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Processo n.º 83/11
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Notificado do Acórdão n.º 175/2011, apresentou o recorrente o seguinte requerimento:
A., recorrente no processo acima referenciado, em que é recorrida B., S.A., vem requerer, ao abrigo do disposto nos arts. 669º., nº 2 e 716º do C.P.C., a reforma do acórdão proferido em 29/03/2011, nos termos e com os fundamentos seguintes:
I
1.- No nº 7 do requerimento em que arguiu a nulidade e pediu a reforma do acórdão do S.T.J. proferido em 9/11/2010, o recorrente alegou o seguinte:
«Mas não são apenas as disposições da lei ordinária que impõem o deferimento da pretensão do recorrente.
Nos termos do art. 202º, n.º 2 da Constituição, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Norma que se harmoniza com o princípio da tutela jurisdicional efectiva expresso no já citado art. 20º da lei fundamental.
Sendo indubitável, como é, que os compradores de fracções autónomas de edifício construído pelo vendedor têm direito a exigir deste a reparação dos defeitos das partes comuns, a interpretação dos arts. 661.º e 664.º do C.P. C. no sentido de que o tribunal não pode corrigir o pedido de indemnização pecuniária correspondente ao custo dos trabalhos de reparação dos defeitos, formulado na petição inicial, e condenar a ré a efectuar essa reparação, seria manifestamente inconstitucional por não assegurar, mas, pelo contrário, impedir a defesa daquele direito.
Tal interpretação conduziria, não à administração da justiça que, nos termos do mesmo art. 202.º, compete aos tribunais, mas sim à prática de clamorosa injustiça. »
2. - O S.T.J., por acórdão de 7/12/2010 – que é parte integrante do anterior – indeferiu aquele requerimento.
Nesse acórdão o S.T.J. pronunciou-se, a folhas 6 e segs. – fls. e segs dos autos – sobre as questões de inconstitucionalidade suscitadas no requerimento do A. e recorrente.
Designadamente, quanto à inconstitucionalidade da interpretação dos arts. 661.º e 664º do C.P.C. no sentido de que o tribunal não pode corrigir o pedido de indemnização pecuniária correspondente ao custo dos trabalhos de reparação dos defeitos e condenar a ré a efectuar essa reparação, o S.T.J., depois de referir os princípios da “preclusão” e da “auto-responsabilidade das partes”, afirmou o seguinte:
«É precisamente nesta medida que se compreende que ao A. cabe, nos articulados respectivos, indicar o pedido e a causa de pedir e, eventualmente, alterá-los e já não num outro momento processual fora daqueles “timings”, precisamente por respeito à regra da preclusão referida, certo que, logo após dados como provados os factos aí vertidos, seja por via da não impugnação, seja por mor da instrução, o juiz não poderá deixar de os considerar, tudo de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 664º e 264º do Código do Processo Civil.
Referimo-nos, como é evidente, aos chamados factos essenciais e não aos factos instrumentais: só em relação àqueles é que continua válida a máxima da mihi factum, dabo tibi ius.
Percorrendo todo o iter da presente demanda, não vislumbramos absolutamente nada que haja beliscado o direito do A/Recorrente/Requerente nos seus elementares direito de acesso à justiça.»
3.– É assim claro e indubitável que o S.T.J. rejeitou – em termos, aliás, contraditórios, pois o princípio da mihi factum, dabo tibi ius conduz necessariamente a conclusão contrária à que perfilhou – a inconstitucionalidade, invocada pelo A., da interpretação dos arts. 661º e 664º do C.P.C. no sentido de que essas normas não permitem ao tribunal corrigir o pedido de indemnização pecuniário formulado na petição inicial e condenar a ré a indemnizar mediante a reparação dos defeitos das partes comuns do prédio.
4. – O A. recorreu para o Tribunal Constitucional, por requerimento reproduzido no n.º 1 do acórdão cuja reforma requer e que daqui em diante passamos a designar apenas por Acórdão.
Desse requerimento transcreve-se o seguinte passo:
«1. - Mais alegou o recorrente (no pedido de reforma do acórdão do S. Ti) que o disposto no art. 202º n.º 2 da Constituição e o princípio da tutela jurisdicional efectiva expresso no art. 20.º da mesma Lei impõem essa condenação, pelo que a interpretação daqueles artigos do C.P. C. no sentido de que o tribunal não pode corrigir o pedido de indemnização pecuniária correspondente ao custo dos trabalhos de reparação dos defeitos, formulado na petição inicial, e condenar a Ré a efectuar essa reparação, é manifestamente inconstitucional.
E em seguida, o A., no mesmo requerimento, alegou:
2. - Pronunciando-se sobre a questão, o acórdão que recaiu sobre o aludido requerimento afirmou que ao A. cabe, nos articulados respectivos, indicar o pedido e a causa de pedir e eventualmente alterá-los e entendeu que o tribunal decidiu de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 664º e 264º do Código do Processo Civil, pelo que indeferiu o requerido.
Interpretando o art. 664º com o sentido de que este não permite a condenação da Ré a reparar os defeitos das partes comuns do edifício por ela construído por na petição inicial o A. ter pedido a condenação da R. a pagar o custo da reparação desses defeitos, o acórdão fez uma interpretação daquela norma que, além de contrária à jurisprudência do STJ, é inconstitucional, por violadora do princípio e das normas constitucionais atrás citados, nos quais está ínsito ou subjacente o princípio (citado, contraditoriamente, pelo acórdão) da mihi factum, dabo tibi ius princípio fundamental da função jurisdicional que, como determina o art. 202.º da Constituição, compete aos tribunais.
3. – A inconstitucionalidade dessa interpretação foi expressamente invocada, como já se referiu, no requerimento em que o recorrente arguiu a nulidade por omissão de pronúncia e pediu a reforma do acórdão recorrido.»
5.- O A. reclamou para a conferência da decisão sumária que não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, reclamação integralmente transcrita no Acórdão.
Na primeira parte dessa reclamação o A. expôs as razões pelas quais discorda da afirmação da decisão sumária de que o acórdão de 23/11/2010, “limitando-se a indeferir a reclamação formulada contra o anterior aresto, nada inova na ordem jurídica, sendo, para este efeito, irrecorrível”.
Na segunda parte, o A. depois de referir nos nºs 17 e 18, a inconstitucionalidade de eventual interpretação, em sentido contrário ao por ele defendido, de normas da lei processual relativas ao dever de fundamentação das decisões judiciais, afirmou no nº
“A inconstitucionalidade que é objecto do presente recurso não é essa, é sim a da interpretação feita pelo acórdão recorrido dos arts. 661 , n.º 1 e 664º do C.P.C., mencionados no requerimento de interposição do recurso”.
E no nº 24 da mesma reclamação acrescentou:
“Importa ainda referir que a questão de inconstitucionalidade suscitada no requerimento apresentado em 23/11/2010 – mais precisamente, no nº 7 desse requerimento – tem repercussão directa no julgamento do recurso interposto para o STJ, dado que, se for julgada procedente, implicará necessariamente a reformulação do acórdão proferido por aquele tribunal”.
II
6.- No início da sua parte decisória o Acórdão, incompreensivelmente, sem apresentar qualquer explicação ou justificação, transcreveu apenas, e em parte, o n.º 5 do requerimento em que o A. arguiu a nulidade e pediu a reforma do acórdão do S.T.J. que negou provimento ao recurso de revista.
É bem sabido que não é de boa norma transcrever, sem mais, parte de uma peça processual, nomeadamente de um requerimento, pelo risco de deturpação do sentido e alcance dessa peça que tal procedimento comporta.
Risco que as considerações do Acórdão que se seguiram à referida transcrição bem evidenciam.
7.– Com efeito, no n.º 5 do requerimento atrás citado o A. alegou que seria inconstitucional a eventual interpretação dos arts. 660º., n.º 2 e 670º., n.º 1 do C.P.C. no sentido de que, em casos como os dos autos, essas normas obstariam ao conhecimento pelo S.T.J. da questão da rectificação do pedido formulado na petição inicial.
Mas não é essa a inconstitucionalidade que motivou o recurso para o tribunal constitucional e que este deve apreciar e julgar.
No n.º 7 daquele requerimento, número integralmente reproduzido no início do presente e ao qual o Acórdão não faz referência alguma, o A. alegou que seria manifestamente inconstitucional interpretar os arts. 661º e 664º do C.P.C. no sentido de que o tribunal não pode corrigir o pedido de indemnização pecuniária correspondente ao custo dos trabalhos de reparação dos defeitos e condenar a ré a efectuar essa reparação, por tal interpretação ofender o disposto no art. 202º., n.º 2 da Constituição e o princípio da tutela jurisdicional efectiva expressa no art. 20º da mesma lei.
E foi essa inconstitucionalidade – repete-se, a da interpretação dos arts. 661º e 664º do C.P.C. no sentido de que o tribunal não pode efectuar a mencionada rectificação do pedido – que o A. invocou no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
E foi igualmente a mesma inconstitucionalidade e os mesmos artigos do C.P.C. que o A. mencionou na reclamação da decisão sumária de não conhecimento do recurso (v. nºs 19 e 24 dessa reclamação).
8. - São, pois, manifestamente falsas e inteiramente contrárias à verdade evidenciada pelas peças processuais citadas as seguintes afirmações do acórdão:
«Na verdade, o vício que o reclamante apontou ao acórdão proferido no Supremo Tribunal de Justiça reporta-se à substância da decisão, ou seja, à actividade jurisdicional do tribunal, e não às normas que este aplicou para decidir; tal vício resultaria da aplicação incorrecta de preceitos do Código do Processo Civil orientadoras da actividade do Juiz, como os previstos no art. 660.ºnº2 e no art. 676º., n.º 1 daquele diploma. E assim se explica que o reclamante só tenha dado conta da “inconstitucionalidade” depois de, conforme afirma, a decisão ter sido proferida; os vícios apontados não decorrem da aplicação de uma norma inconstitucional, mas das opções jurisdicionais adoptadas.»
Não é verdade que o vício de inconstitucionalidade apontado pelo A. ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não se reporte às normas que este aplicou para decidir, pois a inconstitucionalidade invocada é a da interpretação dos arts. 661º. e 664º do C.P.C. no sentido de que estas normas não permitem corrigir o pedido nos termos referidos nas alegações do recurso de revista e no requerimento de reforma do acórdão do S.T.J., sendo certo que o acórdão que julgou esse requerimento – que é parte integrante do acórdão anterior – se pronunciou sobre tal questão, tendo entendido que, não corrigindo o pedido nos termos indicados pelo A., fez correcta e constitucional interpretação e aplicação do citado art. 664º.
Como também não é sequer verdade que o A. tenha apontado ao acórdão do S.T.J. o vício de aplicação incorrecta dos preceitos dos arts. 660.º., n.º 2 e 676.º, n.º 1 do C.P.C..
Como clara e inequivocamente consta do n.º 5 do requerimento em que arguiu a nulidade e pediu a reforma do acórdão do S.T.J., o A., prevenindo a hipótese de que o tribunal voltasse a não se pronunciar sobre a questão da rectificação do pedido suscitada nas alegações do recurso de revista e na alínea P) das respectivas conclusões por entender não se tratar de uma questão mas sim de um mero argumento, ou por entender tratar-se de questão nova da qual o Tribunal não podia conhecer, alegou que a eventual interpretação dos arts. 660.º., nº 2 e 676.º, n.º 1 do C.P.C. nesse sentido seria inconstitucional.
Porém, no acórdão que recaiu sobre tal requerimento, o S.T.J. efectivamente pronunciou-se sobre a referida questão, pelo que não incorreu na hipotética inconstitucionalidade alegada no n.º 5 do requerimento.
Não é, pois, verdade que o A. tenha acusado o acórdão do S.T.J. de tal vício.
Apenas admitiu, no requerimento que antecedeu esse acórdão, a hipótese de que o mesmo pudesse ocorrer, hipótese que não se verificou.
9. - É também manifestamente falsa e contrária à verdade evidenciada pelas peças processuais atrás citadas a seguinte afirmação do acórdão:
«Acresce que a identificação do objecto do recurso não coincide com a questão levantada na reclamação formulada contra o acórdão de 9 de Novembro, o reclamante denunciou a interpretação “inconstitucional” do art. 660.º, º2 do Código de Processo Civil (com o sentido de o Supremo Tribunal de Justiça não ter de pronunciar-se sobre uma questão por a sua decisão estar prejudicada pela solução dada a outras), assim como a do artigo 676.º, n.º 1 do mesmo Código (“com o sentido de que essa norma legal e esse princípio impedem o Supremo Tribunal de Justiça de conhecer a questão em causa por se tratar de questão nova”). Mas, no recurso de interposição do recurso, o objecto é delineado com referência aos artigos 661.º e 664º do citado diploma, conforme é aliás, reafirmado no ponto 19. da reclamação em análise.»
Como já referimos, no n.º 7 do requerimento em que arguiu a nulidade e pediu a reforma do acórdão do S.T.J. de 9/11/2010 o A. suscitou a questão da inconstitucionalidade da interpretação dos arts. 661º e 664º do C.P.C. no sentido de que o Tribunal não pode corrigir o pedido de indemnização pecuniária e condenar a ré em indemnização consistente na reparação dos defeitos.
E foi por o acórdão que julgou aquele requerimento ter incorrido nessa inconstitucionalidade que o A. recorreu para o Tribunal Constitucional, tendo, em obediência à lei, mencionado expressamente no requerimento de interposição do recurso aqueles artigos e a interpretação inconstitucional do art. 664º feita pelo S.T.J.
E foi a essa mesma inconstitucionalidade que o A. se referiu na reclamação para a conferência.
Refira-se ainda que, como também já salientámos, a inconstitucionalidade da interpretação dos arts. 660º., n.º 2 e 676º., n.º 1 do C.P.C. foi alegada de forma hipotética e não se verificou, dado que o acórdão de 7/12/2010, embora negando ter ocorrido omissão de pronúncia, efectivamente pronunciou-se sobre a questão em causa e sanou o vício arguido pelo A..
É, pois, manifestamente falsa e contrária à verdade a afirmação de que a identificação do objecto do recurso não coincide com a questão levantada na reclamação formulada contra o acórdão de 9/11/2010.
Falsidade tanto mais incompreensível quanto é certo que no n.º 24 da reclamação para a conferência, integralmente transcrita no Acórdão, o A. alegou “que a questão de inconstitucionalidade suscitada no requerimento apresentado em 23/11/2010 – mais precisamente no n.º 7 desse requerimento – tem repercussão directa no julgamento do recurso interposto para o S.T.J., dado que, se for julgada procedente, implicará necessariamente a reformulação do acórdão proferido por aquele tribunal” (o sublinhado não foi feito na reclamação).
III
10.– Como expressamente diz no seu n.º 5, foi com base nas afirmações atrás transcritas que o Acórdão entendeu e decidiu não ter o reclamante suscitado de modo processualmente adequado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não podendo o Tribunal, por essa razão e pela alegada não coincidência entre o objecto do recurso e a questão levantada na reclamação contra o acórdão do S.T.J., conhecer do recurso.
Dado que tais afirmações são manifestamente falsas e contrárias à verdade, evidenciada pelas peças processuais citadas no presente requerimento, impõe-se concluir que o Acórdão deve ser reformado, devendo, consequentemente, a decisão sumária ser revogada e o processo prosseguir os seus termos a fim de o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do recurso, como se espera e é de
JUSTIÇA
2. Não houve resposta, importando decidir.
A regra ínsita no n.º 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil cede excepcionalmente nos termos da parte final do n.º 2 do mesmo preceito, assim abrangendo os casos previstos no n.º 2 do artigo 669º do mesmo diploma, preceito que o reclamante invoca como fundamento da sua reclamação.
Mas não é certo que ocorra, no reclamado aresto, erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou, ainda, que constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
Todavia, é bem certo que ao pretender extrair dos artigos 661º e 664º do Código de Processo Civil uma «norma» segundo a qual o Tribunal não pode corrigir o pedido de indemnização pecuniária e condenar a ré em indemnização consistente na reparação dos defeitos – enunciado que manifestamente nada tem a ver com o conteúdo preceptivo destas disposições –, o recorrente não está, afinal, a identificar uma regra jurídica idónea para figurar como objecto do recurso de inconstitucionalidade, mas a pretender autonomizar uma certa interpretação da decisão proferida no Supremo Tribunal de Justiça, razão pela qual se deve concluir «que o ora reclamante nunca suscitou de modo processualmente adequado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, ao contrário do que impõe o citado n.º 2 do artigo 72º da LTC».
3. Indefere-se, em consequência, a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Maio de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.