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Processo n.º 102/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n. 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão do Tribunal Judicial de Oleiros que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação pública deduzida contra A., Lda. e B..
No despacho recorrido declarou-se “recusar expressamente a aplicação dos artigos 103.º e 105.º do RGIT, no sentido da interpretação conjugada destas normas legais perfilhada pela Administração tributária e pelo Ministério Público”, com o seguinte discurso argumentativo:
“(…)
É materialmente inconstitucional a interpretação conjugada dos arts. 103.º e 105.º do RGTT, no sentido de que, para cada período trimestral de IVA em causa, em regime normal de periodicidade trimestral, as quantias deduzidas pelos arguidos a título de IVA nas facturas que emitiram e cujas quantias receberam, mas não entregaram ao Estado, tendo-as ocultado da Administração Tributária, não as tendo declarado nas declarações de rendimentos respectivas a apresentar à Administração Tributária, preenche o tipo-de-ilícito penal de abuso de confiança, previsto e punível pelo art. 105.º do RGIT, em vez do tipo-de-ilícito penal alternativo da fraude fiscal, erigido para as situações de ocultação e não declaração de valores às Finanças, sobretudo quando a vantagem patrimonial ilegítima, traduzida, quanto ao IVA, nas quantias deduzidas pelos arguidos a título de IVA nas facturas que emitiram e cujas quantias receberam mas não entregaram ao Estado, se situa, em cada período trimestral em causa, de acordo com a estrutura e funcionamento do tipo de imposto em causa, em limite inferior ao limiar mínimo de punibilidade de 15.000 euros, previsto e punível pelo art. 103.º do RGIT, motivo pelo qual o Ministério Público não lhes imputa o crime de fraude fiscal, que arquivou, mas apenas o de abuso de confiança fiscal, cujo limiar mínimo de punibilidade é de 7.500 euros, por violação do princípio da legalidade criminal – art. 29.º, esp. n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – na medida em que, designadamente:
– permite tal interpretação que a mesma conduta possa integrar, ao mesmo tempo, dois tipos de ilícitos criminais diferentes – arts. 103.º e 105.º do RGIT – com tipos-de-ilícito objectivo e subjectivo diferentes, e diferentes penas aplicáveis, consoante as conveniências do Ministério Público, e/ou do Tribunal, em analogias jurídico-constitucionalmente proibidas desfavoráveis ao arguido (porque se vê ou acusado e/ou condenado pela prática de crime de abuso de confiança fiscal, de acordo com a interpretação do Ministério Público);
– permite tal interpretação imputar aos arguidos crimes de abuso de confiança fiscal, quando tais condutas preenchem apenas o tipo-de-ilícito previsto e punível no art. 103.º do RGIT (fraude fiscal), em sentido manifestamente contrário ao texto da Lei, ainda que o Legislador, em relatórios, preâmbulos, e explicações à margem do texto da Lei, pretenda interpretar ou justificar distinções que vão contra o sistema legal instituído pela contraposição existente entre os arts. 103.º e 105.º do RGIT (o art. 103.º do RGIT prevê e estatui sobre “a não liquidação, ocultação de valores que devam constar das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável ocultação de factos ou valores declarados e que devam ser revelados à administração tributária” e o art. 105.º do RGIT prevê e estatui sobre quantias não entregues nos cofres do Estado que foram comunicadas, declarações comunicadas à Administração Tributária – als. a) e b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT);
– impõe tal interpretação a aplicação do art. 103.º (fraude fiscal) do RGIT aos impostos directos, e 105.º (abuso de confiança fiscal) do RGIT aos impostos indirectos, entendimento este sempre perfilhado pela Administração Tributária, neste e noutros processos, quando a alternativa entre os arts. 103.º (fraude fiscal) e 105.º (abuso de confiança fiscal) reside essencialmente (ressalvadas as especificidades dos substitutos tributários) na existência (ou não) de falsificação e/ou ocultação de valores à Administração Tributária.
Razão pela qual, expressamente, se recusa a aplicação do disposto nos arts. 103.º e 105.º do RGIT ao caso concreto, na interpretação material de tais normas acolhida pela Administração Tributária, e neste processo, também, pelo Ministério Público, interpretação essa que reputamos de materialmente inconstitucional.
O que determina necessariamente, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, al. d), do Código de Processo Penal, a rejeição da douta acusação pública deduzida (em vez do seu recebimento), por manifestamente infundada, uma vez que tal factualidade, a ser dotada de ilicitude (jurídico-penal e/ou contra-ordenacional), não constitui o crime previsto e punível pelo art. 105.º do RGIT, do qual os arguidos vêm acusados.
A soma das quantias indevidamente apropriadas pelos arguidos, nos termos suficientemente indiciados na douta acusação pública deduzida, poderia eventualmente configurar um (ou dois) crime(s) de fraude fiscal, ainda que na forma continuada (são dois anos em causa), se fosse de sustentar o entendimento de que as quantias indevidamente apropriadas nos trimestres respectivos se pudessem somar, sem mais, a bel-prazer do Ministério Público, contra as normas tributárias aplicáveis, as que estruturam o funcionamento e tipo de imposto e são assim mais favoráveis aos arguidos, e em detrimento do(s) arguido(s), que assim veriam ser-lhes imputados crimes tributários com base em quantias, períodos e formas de funcionamento diferentes daqueles estipulados por Lei, designadamente para efeitos tributários (e também nesta sede para efeitos jurídico-penais).
Tal entendimento é de rejeitar liminarmente, o qual se ponderou em concreto, razão pela qual cada período trimestral em causa (apenas o IVA está em causa) é autónomo para efeitos jurídico-penais, e não há que somar os mesmos para imputar um ou dois crimes de fraude fiscal ao arguido, ou um crime de fraude fiscal continuado – o que, nesta fase e momento, discordando-se de todo de tal interpretação, que aliás implicaria a ficção continuada de um crime continuado ou de um crime de reiteração sucessiva sustentado(s) em factos que não são autonomamente puníveis – implicaria o cumprimento do disposto no art. 359.º do Código de Processo Penal.
Para definir/delimitar cada crime tributário (fraude fiscal ou abuso de confiança fiscal), a integrar ou não, eventualmente, se assim se justificar, num ilícito tributário continuado (art. 30.º do Código Penal), ou eventualmente, consoante os entendimentos, de um (único) crime tributário de reiteração sucessiva, só se podem ter em conta as quantias devidas, a título de vantagem patrimonial ilegítima, no período que a Lei Tributária define como valendo para efeitos tributários (e depois, com base nestes para efeitos jurídico-penais – neste caso, estando apenas em causa IVA, em regime normal de periodicidade trimestral – as quantias devidas a título de vantagem patrimonial ilegítima em cada período concreto de três meses, de acordo com o regime normal de periodicididade trimestral a que a sociedade arguida se encontrava sujeita.
Sem prejuízo da averiguação dos pressupostos necessários e legalmente previstos para o cometimento, com tal factualidade, da contra-ordenação tributária prevista e punível nos termos do art. 114.º do RGIT, e à qual se refere o art. 105.º, n.º 4, do RGIT.”
2. Tendo o recurso sido admitido e prosseguido para alegações, o Ministério Público concluiu nos seguintes termos:
“26º
Por todo o exposto ao longo destas conclusões, cremos que o recurso obrigatório interposto, nos presentes autos, pelo Ministério Público, merece provimento, determinando-se, em consequência, a revogação da sentença recorrida.
Com efeito, os factos verificados nos presentes autos integram, sem margem para dúvidas, o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, previsto no art,º 105.º, n.º 1 do RGIT, estabelecendo o disposto na alínea b) do n.º 4 do mesmo artigo apenas uma condição de punibilidade da conduta em causa, não um elemento constitutivo do tipo legal de crime referido.
Nessa medida, a interpretação normativa, feita pelo digno magistrado a quo, do art.º 105.º do Regulamento Geral das Infracções Tributárias (RGIT) não parece ter nenhum apoio na letra da lei, e, muito menos, viola o art.º 29, n.º 1, da Constituição.
Para além disso, tal interpretação normativa é contrária a jurisprudência firmada deste Tribunal Constitucional.”
3. Seguidamente foi proferido pelo relator o seguinte despacho:
“Embora afirmando recusar, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da interpretação normativa sustentada pelo Ministério Público na acusação, a verdadeira ratio decidendi da rejeição da acusação pelo despacho recorrido parece ser a divergência quanto aos elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal. Efectivamente, o tribunal a quo considera que “(…) admitindo que tal factualidade seja verídica e/ou se viesse a dar como provada, ainda assim tal factualidade, apreciada neste momento apenas nos seus elementos objectivos, não integra o crime de abuso de confiança fiscal do qual os arguidos vêm acusados.
Com efeito, uma coisa é não entregar a quantia de imposto exigível deduzida nos termos da Lei e que estava legalmente obrigado a entregar – crime de abuso de confiança fiscal, art.º 105.º do RGIT – outra, diferente, ocultar os valores exigíveis, auferindo vantagem patrimonial ilegítima, e consequentemente, apropriar-se da mesma, não entregando os referidos valores ao Estado – crime de fraude fiscal (…)”.
Assim sendo, não pode falar-se de efectiva recusa de aplicação de norma. Há mera divergência quanto aos elementos do tipo legal de crime. A desconformidade ao princípio da legalidade penal que o despacho recorrido descortina não é obra do legislador, seja por descrição imprecisa dos elementos do tipo, seja por estabelecer métodos proibidos de interpretação, seja por impor ao juiz interpretações vinculativas heterónomas. O que será desconforme com as balizas constitucionais em matéria penal é a pretensão do Ministério Público. Mas dizer que o enquadramento de certos factos em determinado tipo legal de crime viola o princípio constitucional da legalidade penal não parece significar outra coisa que não seja que os factos descritos na acusação não integram esse tipo legal de crime.
É, portanto, provável que não venha a conhecer-se do objecto do recurso, pelo que determino a notificação das partes para alegaram o que tiverem por conveniente sobre esta questão.”
4. Respondendo ao convite, o Ministério Público, depois de pôr em evidência a sua substancial concordância com este entendimento do relator como já transparecia das alegações, concluiu no sentido de que “se não está, no caso dos autos, perante uma verdadeira situação de recusa de aplicação de norma considerada inconstitucional, mas, antes, de indevida interpretação da norma prevista no art.º 105.º, n.º 1 do RGIT, designadamente, uma inadequada interpretação dos elementos constitutivos do tipo legal de crime aí contemplado, o crime de abuso de confiança fiscal”.
5. Pelo essencial das razões do despacho do relator, o Tribunal entende não dever conhecer do objecto do presente recurso. Efectivamente, sob a afirmação da recusa de aplicação de normas com fundamento em violação do princípio da legalidade penal, oculta-se uma simples divergência com a acusação pública quanto a saber se, fundamentalmente por ter também havido, por parte do contribuinte, omissão de declaração de imposto devido, a conduta imputada aos arguidos deve ser qualificada como crime de fraude fiscal, previsto no artigo 103.º do RGIT, em vez de crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º do RGIT, e se, em função do montante de imposto não entregue em cada período trimestral, a injunção se mantiver no domínio do ilícito contra-ordenacional.
A afirmação de que a interpretação que legitimaria a acusação viola o n.º 1 do artigo 29.º da Constituição não é senão a afirmação de que se entende que os factos não integram o crime pelo qual os arguidos são acusados. Não há efectiva recusa de uma interpretação normativa que se tem por exacta no plano infra-constitucional, embora estabelecendo uma solução contrária à Constituição, mas a sustentação de que essa interpretação não é de acolher.
Consequentemente, a afirmação de recusa de aplicação de tal “interpretação” com fundamento em inconstitucionalidade não pode abrir a porta ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade sob pena de ao Tribunal Constitucional passar a caber a verificação do juízo subsuntivo dos factos na norma, em vez do juízo acerca da conformidade dessa norma com a Constituição, que é a tarefa que o artigo 280.º da Constituição lhe reserva. Admitir outra solução conduziria a que uma pretensa recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade desviasse a divergência interpretativa da sua sede normal de apreciação que são os tribunais superiores da respectiva ordem jurisdicional, para o Tribunal Constitucional.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Lisboa, 7 de Julho de 2011. – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.