Imprimir acórdão
Processo n.º 168/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, nºs. 3 e 4, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão sumária n.º 209/2001, que, com fundamento em inutilidade decorrente da não aplicação, pela decisão recorrida, das normas e interpretações normativas cuja inconstitucionalidade se pretendia ver apreciada, não conheceu do objecto do recurso.
A reclamante pede, a final, seja admitido o recurso, invocando, para tanto, que ocorreu aplicação implícita das normas e interpretações sindicadas, pois que, além do mais, suscitou as questões de inconstitucionalidade a elas atinentes em termos processuais que, por adequados, obrigavam o Tribunal recorrido a delas conhecer, equivalendo o não conhecimento, em tais circunstâncias, a aplicação implícita das normas arguidas de inconstitucionalidade, de acordo com a jurisprudência que, sobre a matéria, o próprio Tribunal Constitucional tem, em constância, produzido; por outro lado, a decisão sumária, ao interpretar o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos termos restritivos e ora contestados como o fez, ignorando tal aplicação normativa implícita, violou o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva e a garantia de acesso aos Tribunais (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa).
A recorrida, notificada para o efeito, não se pronunciou.
2. Cumpre apreciar e decidir.
2.1. A ora reclamante interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, quer do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22 de Setembro de 2009, que negou provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal de 1ª instância – que, por sua vez, havia julgado improcedente, por extemporaneidade, a acção de impugnação por si deduzida contra a Câmara Municipal da Covilhã –, quer do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Dezembro de 2010, que, em sede de recurso por oposição de julgados, o confirmou.
Porém, e como é sabido, um dos pressupostos processuais de que depende o prosseguimento do recurso, em tal modalidade, é o do carácter definitivo da decisão recorrida (artigo 70.º, n.º 2, da LTC).
Ora, se é certo que a parte, no exercício do ónus legal de exaustão dos recursos ordinários, não está obrigada a accionar contra dada decisão judicial os recursos especificamente destinados a uniformizar a jurisprudência, podendo, uma vez exauridas as restantes vias de recurso ordinário, dela logo interpor recurso de constitucionalidade (citado artigo 70.º, n.º 2, in fine, da LTC), a verdade é que, optando pela interposição do recurso especificamente destinado à uniformização de jurisprudência, que venha a ser admitido e objecto de conhecimento, apenas pode recorrer da decisão que, em tal sede, venha a ser proferida pelo Tribunal a quem compete, em última instância, a sua apreciação, por representar, ao contrário da decisão recorrida, a última palavra decisória proferida na respectiva ordem jurisdicional, assumindo, assim, o carácter de decisão definitiva e final que aquela, ainda que confirmada, deixou de ter.
Assim sendo, tendo a ora reclamante interposto recurso, com fundamento em oposição de julgados, do referido Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, que veio a ser julgado improcedente por Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, apenas deste último, por constituir a última e definitiva decisão tomada pelo Tribunal com competência para tal, poderia ter interposto o presente recurso de constitucionalidade.
Por isso, não assumindo o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, desde logo, as características processuais de definitividade de que depende a respectiva interposição do recurso de constitucionalidade, nunca poderia o recurso dele interposto pela ora reclamante prosseguir, pelo que, quanto ao mesmo, não se justifica sequer reapreciar as razões, ora postas em crise, por que sumariamente se decidiu pelo seu não conhecimento.
2.2. Posto isto, cumpre apreciar se é de prosseguir, ou não, para apreciação de mérito, o recurso de constitucionalidade interposto do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Dezembro de 2010, ou seja, se, como pretende a reclamante, foram por este aplicadas, ainda que implicitamente, as normas e interpretações normativas que integram o respectivo objecto.
São as seguintes as questões de inconstitucionalidade que a reclamante, por via do presente incidente, insiste em ver apreciadas:
«a) Inconstitucionalidade formal do Regulamento Municipal de Taxas e Encargos Urbanísticos para o Município da Covilhã (doravante RMTEU), publicado no Diário da República, 2ª Série, n.º 48, de 26 de Fevereiro de 1988, ao abrigo das quais foi exigido à ora recorrente o pagamento dos tributos em causa, face às normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 2º, 9º, 18º, 103º, 112º/7 e 165º da CRP, pois não indica a respectiva lei habilitante (…);
b) Inconstitucionalidade das normas do RMTEU e do art. 16º/4 do DL 448/91, de 29 de Novembro, na redacção introduzida pela Lei n.º 25/92, de 31 de Agosto, face às normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 2º, 9º, 18º, 20º, 103º, 112º, 165º/1/i) e 266º da CRP, quando interpretados e aplicados com a dimensão e sentido normativos que permitem que os elementos essenciais do tributo em causa – taxa, incidência objectiva e subjectiva – possam ser objecto de simples regulamento municipal (…);
c) Inconstitucionalidade dos arts. 204º/1/a) do CPPT e 286º/1/a) do CPT, face às normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 2º, 9º, 18º, 20º, 103º, 212º e 268º da CRP, quando interpretados e aplicados com a dimensão e sentido normativos que permitem qualificar o pagamento de tributos com espontâneo e voluntário, se esse pagamento constitui conditio sine qua non do exercício dos direitos pelo interessado, para efeitos de impedir ou precludir a subsequente invocação da nulidade dos respectivos actos de liquidação e cobrança (…).»
Argumenta, apoiando-se em jurisprudência constitucional, que, contrariamente ao sumariamente decidido, «sempre teria ocorrido aplicação implícita das normas em causa, pois o Tribunal Central Administrativo Sul e o Supremo Tribunal Administrativo podiam e deviam conhecer das questões de constitucionalidade, já que as mesmas foram expressamente suscitadas ao longo do presente processo, inscrevendo-se assim na sua esfera de competência vinculada (…)».
A reclamante parte, porém, do pressuposto, errado, de que é suficiente, para o efeito de viabilizar o conhecimento do objecto do recurso, o facto, cuja comprovação é agora irrelevante, de ter suscitado perante o Tribunal recorrido as questões de inconstitucionalidade cujo conhecimento de mérito reclama.
Não o é.
Na verdade, sendo pressuposto do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC a efectiva aplicação, pelo Tribunal recorrido, da norma oportunamente arguida de inconstitucional, o decisivo, sob esse ângulo normativo, é que a questão de inconstitucionalidade suscitada verse norma jurídica (ou interpretação normativa) aplicável ao caso concreto submetido a julgamento.
E, na aferição da aplicabilidade de dado enquadramento jurídico ao pleito sob apreciação jurisdicional, não releva o modo como a parte ou recorrente considera que o mesmo deveria ter sido resolvido ou decidido mas, determinantemente, a forma, insindicável nesta sede, como o Tribunal recorrido perspectivou juridicamente o caso sub judicio e efectivamente o decidiu.
Assim, bem pode a recorrente ter esgrimido contra as normas que alegadamente fundamentaram a prática do acto administrativo impugnado, argumentando a sua inconstitucionalidade, que pouca ou nenhuma valia processual daí lhe advém se as normas a que dirigiu a sua argumentação não chegaram a ser aplicadas pelo Tribunal recorrido, que se quedou na apreciação de questões adjectivas que, por prévias, prejudicaram a apreciação de mérito para cuja solução aquelas relevariam.
Afigura-se ser claramente o caso.
Com efeito, o Tribunal recorrido considerou, desde logo, intempestiva a pretensão impugnatória da ora reclamante, sustentando que a invocada nulidade das normas regulamentares em que se baseou o acto de liquidação impugnado, ainda que decorrente de inconstitucionalidade, não implicava a nulidade deste último mas a sua mera anulabilidade, pelo que, mostrando-se decorrido o prazo legal previsto para o efeito, era de rejeitar, por extemporânea, a sua impugnação pela ora reclamante.
Na óptica jurídica do Tribunal recorrido, era, pois, irrelevante a confirmação dos vícios, designadamente os de inconstitucionalidade, assacados pela impugnante às normas que fundamentaram a prática do acto administrativo impugnado, pois que não estavam, desde logo, verificados os pressupostos processuais (tempestividade) de cuja verificação dependia uma tal apreciação de mérito.
E o entendimento jurídico que esteve subjacente a uma tal decisão de forma, que a baseou, foi precisamente esse, a de que uma coisa é o vício da norma, outra, bem diferente, o vício do acto, sendo que aquele, ainda que originado por razões de inconstitucionalidade, não projecta idênticos efeitos de invalidação no acto ao abrigo da qual foi praticado, revolvendo-se a nulidade da norma em nulidade do acto que a teve por fundamento.
E, tendo sido essa a ratio normativa determinante do decidido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, a ora reclamante, no recurso para o Supremo Tribunal Administrativo em nenhum momento sindicou a sua constitucionalidade, insistindo, ao invés, na enunciação dos vícios que, no seu entender, determinavam a nulidade do acto liquidatário impugnado, entre eles os que decorrem da alegada inconstitucionalidade das normas regulamentares que o basearam.
Ora, ao focalizar parte substancial das questões de inconstitucionalidade então alegadamente suscitadas no núcleo normativo formado pelas normas regulamentares ao abrigo das quais foi o acto impugnado praticado e não no entendimento normativo que a propósito da questão prévia da tempestividade foi o efectivamente perfilhado pelo acórdão recorrido, desonerou o Supremo Tribunal Administrativo da obrigação processual de sobre elas se pronunciar, pois que não era esse o enfoque normativo relevante na apreciação de uma tal questão prévia.
Por isso, se é verdade que o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre as questões de inconstitucionalidade do Regulamento Municipal de Taxas e Encargos Urbanístico para o Município da Covilhã (RMTEU), ora integradas nas alíneas a) e b) do requerimento de interposição de recurso, não é verdade que o devesse ter feito, pois que, ainda que oportunamente suscitadas, a resolução do caso sub judicio não implicava para o Tribunal recorrido, como não implicou, a aplicação de um tal quadro normativo regulamentar, sendo, pois, irrelevante e inútil a confirmação ou não das suspeitas de inconstitucionalidade que a recorrente sobre ele lançou quando, a montante, perdeu a impugnante, por intempestividade, o direito de o discutir em juízo, segundo considerou, em juízo cuja bondade é insindicável nesta sede, o Tribunal recorrido.
Do mesmo modo, não integra o âmbito material de exercício da invocada «competência vinculada» de fiscalização da constitucionalidade o conhecimento, pelo Tribunal recorrido, da questão de inconstitucionalidade dos «arts. 204.º/1/a) do CPPT e 286.º/1/a) do CPT, face às normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 2.º, 9.º, 18.º, 20.º, 103.º, 212.º e 268.º da CRP, quando interpretados e aplicados com a dimensão e sentido normativos que permitem qualificar o pagamento de tributos como espontâneo e voluntário, se esse pagamento constitui conditio sine qua non do exercício dos direitos pelo interessado, para efeitos de impedir ou precludir a subsequente invocação da nulidade dos respectivos actos de liquidação e cobrança (…).»
É que, como considerou a decisão sumária ora em reclamação, «não foi pela circunstância de se julgar o pagamento de tributos acto voluntário e espontâneo que se considerou precludida a possibilidade de impugnar a validade do respectivo acto de liquidação, mas, a montante, o facto de se considerar que os vícios invocados como causa de pedir, entres eles o decorrente da alegada inconstitucionalidade do RMTEU, não determinavam a nulidade do acto impugnado mas a sua simples anulabilidade, apenas invocável no prazo, já decorrido, legalmente previsto, sendo a afirmação de que «tendo havido pagamento voluntário, a impugnação dos actos referidos apenas poderia ter lugar de acordo com o regime legal de impugnação de actos anuláveis», aliás exclusivamente efectuada pelo Acórdão do TCA Sul, em citação de outro acórdão, mera concretização do regime de anulabilidade considerado aplicável, nos casos em que, como o presente, houve pagamento voluntário, sendo que, havendo lugar a cobrança coerciva, considerou-se que um tal vício apenas poderia ser invocado até ao termo do prazo de oposição (cf. ponto III do citado Acórdão).
Ora, sendo, de facto, este um «aspecto lateral do regime de anulabilidade considerado aplicável», pontualmente enunciado pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul em termos que não se enquadram no discurso argumentativo essencial usado para justificar o não conhecimento, por intempestivo, do mérito da impugnação deduzida pela ora reclamante, também não estava o Supremo Tribunal Administrativo obrigado a conhecer de questão de inconstitucionalidade que a seu propósito a recorrente suscitasse.
Aliás, o Supremo Tribunal Administrativo, em nenhum momento da enunciação das razões fundantes do decidido, aflorou sequer tal aspecto específico de regime, construindo sobre o mesmo qualquer interpretação normativa que, por idêntica ou substancialmente convergente com aquela sobre que recaíra a arguição de inconstitucionalidade, o obrigasse a aferir previamente, por relevante, da sua questionada conformação constitucional.
Por tais razões, afigura-se que, nem mesmo relativamente à questão de inconstitucionalidade equacionada na alínea c) do requerimento de interposição do recurso, está o presente recurso em condições processuais de prosseguir para apreciação de mérito.
É que, em conclusão, é sempre a utilidade do recurso de constitucionalidade que está em causa, pelo que, não tendo o Tribunal recorrido aplicado, expressa ou implicitamente, como fundamento jurídico do decidido, as normas e interpretações normativas que integram o respectivo objecto, ainda que oportunamente arguidas de inconstitucionalidade, nenhuma utilidade decorrerá da sua apreciação pelo Tribunal Constitucional para o efeito, a que um tal recurso está preordenado, de operar modificação de julgado.
2.3. E, sendo essa a razão de ser das normas que impõem, como condição processual do conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, a efectiva aplicação, pelo Tribunal recorrido, do respectivo conteúdo normativo, também não podem proceder os argumentos de inconstitucionalidade co-invocados como fundamento da reclamação ora em apreciação.
Invoca a reclamante, em síntese, neste particular, que o entendimento normativo subjacente à decisão sumária reclamada restringe intoleravelmente o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva e a garantia de acesso aos Tribunais (artigo 20.º da CRP), por representar uma interpretação restritiva do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, que amplia as exigências processuais legalmente estabelecidas e, desse modo, compromete a apreciação de mérito das legítimas pretensões de justiça substantiva dos cidadãos de que, por força de tais princípios constitucionais, aquelas são simples instrumento de realização.
Parte, contudo, também aqui, do pressuposto errado de que a decisão sumária não deu qualquer relevância processual à aplicação implícita das normas, objecto do recurso, excluindo-a, por interpretação restritiva, do âmbito de previsão do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
Ora, como acima demonstrado, nem uma coisa, nem outra.
Com efeito, e embora não conste da decisão sumária qualquer referência explícita sobre tal temática, dela não resulta qualquer tomada de posição interpretativa, muito menos de alcance restrititivo, sobre a questão de saber se a norma do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, ao impor, como condição do recurso de constitucionalidade, a aplicação da norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo, apenas contempla as hipóteses de aplicação expressa ou inclui também os casos em que a decisão recorrida, não a enunciando expressamente, nela funda a sua ratio decidendi.
Por outro lado, não tendo, no caso, ocorrido, pelas enunciadas razões, efectiva aplicação, nem implícita, das normas em causa, não era exigível qualquer apreciação sumária em sentido contrário, como pretende a reclamante, não equivalendo a omissão de expressa referência à ora invocada aplicação normativa implícita a desconsideração da sua relevância processual.
Finalmente, sendo o direito de acesso à justiça constitucional constitucionalmente modelado em termos que encontram nas normas adjectivas a sua tradução, só a aplicação destas permitirá respeitar as opções do poder constituinte sobre a matéria.
Ora, o recurso de constitucionalidade, atenta uma tal modelação fundamental, é um instrumento de modificação de julgado, pelo que só é legítimo à parte operá-lo quando o juízo de mérito a formular pelo Tribunal Constitucional verse questão de inconstitucionalidade relevante à decisão do pleito; não o sendo, como é o caso, é inútil a sua apreciação.
É, pois, de manter a decisão sumária que, com tal fundamento, não tomou conhecimento do objecto do recurso.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação deduzida, nos presentes autos, pela recorrente A..
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades conta.
Lisboa, 31 de Maio de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.