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Processo nº 346/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. M... vem recorrer para o Tribunal Constitucional do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Abril de 2001 (de fls. 52), nos termos do disposto nas alíneas a) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo 'ver apreciada a inconstitucionalidade do artº 1484º-B do C.P.C. ou a interpretação que lhe foi dada no Douto Acórdão', por violação dos artigo 3º e 202º da Constituição.
2. O acórdão recorrido foi proferido no âmbito de uma acção especial destinada a obter a destituição de titular de órgão social, prevista no artigo 1484º-B do Código de Processo Civil, instaurada contra o ora recorrente por J.... Nesta acção, ao abrigo disposto no nº 2 do citado preceito, o recorrente foi suspenso, por despacho do Tribunal Judicial de Penafiel (de fls. 27 e segs.), do cargo de gerente da Sociedade I..., Ldª, 'atenta a indiciada violação grave de deveres do Sócio gerente M... e a sua consequente incapacidade para o exercício normal das respectivas funções, o seu comportamento desleal e perturbador do funcionamento da sociedade, que lhe têm causado prejuízos relevantes'.
Desta decisão recorreu M... para o Tribunal da Relação do Porto (por requerimento de fls. 32), defendendo a não aplicabilidade do artigo 1484º-B do Código de Processo Civil às sociedades que não tenham mais de dois sócios; e desde logo suscitou a questão da inconstitucionalidade do mesmo preceito, se for aplicável a tais situações, por permitir que sejam 'proferidas decisões sem audição da parte contrária ou sem pelo menos que tal ocorra por ficar em causa o efeito da própria providência', por violação dos artigos 3º e 202º da Constituição.
Pelo acórdão de 5 de Abril de 2001, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, dizendo, quanto à questão da falta de audição do ora recorrente, que há casos excepcionais em que uma decisão pode ser tomada sem audição prévia da pessoa visada (como aconteceria nos procedimentos cautelares), sem 'violação directa' do princípio do contraditório. Quanto ao caso específico do nº 2 do artigo 1484º-B do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação do Porto afirmou:
'Do teor deste normativo parece resultar com alguma evidência que o legislador quis que fosse tomada decisão célere quanto ao pedido de suspensão, após realização de diligências estritamente necessárias, o que não se compadece com a eventual audição prévia do requerido, sob pena de aquela não poder ter aquela celeridade.
É que a disposição em causa refere que ‘o juiz decidirá imediatamente’, o que tudo leva a crer pela admissibilidade de uma decisão sem audiência prévia do requerido.
Porém, nem pela circunstância de assim suceder, poderá concluir-se que não está salvaguardado aquele princípio do contraditório, posto que, aliás como sucedeu, estava facultado ao agravante recorrer de tal decisão, assim como poderia deduzir oposição a tal decisão aquando da citação para os termos da acção, na interpretação que se faz do disposto no nº 3 do citado art. 1484º-B, aliás à semelhança do que sucede nos procedimentos cautelares'.
Pelo que toca à invocada inconstitucionalidade, por violação do contraditório, o Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se nos seguintes termos:
'A resposta a esta questão resulta já do que vem referido, ao defender-se que, na situação dos autos, encontra-se salvaguardado esse direito, integrado este no âmbito mais geral consagrado constitucionalmente de acesso ao direito e aos tribunais e da administração da justiça com salvaguarda de direitos das pessoas directamente envolvidas num conflito – arts. 3º, 20º, 202º, nº 2, da CRP.
Do assinalado se extrai que a citada norma, na interpretação que dela se fez, não padece da invocada inconstitucionalidade, assegurado que está ao visado a defesa do direito ao contraditório, através da possibilidade do recurso ou da contestação dos factos que sustentaram a decisão tomada'.
3. Notificadas para o efeito, as partes vieram apresentar as suas alegações. O recorrente concluiu nos seguintes termos:
'1- O artigo 1484º, em específico o nº 2 do C.P.C. é inconstitucional
2- Se entendido que possibilita que numa sociedade de dois sócios, ambos gerentes, pode um deles socorrer-se dessa norma para suspender o outro.
3- A tal ocorrer está violado o princípio do contraditório.
4- Acresce que é proferida uma decisão, cuja eventual ilegalidade não pode ser reposta no tempo da decisão que a decretou.
5- O princípio do contraditório é regra mesmo nas providências cautelares.
6- Só é admissível ser afastado em casos muito especiais e mesmo aí com mecanismos que possibilitem repor qualquer ilegalidade em tempo igual à da decisão que decretou a medida provisória.
7- Deve ser assim reconhecida a inconstitucionalidade do nº 2 do artº 1484º do C.P.C.
8- E declarada inconstitucional a referida norma na interpretação que o Tribunal fez'.
Quanto ao recorrido, J..., veio sustentar 'não existir qualquer inconstitucionalidade no caso 'sub judice', seja relativamente ao 'texto do artigo 1.484° do C.P.C.', seja quanto à 'interpretação que a este artigo é dada no Douto Acórdão recorrido', remetendo para 'a fundamentação da constitucionalidade do preceito e sua aplicação ao caso sub judice (...)[d]o Acórdão Recorrido'.
4. Embora nas conclusões das alegações apresentadas o recorrente se refira ao nº 2 do artigo 1484º do Código de Processo Civil, é manifesto que se reporta ao nº 2 do artigo 1484º-B do mesmo Código, em consonância com o requerimento de interposição de recurso e com o texto das alegações (cf. fls.
67). É do seguinte teor a disposição referida (aditada pelo Decreto-Lei nº
329º-A/95, de 12 de Dezembro):
'Artigo 1484º-B Suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais
1. O interessado que pretenda a destituição judicial de órgãos sociais, ou de representantes comuns de contitulares de participação social, nos casos em que a lei o admite, indicará no requerimento os factos que justificam o pedido.
2. Se for requerida a suspensão do cargo, o juiz decidirá imediatamente o pedido de suspensão, após realização das diligências necessárias.
3. O requerido é citado para contestar, devendo o juiz ouvir, sempre que possível, os restantes sócios ou os administradores da sociedade.
4. ...
5. ...'
Objecto do presente recurso é, por conseguinte, a norma do nº 2 do artigo 1484º-B do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de possibilitar que, numa sociedade com dois sócios, possa um deles requerer a suspensão do outro do cargo de gerente, e sem a prévia audição deste último. O recorrente sustenta, quer quanto ao primeiro aspecto, quer quanto ao segundo, que a norma viola o princípio do contraditório, tutelado pelos artigos 3º, 202º e 205º da Constituição.
5. Pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 329º-A/95, de 12 de Dezembro, foi aditado ao Código de Processo Civil o artigo 1484º-B, que regula um processo especial destinado, para o que agora releva, à 'destituição judicial de titulares de
órgãos sociais (...)'. Do nº 2 deste preceito prevê-se a possibilidade de requerer a imediata
'suspensão do cargo', suspensão essa que, 'após a realização das diligências necessárias', pode ser decretada sem prévia audição do requerido; com efeito, este só é 'citado para contestar' depois da decisão do pedido de suspensão (nº
3). Tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, são-lhe aplicáveis, para além das regras constantes do próprio artigo 1484º-B, as que resultam dos artigos 1409º e seguintes do Código de Processo Civil. Assim, e em síntese, verifica-se, apenas para o que agora interessa, que as provas devem ser oferecidas logo nos articulados (nº 1 do artigo 303º, aplicável por remissão do nº 1 do artigo 1409º); daqui decorre que as provas que o requerente pretenda utilizar para fundamentar o pedido de suspensão imediata hão-de ser oferecidas no requerimento inicial e apreciadas pelo tribunal quando o decide, antes de citar o requerido (nº 2 do artigo 1484º-B). Admitindo que é decretada a suspensão, o processo segue para julgamento do objecto do processo, ou seja, do pedido de destituição. O requerido é citado para se defender; se vier contestar, há-de oferecer ou requerer simultaneamente as provas (nºs 1 e 2 do citado artigo 303º); seguidamente, realiza-se a produção de prova (com a particularidade de, 'se for possível', se ouvir 'os restantes sócios ou os administradores da sociedade', como resulta do nº 3 do artigo
1484º-B), é julgada a matéria de facto (nº 5 do artigo 304º) e proferida a sentença, para cuja emissão é fixado o prazo de 15 dias (artigo 1409º, nº 2). Com a sentença (com o seu trânsito em julgado), desaparece a suspensão, evidentemente provisória e dependente da solução dada ao pedido de destituição. Se a destituição for decretada, não faz naturalmente sentido a sua manutenção; se não for, por se verificar não ser fundado o correspondente pedido, também caduca a suspensão, pois se revelou não existir motivo para impedir o titular visado de exercer o seu cargo.
É, pois, manifesto que esta possibilidade de ser determinada a suspensão do requerido, imediatamente e sem a sua audição prévia, com base numa prova não contraditada e simplificada, que não dispensa a prova posteriormente produzida, revela a inclusão, na tramitação deste processo especial, de uma providência cautelar não autonomizada, destinada a garantir a eficácia prática da destituição que se admite venha a ser decretada na sentença. É o que a doutrina, como se sabe, tem qualificado de medida cautelar antecipatória – pois que antecipa, provisoriamente, o conteúdo da sentença que hipoteticamente virá a ser proferida, desaparecendo com ela –, em terminologia hoje recebida na lei (cfr. nº 1 do artigo 381º do Código de Processo Civil). Esta função obviamente cautelar da suspensão (provisória) do titular justifica, assim, que a mesma seja decidida sem prévia audiência do requerido – tal como acontece, necessariamente, em certos procedimentos cautelares e pode, aliás, suceder relativamente à generalidade dos outros (cfr. nº 1 do artigo 385º do Código de Processo Civil), se a lei não afastar especificamente essa possibilidade. No fundo, o que se prevê no âmbito do processo especial de que nos ocupamos é que o contraditório sobre o pedido de suspensão seja diferido para momento posterior à sua decisão, de forma a garantir-se a eficácia da sentença que vier a julgar a destituição, tal como sucede quanto às providências cautelares previstas nos artigos 381º e seguintes do Código de Processo Civil.
6. O recorrente sustenta, como se viu, que viola o princípio do contraditório a possibilidade de ser utilizado o processo previsto no artigo 1484º-B do Código de Processo Civil numa sociedade com apenas dois sócios. Esta acusação é, porém, manifestamente infundada, não se encontrando, aliás, qualquer motivo que a suporte. Note-se que essa utilização, no caso, tinha sido apontada pelo recorrente como geradora de erro na forma do processo, com o fundamento de que, quando a destituição é pedida por um dos (dois) sócios contra o outro, deve seguir-se o processo comum (cfr., por exemplo, fls. 36 ou 38), apenas valendo o processo especial em apreciação para acções que corram entre a sociedade e o sócio.
7. Mas o recorrente sustenta igualmente que infringe o princípio constitucional do contraditório em Processo Civil a norma que admite que a o pedido de suspensão seja deferido sem prévia audiência do requerido; e, como se pode ler nas alegações, considera que as regras aplicáveis ao processo de destituição criam para o requerido (que tiver sido suspenso) uma situação mais gravosa do que aquela em que se encontraria se tivesse sido decretada uma providência cautelar, nos termos gerais. Com efeito, o recorrente afirma, nas referidas alegações, que, nas providências cautelares (entenda-se, nas que são reguladas nos artigos 381º e seguintes do Código de Processo Civil), só nos casos do arresto e da restituição provisória da posse se admite uma 'excepção' ao princípio do contraditório; que, 'mesmo nestes casos, o requerido (...) tem ao seu dispor um mecanismo de igual celeridade que pode repor a legalidade se ela tiver sido ofendida – vide artº
388º C.P.C.'; que 'as decisões proferidas em tais providências são necessariamente provisórias, existem mecanismos de reparação, existem medidas de protecção (como caducidade das providências)'; que 'nas referidas providências o requerente está obrigado a indicar os meios de prova', não existindo semelhante obrigação no âmbito do processo previsto no artigo 1484º-B, o que permite, 'por absurdo: mesmo sem indicação de prova pode o Tribunal proceder «à realização das diligências necessárias»'; que 'não estão previstos prazos de caducidade', nem
'prazos para ser proferida decisão definitiva'. Estas observações não têm fundamento, como já resulta da descrição atrás feita da tramitação do processo de que aqui se trata.
8. O Tribunal Constitucional já se pronunciou inúmeras vezes sobre as exigências decorrentes da protecção constitucional do princípio do contraditório no âmbito do Processo Civil, princípio que considera decorrente do princípio do Estado de Direito e da garantia de acesso à justiça e aos tribunais, consagrados, respectivamente, nos artigos 2º e 20º da Constituição (cfr., a título de exemplo, os acórdãos nºs 249/97 ou 259/00, publicados no Diário da República, II Série, de 17 de Maio de 1997 e de 7 de Novembro de 2000, respectivamente). Escreveu-se, com efeito, no citado acórdão nº 249/97:
'O princípio do contraditório (audiatur et altera pars), enquanto princípio reitor do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de 'deduzir as suas razões (de facto e de direito)', de 'oferecer as suas provas', de 'controlar as provas do adversário' e de 'discretear sobre o valor e resultados de umas e outras' (cf. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, I Coimbra, 1956, página 364). Tal princípio só está constitucionalmente consagrado, de forma expressa, para o processo criminal (cf. artigo 32º, nº.5, da Constituição). Ele vale, no entanto, também para o processo civil, como exigência que é do princípio do Estado de Direito, que - insiste-se - reclama igualmente que, no processo, as partes sejam tratadas com igualdade (princípio da igualdade de armas). De facto, também este processo tem que ser, como se disse, um due process of law, um processo equitativo e leal. E isso exige, não apenas um juiz independente e imparcial - um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência - como também que as partes sejam colocadas 'em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida' (cf. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., página 365).' E, no referido acórdão nº 259/00, o Tribunal Constitucional observou que ' (...) Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que 'a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'. Em particular, o Tribunal Constitucional já teve a ocasião de afirmar que não violam tal princípio normas que, no domínio das providências cautelares, dispensam, por razões de garantia da eficácia da decisão a proferir na acção principal, a audição do requerido antes de ser decretada a medida solicitada
(cfr., nomeadamente, os acórdãos nºs 739/98 e 598/99, publicados no Diário da República, II Série, de 8 de Março de 1999 e de 20 de Março de 2000 ou nº
163/01, não publicado). Mas, mesmo fora deste domínio, o Tribunal Constitucional já considerou igualmente não violadoras desse princípio normas que igualmente diferem o contraditório, seja por estarem em causa decisões meramente provisórias, seja por razões de celeridade e de eficácia (cfr., por exemplo, os acórdãos 162/00,
259/00 ou 522/00, publicados no Diário da República, II Série, de 10 de Outubro de 2000, 7 de Novembro de 2000 e 31 de Janeiro de 2001).
9. Ora, no que respeita à norma que constitui o objecto do presente recurso, vale plenamente a fundamentação do já citado acórdão nº 598/99 para o julgamento de não inconstitucionalidade da norma que proíbe a audição prévia do requerido no caso da providência de restituição provisória da posse:
'É sabido que o princípio do contraditório é um dos princípios fundamentais do Processo Civil, e que tem tutela constitucional. É uma exigência clara do princípio da igualdade das partes, por sua vez manifestação do princípio da igualdade perante a lei e do próprio Estado de Direito. Isso não significa, porém, que não existam situações em que ele tem de ceder face à necessidade de eficácia de determinadas medidas judiciais, inoperantes se precedidas de audiência da parte contra quem são requeridas. É o que em geral, sucede com a justiça cautelar (cfr., nomeadamente, o acórdão nº 739/98, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Março de 1999), onde se integra a providência da restituição provisória da posse, cuja constitucionalidade não se vê que possa ser posta em crise, salvo se for manifestamente desproporcionado o sacrifício do contraditório. Não é, porém, o caso, pois que a restituição da posse só é ordenada se o tribunal, julgada a prova admissível (oferecida pelo requerente ou ordenada pelo juiz, oficiosamente), concluir pela existência de esbulho violento. Não são, pois, inconstitucionais as normas impugnadas pelo recorrente.' Também aqui, repita-se, ocorre o perigo de ineficácia se o requerido for ouvido antes de decretada a sua suspensão; também aqui se não prevê um sacrifício desproporcionado do contraditório, até porque o processo de destituição tem uma tramitação simplificada e célere, podendo o requerido contestar logo após a decisão sobre a suspensão; e também aqui se verifica que a suspensão só pode ser deferida se a prova produzida para o efeito a justificar. Não ocorre, pois, a inconstitucionalidade por violação do princípio do contraditório que o recorrente aponta à norma impugnada. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão de constitucionalidade. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 14 de Março de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida