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Processo nº 750/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 11 foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1. B..., LDA. vem recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Setembro de 2001, de fls. 95, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Pretende a recorrente que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional 'a norma que se extrai do efeito conjugado dos arts. 130º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, 1º, nº 1, da Lei nº 13/2000, de 20 de Julho, e 4º da Lei nº
30-A/2000, de 20 de Dezembro, interpretados no sentido de que o mencionado Decreto-Lei nº 555/99 não vigorou no período que medeia entre 15 de Abril e 20 de Julho de 2000 e que ‘não entrou, ainda, em vigor’ assim impedindo a aplicação ao caso vertente do regime legal concretamente mais favorável'. Entende a recorrente que tal norma viola diversos princípios constitucionais, consagrados nos artigos 2º, 3º, nº 3, 20º e 205º e ss, 18º, nºs 2 e 3, 29º, nº
4, 13º e 32º da Constituição. Explica ainda a recorrente que não arguiu anteriormente a inconstitucionalidade que suscita porque 'a questão apenas surgiu, e de forma inopinada, inesperada e absolutamente imprevista por imprevisível, no Acórdão lavrado a final'. O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
2. Por decisão da Câmara Municipal de Penafiel de 10 de Agosto de 1999, constante de fls.12, B..., LDA., foi condenada no pagamento de uma coima de
100.000$00 por ter sido considerado provado que procedeu 'à construção de um pavilhão (...) sem que para tal tivesse a necessária e competente licença de construção (...), o que constitui contra-ordenação prevista no artigo 54º nº 1 a) do Dec. Lei 445/91 [de 20 de Novembro], e punível pelo artigo 54º nº 2 do citado normativo legal', com as alterações decorrentes do Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro. Esta condenação, impugnada perante o Tribunal Judicial de Penafiel, foi mantida pela sentença deste Tribunal de 19 de Outubro de 2000, de fls. 43. Inconformada, B..., LDA., recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, invocando simultaneamente a nulidade da sentença da 1ª instância. Nas alegações então apresentadas, entradas no tribunal em 17 de Novembro de 2000
(cfr. fls. 51), a recorrente considerou expressamente a aplicabilidade ao caso do regime definido pelo Decreto-Lei nº 555/99, afirmando, também expressamente, que o mesmo tinha entrado em vigor e revogado o Decreto-Lei nº 445/91, o que criava 'um problema de aplicação da lei penal no tempo'(cfr. fls. 67- 68 e conclusão). Por decisão de fls. 78, o Tribunal Judicial de Penafiel indeferiu a arguição de nulidade, confirmou a sentença que proferira e mandou subir os autos ao Tribunal da Relação do Porto. Conforme se pode ler a fls. 80, nessa mesma decisão o Tribunal de Penafiel considerou a questão da aplicabilidade do regime definido pelo Decreto-Lei nº
555/99, afastando-a porque 'o referido Decreto-Lei não se encontra em vigor', nos termos das disposições que cita (artigo 130º do Decreto-Lei 555/99, artigo
1º da Lei nº 13/2000, e, referindo embora que não releva para o caso, ainda o artigo 4º da Lei nº 30-A/2000). Julgando o recurso, o Tribunal da Relação do Porto veio também negar que fosse aplicável ao caso o 'regime resultante do DL nº 555/99, de 16/12 (Regime Jurídico da urbanização e da edificação)'. Conforme explicou, tal aplicação nunca seria possível porque esse diploma ainda não se encontrava em vigor, pois 'a sua vigência foi suspensa pelo Lei nº
13/2000, de 20 de Julho (art. 1, nº 1) até 31/12/2000. Por sua vez, pelo art. 4 da Lei nº 30-A/2000, de 20 de Dezembro, foi aquela data prorrogada até à entrada em vigor do Decreto-Lei a emitir ao abrigo da autorização legislativa concedida por esta lei (cfr. art. 5 do citado DL nº
177/2001, nos termos do qual o mesmo diploma entra em vigor 120 dias após a data da sua publicação). O regime jurídico de licenciamento municipal de obras particulares, aplicável ao caso é, pois, o do DL nº 445/91, de 20/11, com as alterações introduzidas pela Lei nº 29/92, de 5/9, Decreto-Lei nº 250/94, de 15/10 e Lei nº 22/96, vigente à data dos factos, como se entendeu na decisão recorrida'.
3. Há que averiguar se estão ou não reunidas as condições para que o Tribunal possa conhecer do presente recurso. Com efeito, é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido 'suscitada durante o processo' (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), ou seja, colocada 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade 'durante o processo' nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente – nomeadamente, no requerimento de interposição de recurso –
(cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e
160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994).
4. Ora a verdade é que se não pode aceitar a justificação formulada pela recorrente para não ter cumprido o ónus de invocar a inconstitucionalidade
'durante o processo', nos termos indicados. Com efeito, nas alegações de recurso apresentadas perante o Tribunal da Relação do Porto, repita-se, em 17 de Novembro de 2000, a recorrente considerou expressamente a aplicabilidade ao caso do regime definido pelo Decreto-Lei nº
555/99, afirmando, também expressamente, que o mesmo tinha entrado em vigor e revogado o Decreto-Lei nº 445/91, o que criava 'um problema de aplicação da lei penal no tempo'(cfr. fls. 67- 68 e conclusão). Ora a verdade é que, quando estas alegações foram entregues, já estava em vigor a Lei nº 13/2000, de 20 de Julho (cfr. artigo 2º respectivo), encontrando-se, portanto, suspensa a entrada em vigor do Decreto-Lei 555/99. Não pode, pois, a recorrente alegar ter sido surpreendida com a afirmação, feita no acórdão recorrido, de que o mesmo Decreto-Lei se não encontrava em vigor. Se a recorrente entendia que essa interpretação da lei conduzia à formulação de uma norma inconstitucional, tinha o ónus de invocar tal inconstitucionalidade nas alegações de recurso perante o Tribunal da Relação do Porto. Não foi, pois, suscitada durante o processo, nos termos exigidos pela al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, a inconstitucionalidade que a recorrente pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional. Estão, portanto, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Assim, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.'
2. Inconformada, B..., LDA veio reclamar para a conferência, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82. Levanta, porém, duas questões que considera prejudiciais ao conhecimento da reclamação, pretendendo que 'os autos sejam mandados baixar – cfr. parte final do art. 78º-B, nº 1, L 28/82 – a fim de serem resolvidas': 'a prescrição do procedimento aqui em causa' e a 'entrada em vigor de nova legislação – o Decreto-Lei 177/2001 – sobre a matéria em apreço'. Relativamente à decisão de não conhecimento do recurso, a reclamante vem sustentar, em síntese, que, embora não tenha expressamente utilizado perante o tribunal recorrido a expressão 'princípio constitucional', a verdade é que 'fez expressa invocação do princípio constitucional ferido', no caso, o 'princípio de aplicação da lei mais favorável'; e reafirma que, aliás, não lhe era exigível suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da decisão recorrida. Conclui nos seguintes termos:
'CONCLUSÕES:
1ª) No recurso aqui em causa aprecia-se a ocorrência de uma inconstitucionalidade. Porém, como se referiu logo de início, o decurso do tempo fez surgir duas novas questões decorrentes da prescrição do procedimento e da entrada em vigor de novo regime do licenciamento municipal das operações de loteamento, das obras de urbanização e das obras particulares – Decreto-Lei n.º
177/2001, de 4 de Junho.
2ª) O princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável ao agente – n.º 4, in fine, do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa –, a par de outros constitucionalmente consagrados, impõe ao Estado uma ‘obrigação de conformação legislativa do direito e do processo [...] de acordo com tal princípio’. Vale isto por dizer que a invocação da substância – invocação do princípio constitucional – há de ser suficiente, suprindo a omissão formal da referência expressa ao artigo que o contém. A invocação da necessidade de respeitar a aplicação de tais princípios, feita junto de um tribunal (em especial um tribunal de segunda instância) contém em si mesma a implícita invocação de se incorrer em inconstitucionalidade se os mesmos forem desrespeitados.
3ª) Face ao exposto e ao que será mui doutamente suprido, nos termos do previsto na parte final do art. 78º-B, n.º 1, L 28/82 deve: a. Ordenar-se que os autos baixem ao tribunal recorrido a fim de ser apreciada a prescrição e, se necessário, b. A aplicação ao caso do regime decorrente do Decreto-Lei n.º 177/2001, de
4 de Junho. Alternativamente, para quando assim se não entenda, deve c. dar-se provimento à presente reclamação admitindo-se o recurso interposto. Ainda alternativamente e ad cautelam, para a hipótese de ser desatendido o que vimos de requerer, requer-se que d. quando os autos baixarem ao tribunal a quo, o mesmo aprecie o acima requerido nas als. a) e b).'
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio pronunciar-se no sentido do indeferimento da reclamação, 'já que a longa exposição da reclamante não consegue pôr em causa o fundamento da decisão sumária impugnada: a inexistência de pressupostos de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta interposto'. No que toca às 'questões prejudiciais' e ao requerimento de envio do processo ao tribunal recorrido, o Ministério Público observa que 'não se compreende que a reclamante venha agora provocar a ‘baixa’ dos autos ao Tribunal ‘a quo’, quando teve plena oportunidade processual para suscitar tais questões, perante a Relação do Porto, no momento em que interpôs o recurso para o Tribunal Constitucional'.
4. Na verdade, a reclamante não aponta nenhuma razão capaz de justificar o deferimento da reclamação. Reafirmam-se, assim, os motivos apontados pela decisão reclamada quando julgou inadmissível o recurso de constitucionalidade. Apenas se acrescenta que não foi oportunamente invocada qualquer inconstitucionalidade normativa, nem explícita, nem implicitamente, como parece sustentar a reclamante. Com efeito, nunca colocou perante o tribunal recorrido a questão da eventual violação de nenhum princípio constitucional pelo conjunto normativo definido no requerimento de interposição de recurso – nem, aliás, por nenhuma outra norma – , limitando-se a discutir, no plano do direito ordinário, as questões, apontadas na decisão sumária atrás transcrita, da entrada em vigor e de aplicação no tempo dos diplomas indicados. Finalmente, e tendo em conta a possibilidade de julgamento imediato da reclamação, indefere-se o pedido de envio do processo ao tribunal recorrido para conhecer das questões suscitadas pela reclamante a título prejudicial.
Assim, pelos fundamentos indicados, decide-se: a) Indeferir a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada; b) Indeferir o requerimento de baixa do processo ao tribunal recorrido. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 8 de Março de 2002 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida