um motivo que impossibilita o conhecimento do mérito do recurso, nesta parte, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade.
Quanto à segunda questão, constata-se que a Recorrente não enuncia qualquer interpretação reportada ao artigo 135.º, do CPA, diversa da que enunciou relativamente ao artigo 116.º, do EMJ, pelo que, por ausência de indicação de um critério interpretativo autónomo que incida sobre aquele preceito, também não é possível conhecer do mérito desta questão de constitucionalidade.
No que respeita à quarta questão de constitucionalidade acima referida, a Recorrente limita-se a invocar a inconstitucionalidade do resultado da operação subsuntiva efectuada pelo Acórdão recorrido, o qual considerou que, na situação sub iudicio, existia uma inutilidade superveniente da lide. A Recorrente não aponta qualquer critério geral e abstracto que tenha sido seguido pela decisão recorrida para considerar que existia uma inutilidade superveniente da lide, impugnando apenas esse mesmo resultado no caso concreto, o qual considera violador do princípio constitucional do acesso ao direito.
Respeitando esta questão a uma inconstitucionalidade imputada directamente ao sentido de decisão judicial, em si mesma considerada, não pode também o Tribunal Constitucional dela conhecer, uma vez que não tem acolhimento no nosso sistema o chamado “recurso de amparo”.
Perante a impossibilidade do Tribunal Constitucional poder apreciar estas três questões colocadas pela Recorrente, resta apenas decidir sobre o mérito da impugnação da constitucionalidade do artigo 168.º, nº 1 e 2, do EMJ, cujo texto corresponde à dimensão normativa enunciada pela Recorrente.
2. Do mérito do recurso
2.1. Enquadramento da questão
O presente recurso versa o tema da instância competente para decidir as impugnações das decisões do Conselho Superior de Magistratura, designadamente em matéria disciplinar.
Dispõe o artigo 168.º, do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, nos seus dois primeiros números:
1 - Das deliberações do Conselho Superior da Magistratura recorre-se para o Supremo Tribunal de justiça.
2 - Para efeitos de apreciação do recurso referido no número anterior o Supremo Tribunal de Justiça funciona através de uma secção constituída pelo mais antigo dos seus vice-presidentes, que tem voto de qualidade, e por um juiz de cada secção, anual e sucessivamente designado, tendo em conta a respectiva antiguidade.
A Recorrente questiona, em primeiro lugar, a conformidade constitucional desta solução por não atribuir a um tribunal administrativo essa competência, uma vez que a Constituição no seu artigo 212.º, n.º 3, incumbe os tribunais administrativos do julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídico-administrativas.
Além disso, acusa também a secção do Supremo Tribunal de Justiça, a quem compete proceder ao julgamento destes recursos, de não ter condições de isenção e independência para os julgar, atenta a sua composição e modo de designação.
Estas imputações já foram objecto de anteriores pronúncias do Tribunal Constitucional, que sempre entendeu, sem dissonância, que a regra de competência estatuída no artigo 168.º, do EMJ, não violava nenhum princípio ou preceito constitucional (vide os Acórdãos n.º 347/97, 687/98, 40/99, 64/99, 131/99, 234/99, 290/99, 373/99, 575/99, 235/2000, e 254/2001, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
O tempo decorrido após as últimas ponderações e as alterações entretanto ocorridas na composição deste Tribunal justificam uma reponderação explicitada da questão.
O Conselho Superior da Magistratura é um órgão constitucional autónomo, com previsão no artigo 218.º, da Constituição, cuja existência visou assegurar a gestão e disciplina da magistratura dos tribunais judiciais, com garantia da independência externa dos juízes relativamente aos demais poderes do Estado.
Daí que uma das funções que lhe está atribuída seja precisamente a do exercício da acção disciplinar em relação aos juízes, segundo as regras a definir por lei ordinária (artigo 217.º, n.º 1 e 3, da Constituição).
Segundo se estabelece no artigo 82º do EMJ “constituem infracção disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados por magistrados judiciais com violação dos seus deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções”.
Cabe ao Conselho Permanente do Conselho Superior de Magistratura, por competência delegada tácita, o exercício da acção disciplinar (artigo 152.º, n.º 2, do EMJ), salvo quando essa acção incida sobre juízes dos tribunais superiores ou essa delegação de poderes seja revogada, situações em que a competência pertence ao Plenário deste órgão (artigo 151.º, alínea a), e 152.º, n.º 2, do EMJ). As decisões do Conselho Permanente podem ser objecto de reclamação para o Plenário (artigo 151.º, alínea b), do EMJ).
A competência disciplinar é um atributo ou poder próprio de qualquer organização administrativa, sem o que as instituições dificilmente funcionariam, e esta envolve necessariamente o poder de agir sempre que se verifique uma infracção disciplinar por parte de um juiz, dado que esta representa uma violação ao dever de cumprir o serviço público que lhe está cometido.
Ao sancionarem-se estes actos, procura-se assegurar o bom funcionamento da administração da justiça, podendo dizer-se que os actos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura no exercício da sua competência disciplinar têm a natureza de actos administrativos (contrariamente ao que sucede em Itália, em que uma secção disciplinar do Consiglio Superiore della Magistratura actua como um verdadeiro tribunal, num processo com características jurisdicionais, na aplicação de sanções disciplinares aos juízes), porquanto se traduzem em estatuições autoritárias de efeitos jurídicos externos positivos ou negativos, relativamente a um caso individual e concreto, que se podem traduzir na aplicação de sanções administrativas, aplicadas por uma entidade administrativa autónoma, ao abrigo de disposições de direito administrativo (vide, neste sentido, sobre a aplicação de sanções disciplinares na Administração Pública, em geral, Freitas do Amaral, em “O poder sancionatório da Administração Pública”, em “Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa”, vol. I, pág. 217, ed. de 2008, da Almedina, e em “Curso de direito administrativo”, vol. II, pág. 255, da reimp. de 2003, e, especificamente, sobre a aplicação de sanções disciplinares aos juízes, Paulo Rangel, em “Repensar o poder judicial. Fundamentos e fragmentos”, pág. 218-221, da ed. de 2001, da Universidade Católica, e, entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 347/97, 687/97 421/2000, e 268/2003, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, enquanto actos de natureza administrativa, as deliberações do Conselho Superior da Magistratura, nesta matéria, não podem deixar de ser contenciosamente sindicáveis, por força da garantia concedida no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.
O texto primitivo da Constituição de 1976, nas suas disposições finais e transitórias, tinha imposto que a legislação relativa ao Conselho Superior da Magistratura teria que ser aprovada até 31-12-1976 (artigo 301.º, n.º 2), o que foi cumprido pelo Decreto-Lei n.º 926/76, de 31 de Dezembro, o qual, no artigo 13.º, estabeleceu que das deliberações deste órgão se recorria para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça.
Esta solução foi mantida pelo artigo 175.º, n.º 1, da Lei n.º 85/77, de 13 de Dezembro, que aprovou o Estatuto dos Magistrados Judiciais, cumprindo também o prazo concedido pelo artigo 301.º, n.º 1, da Constituição de 1976, o qual passou a regulamentar o funcionamento do Conselho Superior da Magistratura.
A redacção deste preceito foi alterada pelo artigo 2.º, do Decreto-Lei n.º 348/80, de 3 de Setembro, tendo passado a dispor que, para efeitos de apreciação do referido recurso, o Supremo Tribunal de Justiça funcionava através de uma secção constituída pelo seu presidente e quatro juízes conselheiros, um de cada secção daquele Tribunal, anual e sucessivamente designado por aquele, tendo em consideração a respectiva antiguidade (n.º 2), sendo os recursos distribuídos pelos juízes conselheiros da secção, cabendo ao presidente o voto de qualidade (n.º 3).
O novo Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, manteve este regime no artigo 168.º, n.º 1 e 2, do seu articulado.
Contudo, a Lei n.º 10/94, de 5 de Maio, veio a excluir o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça desta secção, passando a integrá-la, em sua substituição, o Vice-Presidente do mesmo Tribunal.
Finalmente, a Lei n.º 143/99, de 31 de Agosto, esclareceu que o Vice-Presidente que integrava esta secção era o mais antigo.
Cumpre ainda referir que o Presidente do Conselho Superior de Magistratura foi sempre, por inerência, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
A opção inicial do legislador de atribuição da competência ao Supremo Tribunal de Justiça para apreciar os recursos interpostos das deliberações do Conselho Superior da Magistratura, nomeadamente em matéria disciplinar, foi, na época, uma opção sem alternativas credíveis, atenta a necessidade de escolha de uma instância jurisdicional superior, face à natureza e composição da entidade emitente do acto impugnável e à possibilidade de juízes dos tribunais superiores serem alvo de sanções disciplinares.
Em primeiro lugar, apesar da Lei n.º 3/74, de 14 de Maio, ter reservado a função jurisdicional integralmente para os tribunais, do Decreto-Lei n.º 250/74, de 12 de Junho, ter transferido os tribunais administrativos da tutela da Presidência do Conselho de Ministros para a órbita do Ministério da Justiça, e do texto da Constituição aprovada em 1976 ter previsto na organização dos tribunais a possibilidade de existência de tribunais administrativos (artigo 212.º, n.º 3), medidas legislativas que afastaram as dúvidas até então existentes sobre o carácter jurisdicional do Supremo Tribunal Administrativo, a manutenção da nomeação dos seus membros pelo Governo e a inexistência de um sistema de auto-governo dessa magistratura, mantendo-a na dependência do poder executivo, na altura, não garantia a esse Tribunal um estatuto de independência suficiente que permitisse atribuir-lhe a competência para efectuar o controle das deliberações do Conselho Superior da Magistratura, em matéria disciplinar, apesar das mesmas revestirem a natureza de um acto administrativo. Se o objectivo da atribuição das funções de gestão e disciplina dos juízes a um órgão autónomo havia sido o de garantir a independência do poder judicial, face aos demais poderes do Estado, não podia o controle das decisões desse órgão ser entregue a quem não gozava de inteira independência perante o poder executivo.
Além disso, embora navegando num mar de incertezas e hesitações, a opinião dominante, na altura, apontava para a integração dos tribunais administrativos nos tribunais comuns, como tribunais especializados, o que conduziria ao breve desaparecimento do Supremo Tribunal Administrativo.
Contudo, a aprovação do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na sequência da revisão constitucional de 1982 que reconhecera aos particulares o direito de obter o reconhecimento contencioso de direitos ou interesses legalmente protegidos contra actos administrativos (artigo 268.º, n.º 3, da Constituição/82), veio alterar profundamente o sistema de justiça administrativa e fiscal, em Portugal, estabelecendo uma nova orgânica para os tribunais administrativos e fiscais, paralela à dos tribunais comuns, e aprovando um estatuto dos juízes que neles prestam serviço com vista a garantir a sua completa independência, sendo a sua nomeação, gestão e disciplina da competência de um novo órgão dotado de uma autonomia semelhante à do Conselho Superior de Magistratura - o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
A Revisão Constitucional de 1989 veio a conferir força constitucional a esta opção, instituindo um sistema de pluralidade jurisdicional, em que os tribunais administrativos e fiscais passaram a integrar uma ordem jurisdicional obrigatória própria, na qual o Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior da respectiva estrutura hierárquica, tendo os seus juízes as mesmas garantias e incompatibilidades dos juízes dos tribunais judiciais.
Com estas alterações, a falta de alternativas à opção pelo Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de recurso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura deixou de subsistir, uma vez que o Supremo Tribunal Administrativo passou a ser um órgão dotado da independência necessária para exercer essa competência.
Contudo, o legislador manteve essa competência numa secção do Supremo Tribunal de Justiça constituída especificamente para esse efeito, apesar das críticas e da existência de vozes propondo soluções alternativas (v.g. Jorge Miranda, em “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, CJA, n.º 24, pág. 3).
2.2. Da reserva de competência dos tribunais administrativos
A Recorrente defende que a Constituição ao cometer aos tribunais administrativos o julgamento dos recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas (artigo 212.º, n.º 3) estabelece uma reserva absoluta de competência, não podendo o legislador ordinário atribuir a outros tribunais a competência para decidir tais recursos.
É esta também a opinião de Rui Machete (em “A Constituição, o Tribunal Constitucional e o Processo Administrativo”, em “Tribunal Constitucional. Legitimidade e legitimação da justiça constitucional”, pág. 160, ed. de 1995, da Coimbra Editora) e de Gomes Canotilho e Vital Moreira, (em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. II, pág. 566, da 4.ª ed., da Coimbra Editora), para quem, apenas uma interpretação “forçada” do texto constitucional, consente na atribuição a outros tribunais da competência para o julgamento de questões que se devam ter por administrativas.
Também Mário Esteves de Oliveira sustenta esta posição, embora admita com recurso ao elemento sinépico ou experimental da interpretação jurídica, a desaplicação dessa regra de reserva absoluta, quando o exijam, em casos extremos, os princípios da necessidade ou da impossibilidade (em “A publicidade, o notariado e o registo públicos de direitos privados”, em “Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares”, pág. 500-515, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
Já Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida (em “Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo”, pág. 21 e seg., da ed. de 2002, da Almedina), e Paulo Rangel (na ob. cit., pág. 202-207) admitiram a possibilidade do legislador remeter para os tribunais judiciais o conhecimento de algumas questões emergentes de relações jurídicas administrativas, quando haja interesses privados relevantes a considerar, para assegurar uma tutela efectiva de direitos fundamentais dos cidadãos, face à falta de meios da jurisdição administrativa.
Sérvulo Correia (em “A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos”, em “Estudos em memória do Prof. Castro Mendes”, pág. 254, da ed. de 1995, da Faculdade de Direito de Lisboa), Rui Medeiros (em “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade, em CJA, n.º 16, pág. 35-36) e Vieira de Andrade (em “A justiça administrativa (lições)”, pág. 111-115, da 8.ª ed., da Almedina), defendem que o disposto no artigo 213.º, n.º 3, da Constituição, apenas proíbe a descaracterização ou desfiguração da jurisdição administrativa, mas não proíbe a atribuição pontual a outros tribunais do julgamento de questões administrativas pelas mais diversas razões, sentindo-se nesse domínio a liberdade constitutiva própria do poder legislativo.
A autonomização organizacional do exercício da jurisdição administrativa consagrada constitucionalmente na revisão constitucional de 1989, está associada à autonomia dogmática e à complexidade técnica do Direito Administrativo, à importância da definição jurisprudencial dos seus princípios gerais e à vantagem genérica da submissão dos casos a juízes com sensibilidade para os limites do controlo dos actos praticados no exercício da liberdade de decisão administrativa. Se a estas razões é inerente a delimitação de uma área natural de intervenção desta jurisdição autónoma, já não se revela necessário o estabelecimento de uma reserva material absoluta que impeça o legislador ordinário de, em casos justificados, atribuir pontualmente a outros tribunais o julgamento de questões substancialmente administrativas.
As vantagens de intervenção duma jurisdição especializada poderão ter que ceder perante outras razões cuja valoração justifique o seu atendimento.
Uma leitura rígida do disposto no artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, impediria o legislador, sem quaisquer vantagens, de atender a práticas com uma longa tradição, de ponderar pragmaticamente as zonas de intersecção de matérias de diferente natureza, e de adequar a distribuição de competências, tendo em atenção a procura e a oferta dos serviços públicos de justiça.
Necessário é que haja a obrigação de respeitar o núcleo essencial da organização material das jurisdições, não desvirtuando as autonomizações constitucionalmente consagradas, e que as soluções que excepcionalmente constituam um desvio à cláusula constitucional de definição da área de competência dos tribunais administrativos tenham uma justificação bastante.
Esta foi aliás a leitura que o legislador ordinário tem feito do texto constitucional, mantendo e atribuindo, por um lado, a outros tribunais a competência para julgar causas substancialmente administrativas, tal como, por outro lado, na Reforma de 2002, redefiniu o âmbito da jurisdição administrativa em termos que não coincidem exactamente com a definição efectuada pelo artigo 213.º, n.º 3, da Constituição.
Pode, pois, dizer-se que no figurino constitucional os tribunais administrativos são apenas os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo o legislador liberdade para, em casos justificados e pontuais, atribuir a competência a outros tribunais.
Tem sido esta, aliás, a jurisprudência constante deste Tribunal (vide, entre muitos outros, os Acórdãos n.º 347/97, n.º 458/99, n.º 421/2000, n.º 550/2000, 284/2003, n.º 211/2007, n.º 522/2008 e n.º 632/2009, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Como já acima se revelou na época em que se começou por atribuir ao Pleno do Supremo Tribunal de Justiça a competência para julgar os recursos interpostos das deliberações do Conselho Superior de Magistratura, não existia uma alternativa credível.
Mas, com a autonomização organizacional do exercício da jurisdição administrativa, o Supremo Tribunal Administrativo não só passou a ser uma opção que deixou de constituir um perigo para a independência da magistratura judicial, como, numa primeira aparência, era a opção natural, face à matéria em discussão nesses recursos.
Contudo, o legislador manteve a solução inicial, sentindo o peso da história, embora curta, do exercício daquela competência pelo Supremo Tribunal de Justiça, e atendendo à proximidade dos juízes deste Tribunal com as realidades objecto das deliberações recorridas do Conselho Superior de Magistratura, designadamente em matéria de disciplina dos magistrados judiciais, e, quid sapit, algum receio de introduzir um factor de conflitualidade entre as duas ordens jurisdicionais.
Na verdade, apesar dessa proximidade poder colocar algumas interrogações sobre a imparcialidade do tribunal de recurso, como iremos adiante apreciar, ela confere um melhor conhecimento da realidade sobre a qual incidem as deliberações recorridas e uma sensibilidade mais afinada para balancear o peso dos interesses em jogo nestes recursos.
Se os juízes do Supremo Tribunal Administrativo, por princípio, têm um conhecimento mais detalhado do direito a aplicar, já os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, atenta a especificidade das matérias em discussão, estarão numa posição privilegiada para melhor efectuarem um controlo dos actos recorridos, pelo que nesta última qualidade poderá residir o fundamento bastante para conferir ao legislador legitimidade para manter a solução de continuar a ser o Supremo Tribunal de Justiça o competente para apreciar os recursos interpostos das decisões do Conselho Superior da Magistratura, designadamente em matéria de disciplina dos juízes.
Por estas razões não é possível dizer que a atribuição desta competência viole o disposto no artigo 213.º, n.º 1, da Constituição.
2.3. Da imparcialidade dos juízes
Mas a Recorrente também acusa a secção do Supremo Tribunal de Justiça, a quem compete proceder ao julgamento destes recursos de não ter condições de isenção e independência para os julgar, atenta a sua composição e modo de designação.
Actualmente os recursos das deliberações do Conselho Superior de Magistratura, designadamente em matéria de disciplina dos magistrados judiciais, são julgados por uma secção específica do Supremo Tribunal de Justiça, constituída pelo vice-presidente mais antigo e quatro juízes conselheiros, um de cada secção daquele Tribunal, anual e sucessivamente designados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tendo em consideração a respectiva antiguidade (artigo 168.º, n.º 1 e 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Estando estes juízes, também eles sujeitos à gestão e disciplina do Conselho Superior de Magistratura, do qual é Presidente precisamente o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 218.º, n.º 1, da Constituição), a Recorrente questiona a independência e imparcialidade dos juízes Conselheiros a quem é atribuída a competência para julgar os recursos interpostos das decisões do Conselho Superior de Magistratura, designadamente em matéria disciplinar.
No artigo 203.º, da Constituição, consagra-se a independência dos tribunais, a qual pressupõe a independência dos juízes.
Conforme referiu Castro Mendes, “a independência dos juízes é a situação que se verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente outros factores que não os judicialmente adequados a conduzir à legalidade e à justiça da mesma decisão” (in Nótula sobre o art. 208.º, da Constituição – Independência dos juízes”, em Estudos sobre a Constituição, ed. da Petrony, de 1977), o que reclama que os juízes se encontrem numa situação de imparcialidade ou terciariedade face às partes do processo que são chamados a decidir.
Apesar de apenas o n.º 5, do artigo 222.º, da Constituição, referir esta qualidade, relativamente, aos juízes do Tribunal Constitucional, isso não significa que esta exigência não recaia também sobre os juízes dos tribunais judiciais, estando o legislador ordinário vinculado a criar um quadro legal que garanta e promova a imparcialidade dos juízes, como forma de realização do princípio da independência dos tribunais (artigo 203.º, n.º 1, da Constituição), e do direito dos cidadãos a um processo equitativo, quando a eles recorrem (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição).
Daí que não seja admissível a atribuição da competência para decidir uma causa a quem, objectivamente, não se encontre numa posição com o distanciamento suficiente, relativamente às partes a quem a decisão afecte, que lhe permita julgar sem quaisquer influências estranhas à legalidade e à justiça da decisão.
Ora, o facto dos juízes que compõem a secção do Supremo Tribunal de Justiça competente para julgar os recursos interpostos das deliberações do Conselho Superior de Magistratura, designadamente em matéria disciplinar, se encontrarem sujeitos à gestão e disciplina deste órgão, não pode ser encarado, de uma perspectiva objectiva, como um factor susceptível de influenciar a sua pronúncia nessas causas.
As relações entre este órgão e os juízes não são de subordinação, gozando estes não só de independência face aos demais poderes do Estado, mas também de uma independência interna, sendo a sua gestão e disciplina levada a cabo pelo Conselho Superior de Magistratura, segundo regras prévia e abstractamente fixadas (vide Gomes Canotilho, sobre as relações entre os juízes e o Conselho Superior da Magistratura, em “A questão do autogoverno das Magistraturas como questão politicamente incorrecta”, em AB VNO AD OMNES – 75 anos da Coimbra Editora, pág. 247 e seg.).
Daí que o facto da entidade emitente da decisão recorrida ser o Conselho Superior da Magistratura não é razão para que, objectivamente, os juízes da referida secção do Supremo Tribunal de Justiça não se encontrem numa posição que lhes permita julgar sem quaisquer influências estranhas à legalidade e à justiça da decisão.
De igual o modo, o facto desses juízes, com excepção do Vice-Presidente mais antigo deste Tribunal, serem nomeados pelo Presidente, que também é, por inerência, o Presidente do órgão recorrido, não é susceptível de pôr em causa a sua imparcialidade, uma vez que a designação feita pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça obedece a um critério objectivo e estritamente vinculado – deve ser escolhido um juiz de cada uma das quatro secções, 'tendo em conta a respectiva antiguidade'.
Os nomeados são os juízes mais antigos de cada uma das secções.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, por inerência, do Conselho Superior da Magistratura, não faz uma selecção dos juízes que integram essa secção segundo o seu alvedrio, encontrando-se os pressupostos da designação determinados na lei, em termos tais, que não abrem qualquer espaço a uma escolha pessoal, pelo que a imparcialidade desses juízes face ao Conselho Superior de Magistratura e ao seu Presidente, também não é questionável com esse fundamento.
Por estas razões também não se verifica que a atribuição da competência a uma secção do Supremo Tribunal de Justiça para julgar os recursos interpostos das deliberações do Conselho Superior da Magistratura, nomeadamente em matéria disciplinar, viole o disposto no artigo 203.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Constituição.
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional as normas constantes dos n.º 1 e 2, do artigo 168.º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho;
b) Julgar improcedente o recurso.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Junho de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro (vencida, de acordo com a declaração de voto junta) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida o presente Acórdão, por entender que deveriam ter sido julgadas inconstitucionais as normas constantes do n.º 1 e 2 do art. 168.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, por violação do art. 212.º, n.º 3, da Constituição.
As normas cuja constitucionalidade é questionada colocam fora da jurisdição administrativa o julgamento duma matéria que, na sua essência, é matéria administrativa.
Ao furtar à jurisdição administrativa a apreciação das deliberações do Conselho Superior da Magistratura, as normas em causa violam o art. 212.º, n.º 3, da CRP, que prevê ser da competência dos tribunais administrativos e fiscais dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
No art. 212.º, n.º 3, a Constituição estabelece uma reserva material de competência dos tribunais administrativos, e apenas em casos extremos, pontuais e justificados, poderá o legislador atribuir a outros tribunais o julgamento de questões substancialmente administrativas.
Não creio que o legislador seja livre de desenhar uma qualquer repartição de competências entre tribunais judiciais e tribunais administrativos e fiscais, desde que respeite a existência destes. I.e., em meu entender, do enunciado constitucional não se retira somente a proibição da descaracterização ou desfiguração da jurisdição administrativa, o que conduziria a que o legislador ficasse obrigado apenas à salvaguarda de um núcleo essencial da organização material das jurisdições. A regra constitucional não pode ser encarada como meramente definidora de um modelo de organização típico, livremente modelável.
Pelo contrário, considero que terá de haver uma justificação razoável para o desvio, e as razões procuradas pelo presente Acórdão, razões históricas, ou uma razão de maior proximidade dos tribunais judiciais às questões em julgamento (esta podendo servir, a meu ver, de argumento no sentido inverso), não são suficientes para fundar a subtracção desta matéria à jurisdição administrativa.
Qualquer atribuição pontual, a outros tribunais, do julgamento de questões administrativas, deve alicerçar-se em fundamento bastante e actual, podendo considerar-se justificadas derrogações introduzidas em nome de outros interesses ou valores constitucionalmente atendíveis. O que no caso não sucede.
São estas, sumariamente, as razões de discordância que fundamentam o meu voto.
Lisboa, 6 de Junho de 2011
Catarina Sarmento e Castro