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Proc. nº 141/02 Acórdão nº 114/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Beja, F... requereu perante o Tribunal da Relação de Évora a recusa da Juíza de Círculo, Dra. A ..., nos termos do artigo 43º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Nesse pedido de recusa, o arguido F... invocou: que, no âmbito do processo de que resultou a sua condenação a dois anos e três meses de prisão
(acórdão de 12 de Junho de 2000), a Juíza Dra. A..., presidente do Tribunal Colectivo de Beja, determinou o desentranhamento da contestação e do requerimento para a produção da prova oferecida pelo requerente; que essa decisão foi revogada pelo Tribunal da Relação de Évora (acórdão de 11 de Julho de 2000); que a Juíza Dra. A ... é a mesma que designou as datas de 19, 21 e 23 de Março de 2001 para a repetição do julgamento (repetição que fora ordenado pelo Tribunal da Relação de Évora).
No requerimento que apresentou perante o Tribunal da Relação de
Évora, o requerente concluiu assim:
'[...]
6 – Nos termos do art. 43º, nº 1, bem como dos princípios extraídos do art. 40º, ambos do CPP e outrossim, do art. 32º, nº 1, da Const. Rep. P., deve a Exma. Juíza Dra. A ... ser recusada a intervir no novo julgamento, bem como os Exmos Juízes Adjuntos que participaram no julgamento de 12/6/2000 e que foi anulado.'
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 5 de Junho de 2001
(fls. 9 a 11 dos presentes autos de reclamação), não concedeu a requerida recusa, por considerar o pedido manifestamente infundado.
2. Inconformado, F... interpôs dois recursos, um para o Supremo Tribunal de Justiça (requerimento de fls. 14-22) e outro para o Tribunal Constitucional
(requerimento de fls. 23-25 destes autos).
No requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, pode ler-se:
'[...]
2º. Os fundamentos do pedido de recusa, então aduzidos, permanecem ainda hoje válidos, sem prejuízo do respeito que nos merecem as decisões desta Relação de
Évora, sendo certo que no pedido de recusa se suscitou a inconstitucionalidade do artº 40º, 43º nº 1 do CPP, face ao artº 32º nº 1 da Constituição.
[...]
4º. Suscitou-se no requerimento de recusa a inconstitucionalidade de um julgamento cujos juízes fossem os mesmos, ou alguns, dos que anteriormente haviam julgado o arguido e cuja decisão fora anulada por este Tribunal da Relação (ofensa do artº 32º nº 1 da CRP, face à interpretação que se desse ao artº 40º do CPP).
5º. No acórdão recorrido perfilha-se, afinal, uma posição contrária ao estatuído no artº 32º, nº 1 da CRP, nos artºs 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, recebida no Direito Interno por força do estatuído no artº 8º da Constituição e, ainda, no artº 16º da Lei Fundamental.
[...]
8º. [...] a interpretação dada por V. Excias., Venerandos Desembargadores, aos artºs 40º, 43º nº 1 e 2 do CPP, fere, inquestionavelmente, o artº 32º nº 1 da Constituição, 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que precipita a violação dos artºs 1º, 2º, 8º, 16º, e 204º da Constituição. Nestes termos, e considerando o estatuído no artº 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, concluímos:
1 - O douto acórdão recorrido por erro de interpretação dos artºs 40º e 43º nº 1 e 2 do CPP, viola os artºs 32º nº 1 da Constituição bem como os artºs 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que precipita a violação dos artºs
1º, 2º, 8º, 16º e 204º da Constituição.
2 - Na verdade, os Juízes que fizeram parte do Tribunal e que no âmbito do mesmo processo condenaram o recorrente, não podem, depois, vir a fazer parte do Tribunal que irá novamente julgá-lo pelos mesmos factos porque, entretanto, por força de um acórdão do Tribunal da Relação de Évora, foi anulado o anterior julgamento;
3 - Admitir-se o contrário equivale a dizer que a mesma formação de juízes (ou alguns deles) podem, agora num segundo julgamento, no âmbito do mesmo processo, e face à mesma pronúncia, «rever» a posição que anteriormente haviam tomado;
4 - Não se assegura, assim, o princípio da imparcialidade nem se garantem, em consequência, os direitos de defesa do arguido, já que, em virtude de um juízo anterior o julgador está pré-determinado a pronunciar juízo equivalente.'
O Desembargador Relator, no Tribunal da Relação de Évora, por despacho de 15 de Janeiro de 2002 (fls. 26-28 destes autos), não admitiu o recurso, invocando as seguintes razões:
'[...] Compulsados os autos e analisado o conteúdo do requerimento onde o arguido diz que alegou a questão da inconstitucionalidade dos artºs 40º e 43º, nº 1 do C.P.P., não vislumbramos que tal tenha acontecido. Bem pelo contrário, no referido nº 1 do artº 43º do C.P.P. se apoiou para apresentar o requerimento (veja-se a sua parte introdutória) e deste artigo, assim como do focado artº 40º daquele mesmo Código se serviu para estribar o seu pedido de recusa (veja-se o nº 6 das conclusões de tal requerimento), como ele próprio reconhece (se dúvidas houvesse sobre esta questão) no nº 1 do requerimento de interposição do recurso (fls. 72). De resto, seria, no mínimo, contraditório que se apoiasse em preceitos legais para a prática de um acto processual invocando simultaneamente a inconstitucionalidade dos preceitos que lhe permitiam tal prática. Neste quadro, é manifesto que não estamos perante situação enquadrável na alínea b) do nº 1 do artº 70º, não havendo lugar ao cumprimento do estatuído no nº 5 do artº 75º-A, por não se verificar a omissão nele mencionada, falecendo, consequentemente, legitimidade ao arguido para interpor recurso, face ao estatuído no nº 2 do artº 72º, o que acarreta o indeferimento da sua pretensão de recorrer, como resulta do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 76º, todos os preceitos da Lei 28/82 de 15/XI.
[...].'
3. F... reclamou do despacho que não admitiu o recurso (requerimento de fls. 2-5), apresentando as seguintes conclusões:
'1 - O ora reclamante, quando, nos termos do art. 43º, nº1, do C.P.P.. requereu ao Tribunal da Relação de Évora a recusa da Meritíssima Juíza de Círculo de Beja, Dra. A ... [...], suscitou, nesse pedido, a inconstitucionalidade da participação dessa mesma formação no julgamento a repetir por ofensa ao art. 32º nº 1 da Constituição por erro de interpretação dos artigos 40º e 43º do C.P.P., face ao normativo constitucional.
2 - Porém, o douto Tribunal da Relação de Évora, por Acórdão de 5/06/2001, sufragou o entendimento segundo o qual a intervenção da Meritíssima Juíza recusanda e seus Pares, que participaram no julgamento anulado pela mesma Relação não ofende o estatuído nos artigos 40º e 43º do C.P. Penal e, em consequência, o art. 32º nº 1 da Constituição.
3 - Por dissentir desse aresto de 5/06/2001, o ora reclamante interpôs recurso para este Alto Tribunal Constitucional, onde defende que o douto Acórdão recorrido, por erro de interpretação dos artigos 40º e 43º nº 1 e nº 2 do C.P. Penal, viola o artº 32º nº1 da Constituição e os artigos 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que também precipita a violação dos artigos
1º, 2º, 8º, 16º e 204º da Constituição.
4 - Pelo douto despacho de 15/01/2002, de que agora se reclama, o Tribunal da Relação de Évora indeferiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, por ilegitimidade do ora reclamante, por ter entendido que o reclamante não havia suscitado a inconstitucionalidade dos artigos 40º e 43º do C.P. Penal, na interpretação que lhe foi dada por essa formação, face ao artº 32º, nº 1 da CRP.
5 - Dissentimos, porém, deste despacho porquanto, como se viu supra, no requerimento a pedir a recusa dos Ilustres Magistrados da 1ª Instância se afirmou que a sua participação no novo julgamento, precipitaria a inconstitucionalidade dos artigos 40º e 43º por erro de interpretação, face ao artº 32º nº 1 da Lei Fundamental.
[...].'
O Desembargador Relator, no Tribunal da Relação de Évora, manteve o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade (fls. 6 destes autos).
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
4. O Tribunal da Relação de Évora não admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante, por considerar que o recorrente não suscitou a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado e, por isso, não tem legitimidade para interpor o recurso, face ao estatuído no artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a alínea invocada no requerimento de interposição do recurso – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou de uma determinada interpretação da norma) que pretende que este Tribunal aprecie e que tal norma (ou essa interpretação da norma) seja aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Nos termos do artigo 72º, nº 2, da mesma Lei, o recurso previsto na mencionada alínea b) só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
5. No caso dos autos, o ora reclamante não suscitou 'de modo processualmente adequado' qualquer questão de inconstitucionalidade normativa a propósito das normas legais que regulam o pedido de recusa do juiz.
Na verdade, no pedido de recusa apresentado perante o tribunal recorrido (o Tribunal da Relação de Évora) – a peça processual em que o ora reclamante afirma ter suscitado a questão de constitucionalidade –, o então requerente exprimiu-se do seguinte modo:
'[...]
6 – Nos termos do art. 43º, nº 1, bem como dos princípios extraídos do art. 40º, ambos do CPP e outrossim, do art. 32º, nº 1, da Const. Rep. P., deve a Exma. Juíza Dra. A ... ser recusada a intervir no novo julgamento, bem como os Exmos Juízes Adjuntos que participaram no julgamento de 12/6/2000 e que foi anulado.'
Na expressão utilizada não pode ver-se a invocação de qualquer questão de constitucionalidade reportada a qualquer norma legal aplicável ao pedido apresentado perante o Tribunal da Relação de Évora.
6. Assim, não tendo sido suscitada pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, conclui-se que não se encontram verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 8 de Março de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida