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Proc. nº 48/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – No recurso supra identificado em que é recorrente A ..., com os sinais dos autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
1 – A ..., com os sinais dos autos, interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, documentado a fls. 2 e segs., pretendendo a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 1º, 2º, 127º, 97º nº 4, 344º, 374º nº
2 e 379º alínea a) do Código de Processo Penal (CPP).
Segundo o recorrente, a interpretação feita no acórdão recorrido violaria o disposto nos artigos 20º nº 4, 32º nºs 1 e 5 e 205º nº 1 da Constituição.
As inconstitucionalidades suscitadas traduzir-se-iam em:
a) Violação do dever de fundamentação da decisão (aqui, em matéria de facto e conexionada com a livre apreciação das provas) no que respeita a indicação dos factos que suportam determinadas conclusões concernentes a elementos essenciais dos crimes por que o recorrente foi condenado;
b) Imputação ao arguido de uma presunção de culpa relativamente a factos que aquele negou;
c) Contradição na fundamentação da decisão, quando se não dá como provado que os arguidos façam da burla modo de vida e provado que os planos arquitectados pelos arguidos 'só é concebível em quem faz da arte de enganar o próximo o seu normal modo de vida'.
2 – Como o recorrente bem saberá, o Tribunal Constitucional, no exercício da sua competência de fiscalização concreta de constitucionalidade, não representa um novo grau de jurisdição para julgamento de recursos ordinários; não constitui, pois, no caso presente, um 4º grau de jurisdição...
Com efeito, o Tribunal Constitucional tem os seus poderes de cognição limitados
à apreciação da constitucionalidade de normas (ou de uma sua interpretação) aplicadas nas decisões recorridas. Competindo-lhe – e só - o conhecimento de questões normativas de constitucionalidade, não pode o Tribunal Constitucional, fora daquele estrito âmbito, apreciar o modo como as decisões judiciais aplicam o direito infraconstitucional.
E é assim que, no caso, este Tribunal não pode ajuizar sobre se, tal como se entendeu no acórdão recorrido, o acórdão condenatório está bem fundamentado, não houve condenação com base em presunções de culpa ou se não verificam contradições na matéria de facto. Pode e - insiste-se – só pode é apreciar se nessas decisões há, explícita ou implicitamente, interpretações normativas ou normas aplicadas que ofendam a Constituição.
Tudo está, pois, em saber, antes do mais, se, em rigor, é isso o que o recorrente pretende.
É o que se passa a apreciar.
3 – Insurge-se o recorrente contra o que considera ser, no acórdão recorrido, uma presunção de culpa, com violação do disposto nos artigos 2º e 344º do CPP e, ainda do princípio da culpa e da legalidade consagrado no artigo 1º do Código Penal.
Isto resultaria de se terem extraído conclusões desfavoráveis do pagamento de determinada quantia feito pelo recorrente a um ofendido, embora se tenha considerado que esse pagamento não poderia ser interpretado como reconhecimento tácito da prática de qualquer facto criminoso.
Que interpretação teria sido dada, neste caso, às normas em causa que as faria incorrer em inconstitucionalidade ?
Ora, em primeiro lugar, deve reconhecer-se que o recorrente nunca especificou qual tenha sido essa interpretação normativa.
Depois, não se vislumbra no acórdão recorrido qualquer pronúncia expressa sobre uma qualquer interpretação dos preceitos legais que vedam as presunções de culpa.
Poderia, contudo, entender-se que, ao decidir que não ocorrera presunção de culpa, o acórdão recorrido tivesse acolhido, implicitamente, uma interpretação inconstitucional dos ditos preceitos legais.
Mas não é o que se verifica naquele aresto.
Na verdade, o STJ aceita e acolhe o que a este propósito se decidiu na Relação, contrariando a ilação extraída na 1ª instância do referido pagamento, ou seja, o reconhecimento tácito da prática do crime, devendo, assim, dar-se por assente que se não retirou daquele facto este reconhecimento. O que se entendeu, no entanto, foi que esta alteração do decidido no acórdão condenatório era irrelevante, por existirem outros elementos probatórios que alicerçavam o julgamento da matéria de facto.
Daqui resulta, sem margem para dúvidas, que a impugnação do recorrente se dirige directamente contra aquele juízo, ou seja, contra a decisão judicial e não contra uma suposta interpretação normativa.
O mesmo, aliás, acontece, quando o recorrente alude à supra referida contradição na fundamentação, sendo claro que ele manifesta, sob as vestes de uma suposta questão de constitucionalidade normativa, uma mera discordância quanto à decisão de se não ter julgado contraditório o facto de se ter provado que os arguidos não faziam da burla modo de vida e na fundamentação jurídica se ter considerado que os planos arquitectados pelos arguidos só são concebíveis em quem faz da arte de enganar o próximo o seu normal modo de vida.
Finalmente, quanto à alegada falta de fundamentação do acórdão condenatório:
Já aqui se poderá surpreender uma interpretação da norma contida no artigo 374º nº 2 do CPP, feita aprofundadamente no acórdão da Relação e acolhida na decisão recorrida.
De acordo com o extracto daquele acórdão transcrito na decisão impugnada, ali se escreveu:
'O artº 374º, nº 2 do C.Pr.Penal, ...não é inconstitucional...quando interpretado...no sentido de que, sendo vários os arguidos que, em co-autoria, praticam os factos delituosos, o tribunal não tem que fazer uma fundamentação formalmente distinta para cada um deles. O tribunal do julgamento tem, é certo, de explicar as razões que, relativamente aos vários arguidos, o levaram a convencer-se de que todos eles praticaram os factos que deu como provados. Mas a fundamentação não tem de ser distinta para cada um dos arguidos. Nem tão pouco tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética. O que a fundamentação tem de deixar claro é o porquê da decisão relativa a cada um deles... Sendo imputados a cada um dos arguidos factos determinados, a fundamentação aduzida pelo tribunal para julgar provados os factos que considerar tais, é bastante para que cada arguido possa saber que provas suportam a sua condenação.'
E mais adiante:
'... analisando a fundamentação constante do acórdão recorrido, (...) constata-se que aí se indicam as fontes de prova que levaram a decidir como se decidiu, como é o caso, nomeadamente, dos depoimentos prestados pelos ofendidos, mas também aí radicam, claramente, os motivos pelos quais se considerou que essas fontes de prova forma idóneas e relevantes, em detrimento de outras tidas por menos credíveis, razões essas que, em função das regras de experiência e de um critério lógico, no caso, atento, nomeadamente, à consistência e frontalidade daqueles mesmos depoimentos, constituíram o substracto racional que conduziu à formação da convicção, o que tudo possibilita, sem dúvida, a este Tribunal de recurso uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, a significar que a decisão em causa não merece censura, no que a tal respeita, resultando, como resulta, de uma convicção pessoal, é certo, mas suficientemente objectivada e motivada'.
E no acórdão recorrido, onde se citam os Acórdãos deste Tribunal nºs 13/2000 e
251/2000, acrescentou-se:
'Relendo a fundamentação da matéria de facto, posto que concisa, mostra-se suficiente para se conhecerem os elementos essenciais da valoração feita e a correcção aparente dos processos de raciocínio e a sua lógica intrínseca'.
Ora, com aquela interpretação normativa sobre os preceitos atinentes à fundamentação da decisão em matéria de facto (em especial, artigo 374º nº 2 do CPP), louvando-se na própria jurisprudência do Tribunal Constitucional (citados acórdãos de 10/02/99, in DR, II Série, de 1/4/99, 13/2000 e 251/2000) e a ela ajustada, o recurso, enquanto tem como objecto as normas ínsitas naqueles preceitos, é, por tal razão, manifestamente infundado.
4 – Pelo exposto e em conclusão, decide-se: a. não conhecer do objecto do recurso quanto às invocadas constitucionalidades supra referidas em 1 b) e c), por ele se reportar à própria decisão judicial impugnada e não a questões de constitucionalidade normativa: b. julgar o recurso manifestamente infundado no que concerne à inconstitucionalidade supra referida em 1 a).
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.'
2 - Reclama, agora, o recorrente, para a conferência, desta decisão sumária, reportando-se apenas ao julgado no que concerne à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 374º nº 2 do CPP, na interpretação dada pelo acórdão recorrido.
Na sua reclamação, o recorrente explana a sua tese sobre o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais e conclui:
'A grande questão que emerge, é a de saber se a interpretação das referidas normas, plasmada no douto acórdão recorrido e vazada nas enxutas expressões utilizadas pelos Mmos Juízes satisfazem, ou não, a teleologia almejada pelas referidas normas processuais e pelo normativo constitucional.
Na perspectiva dos recorrentes a resposta à pergunta colocada só pode passar por um rotundo e terminante 'não'.
Crê-se, com efeito, que a Lei 59/98, de 25 de Agosto, ao acrescentar à norma sobre que se discorre os significantes técnico-linguísticos 'exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal' visava a prossecução de objectivos constitucionais claros. Exactamente a de dotar de espessura infrangível o momento decisório e concorrendo, concomitantemente, para a efectiva sindicabilidade da formação da convicção.
Foram, efectivamente, estes normativos interpretados de acordo com o exposto e através de uma interpretação conforme à Constituição ?
Estamos em crer que não: a interpretação que lhes é oferecida é, sem margem para dúvidas e considerando o exposto, de todo inconstitucional e por essa razão se coloca esta 'vexata questio' à consideração de V. Exas Mmos Juízes Conselheiros, repete-se no que toca à interpretação normativo-constitucional das normas aplicadas e já referidas no requerimento do recorrente de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional'.
Na sua resposta, o Ministério Público entende que a reclamação deve ser indeferida, uma vez que o reclamante nada aduziu de substancial ou inovatório relativamente à jurisprudência deste Tribunal, citada na decisão reclamada.
Cumpre decidir.
3 – Com bem assinala o Exmo Magistrado do Ministério Público, não se vê na reclamação qualquer argumento novo que possa infirmar a jurisprudência deste Tribunal, citada no acórdão recorrido, que justificou a decisão sumaria de julgar o recurso manifestamente infundado no que concerne à norma do artigo 374º nº 2 do CPP.
O reclamante não põe, aliás, em causa a interpretação que se fez na decisão sumária do acórdão recorrido, em particular quanto à interpretação nele acolhida sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais. E foi esta interpretação que se julgou conforme à jurisprudência do Tribunal Constitucional e, consequentemente, sem lugar a censura 'sub specie constitutionis'.
Reiterando uma tal jurisprudência e na ausência de argumentos do reclamante que nessa jurisprudência não tenha sido ponderada, não merece censura a decisão sumária reclamada.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, indefere-se a reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa,14 de Março de 2002- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa