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Processo nº 179/02
3º Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
1. - F..., identificado nos autos, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da decisão proferida em 1ªinstância que o condenou na pena de dezoito meses de prisão pela prática de um crime de homicídio involuntário, previsto e punido no artigo 137º, nº 1, do Código Penal.
Igualmente interpôs recurso interlocutório do despacho que indeferiu a arguição de nulidade consubstanciada no facto de ter sido produzida decisão sem estarem transcritos os depoimentos gravados, sendo certo que, na sua perspectiva, tal ónus impende sobre o tribunal.
Desde logo considerou que, não especificando o nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) a quem incumbe o ónus da transcrição aí prevista, na decisão da 1ª instância fez-se errada interpretação da lei, ao decidir-se que não é indispensável a transcrição para a elaboração do recurso, mas sim a referência aos suportes magnéticos, decidindo-se posteriormente a quem compete a transcrição, apenas dos trechos que o recorrente especifique na motivação como tendo interesse para a decisão do recurso.
A seguir-se esse entendimento – defende ainda o recorrente – estaria confrontado o princípio constitucional de acordo com o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso (nº 1 do artigo 32º da Constituição), atendendo a que uma tal interpretação dos nºs. 3 e 4 do artigo 412º citado, oneraria demasiadamente, especialmente em casos de maior complexidade, como o dos autos, o cumprimento desse ónus no prazo peremptório de 15 dias estabelecido para a apresentação do recurso devidamente motivado.
2. - O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 23 de Maio de 2001, julgou improcedente o recurso, se bem que tenha reduzido a pena aplicada para doze meses de prisão.
Considerou-se, então, que, nos processos penais, havendo lugar à transcrição, a mesma deverá ser efectuada por entidades externas contratadas para o efeito pelo tribunal.
Preceitua o nº 4 do artigo 412º que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações relativas às provas que impõem decisão diversa da recorrida e às provas que devem ser renovadas, fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Colocada perante a questão de saber se essa transição deve ser integral ou limitada às provas gravadas – sentido para o qual aponta uma interpretação meramente literal das alíneas b) e c) do nº 3 do normativo em causa – o Tribunal da Relação entendeu que o problema se resolve através da aplicação às transcrições em processo penal do regime processual civil, recaindo, de acordo com o nº 3 do artigo 690º-A do Código de Processo Civil
(CPC), sobre 'a parte contrária' (nos termos aí definidos), o ónus de indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente.
Escreveu-se, a certo passo, no aresto recorrido, que 'se o caso interpretado não tem outro análogo directamente regulado na lei processual penal, manda o artigo 4º do CPP recorrer às regras do processo civil que se harmonizam com o processo penal', conferindo-lhes o estatuto de direito subsidiário, sob condição, no entanto, de se demonstrar a sua harmonia, casuística, com os princípios do processo penal, daí decorrendo que, neste processo, 'havendo lugar à transcrição, a mesma será efectuada por entidades externas contratadas para o efeito pelo tribunal'.
3. - Notificado, o arguido reclamou do decidido no tocante ao recurso interlocutório, reequacionando a questão de constitucionalidade: as normas do artigos 412º, nº 3, alíneas a) e b), do CPP, por remissão operada, ex vi do artigo 4º do mesmo Código, para o artigo 690º-A do Código de Processo Civil, interpretadas no sentido de, reconhecendo-se lacuna legislativa, ser imposto ao recorrente o ónus da transcrição, 'são aberta e claramente inconstitucionais, por violação dos princípios da legalidade em direito e processos penais (artigos 1º, nºs. 1 e 3 do CP, disposições estas materialmente inconstitucionais e 29º, nºs. 1 e 3 CRP), assim como da plenitude das garantias de defesa do arguido em processo penal (artigo 32º, nº 1, CRP)'.
A Relação, por acórdão de 19 de Setembro de 2001, indeferiu a reclamação. Em seu critério, o anterior aresto pronunciou-se sobre as questões cuja decisão foi solicitada, não existindo qualquer lapso, obscuridade ou ambiguidade a esclarecer.
4. - Inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
Pretende a apreciação da constitucionalidade das normas dos nºs. 3 e 4 do artigo 412º em referência, numa interpretação que, por remissão operada ex vi do artigo 4º do mesmo Código, para o disposto no artigo
690º-A do CPC, perfilha o sentido de, reconhecendo-se uma lacuna legislativa, ser imposto ao recorrente o ónus da transcrição, devendo a mesma restringir-se
às partes que aquela considera imporem decisão diversa, por inconstitucionalidade dada a violação do disposto nos artigos 2º, 20º, nº 4, e
32º, nº1 , da Constituição.
5. - O recurso não foi recebido pelo Desembargador relator
'por não se verificar no caso vertente qualquer uma das hipóteses a que alude o artigo 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional'.
É deste despacho que o arguido reclama, nos termos do artigo 76º, nº 4, deste texto legal.
Após alegar que se baseia na alínea b) do nº 1 do artigo
70º e de ter feito menção oportuna das peças processuais em que foi suscitada a questão de constitucionalidade – que reitera na sua descrição fáctica – considera que o recurso deve ser admitido.
6. - Foram os autos com vista ao Ministério Público, de acordo com o nº 2 do artigo 77º, sempre do mesmo diploma legal, e esse magistrado, não sem deixar de suscitar dúvidas quanto à exacta interpretação normativa questionada, acrescentou, no seu parecer:
'[...]- É, porém, manifesto que não foi este o sentido extraído dos preceitos legais em causa pela decisão recorrida: na verdade, a aplicação subsidiária do regime constante da versão actual do art. 690º-A do CPC, conduziu o Tribunal da Relação a considerar que 'em processo penal, havendo lugar à transcrição, a mesma será efectuada por entidades externas contratadas para o efeito pelo tribunal' (cf. fls. 30). E (fls. 33), no caso dos autos, entendeu a Relação que carecia de utilidade a determinação oficiosa de que procedesse à transcrição dos depoimentos, invocados pelo recorrente como base ou suporte do alegado erro na valoração das provas: 'Entende-se, assim, que mesmo em sede dos elementos aduzidos pelo recorrente na sua motivação de recurso pela impugnação da matéria de facto a mesma impugnação não pode proceder pelo que se entende ser uma acto processual inútil proceder á respectiva transcrição'. Verifica-se, deste modo, que o acórdão recorrido não interpretou e aplicou as normas, questionadas pelo recorrente, com o sentido, alegadamente inconstitucional, por ele invocado e especificado, não fazendo recair sobre ele qualquer ónus de transcrever os depoimentos gravados, limitando-se a considerar que traduziria acto inútil proceder à respectiva transcrição por iniciativa do próprio Tribunal, dado o carácter manifestamente inconsistente (e, portanto, manifestamente infundado) da argumentação expendida na motivação de recurso
(matéria e qualificação que obviamente extravaza os poderes cognitivos deste Tribunal). Faltando, pois, um pressuposto do recurso de fiscalização concreta interposto, é evidente que terá de improceder a presente reclamação.'
7. - Poderá sufragar-se a tese defendida pelo Ministério Público, conducente à improcedência da reclamação?
O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve ser indeferido quando se verifique algumas das situações enunciadas no nº 2 do artigo 76º da Lei nº 28/82, uma das quais respeita aos recursos previstos nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º do mesmo diploma, 'quando forem manifestamente infundados'.
Não é possível retirar do despacho que não admitiu recurso interposto, dada a sua redacção ática, o concreto fundamento da decisão.
No entanto, considerando, por um lado, ser indiscutida a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade e, por outro lado, atendendo à sedimentada jurisprudência em matéria de pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso – mormente os baseados na alínea b) do nº 1 do artigo 70º –, tem-se por evidente a manifesta falta de fundamentação do recurso.
Com efeito, o tribunal a quo, no concreto caso, entendeu não se colocar o problema do ónus de transcrição a cargo do recorrente uma vez que seria um acto processual inútil proceder à respectiva operação.
Se é verdade que, a certo passo, se conclui que, havendo lugar a transcrição, em processo penal, será a mesma efectuada por entidades externas contratadas para o efeito pelo tribunal – o que se faz em sede abstracta e dogmatizante – não menos certo é que, debruçando-se sobre o caso em apreço, se conclui – em termos que escapam ao poder cogniscitivo deste Tribunal
– que 'mesmo em sede de elementos aduzidos pelo recorrente na sua motivação de recurso para impugnação da matéria de facto a mesma impugnação não pode proceder pelo que se entende ser um acto processual inútil proceder à respectiva transcrição'.
Ou seja, e por outras palavras, se é discutível a interpretação feita pela Relação no tocante ao específico ponto do regime de recursos em processo penal subjacente, não é menos certo que esse critério não foi aplicado em concreto, por se entender, numa valoração subtraída ao poder de cognição do Tribunal Constitucional, que não existe utilidade em proceder a qualquer transcrição.
8. - Deste modo, uma vez que não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso em causa, de indispensável congregação – concretamente, o que respeita à efectiva aplicação da norma questionada, na dimensão interpretativa que determinou a respectiva ratio decidendi – indefere-se a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) unidades de conta. Lisboa, 8 de Abril de 2002 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida