Imprimir acórdão
Proc. nº 64/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – No processo supra identificado em que é recorrente G..., Lda, foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 – Contra G..., Lda, identificada nos autos, foi intentada pelo Ministério Público, no Tribunal Judicial de Torres Vedras, acção de dissolução nos termos do disposto no artigo 533º nº 4 do Código das Sociedades Comerciais, a que foi dada o valor de 220.000$00, correspondente ao valor do capital social da Ré.
A acção foi julgada procedente e a Ré declarada dissolvida.
A ré requereu a aclaração e rectificação da sentença, o que foi indeferido.
A mesma Ré interpôs, então, recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que não foi admitido por despacho de fls 137/138, com fundamento no facto de a acção ter um valor inferior à alçada do tribunal de 1ª instância.
Deste despacho houve reclamação para o Presidente do Tribunal da relação de Lisboa, pugnando a reclamante pela aplicação do disposto no artigo
312º do Código de Processo Civil, por se tratar de acção sobre o 'estado das pessoas', no caso, uma pessoa colectiva.
A reclamação foi indeferida com o mesmo fundamento do despacho reclamado, entendendo-se ainda que 'a acção de dissolução de sociedade comercial não é acção sobre o estado das pessoas nem sobre interesses imateriais, não estando, ainda sujeita ao disposto no artigo 312º do CPC'.
É deste despacho que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, para este Tribunal, ao abrigo das alíneas b), c) e f) do nº
1 do artigo 70º da LTC, dizendo a recorrente no respectivo requerimento e na parte que interessa, o seguinte:
'12 – Ao fazer a interpretação restritiva do artigo 312º do CPC o despacho ora atacado ofende o direito substantivo, torna-o inconstitucional por violação do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
13 – Constituindo assim a denegação da Justiça tutelada pela Lei Fundamental.
14 – Há-de por isso ser fixado o âmbito de aplicação do artigo 312º do CPC que ao falar em 'acções sobre o estado das pessoas ou interesses imateriais' abarque todas as questões inerentes às pessoas colectivas.
15 – O despacho recorrido recusou a aplicação do artigo 312º do CPC ao presente.
Termos em que deve ser proferido Acórdão que nos termos dos artigos
70º e 71º da Lei do Tribunal Constitucional faça a aplicação do artigo 312º do CPC às questões sobre pessoas colectivas.'
Cumpre decidir.
2 – O recurso só pode ser conhecido enquanto interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, pois é manifesto que se não verificam os pressupostos do recurso previsto nas alíneas c) e f) dos mesmos número e artigo.
Com efeito, não ocorreu na decisão recorrida nenhuma recusa de aplicação da norma do artigo 312º do CPC com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República, nem aplicação da mesma norma havendo sido suscitada a sua ilegalidade com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Conhecendo, assim, do recurso apenas ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da LTC, ele revela-se manifestamente infundado, como se passa a demonstrar.
Estabelece o artigo 312º do CPC:
'As acções sobre o estado das pessoas ou sobre interesses materiais consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais 1$00.'
Ora, segundo a recorrente, a interpretação desta norma, em termos de nela não serem abrangidas as pessoas colectivas, ofende o disposto o artigo 20º da Constituição, por se violar a garantia de acesso ao direito e aos tribunais.
Contendo o artigo 20º da CRP diversos números, convir-se-á que a recorrente se pretende reportar ao nº 1 onde aquela garantia de mostra efectivamente consagrada.
A verdade, porém, é que, estando unicamente em causa o acesso a um 2º grau de jurisdição – a recorrente teve acesso aos tribunais, com oportunidade de se defender na acção que lhe foi movida pelo Ministério Público, só não tendo podido recorrer por o valor da acção, que, aliás, a recorrente não impugnou, ser inferior à alçada do tribunal de 1ª instância – tem vindo a ser pacificamente entendido neste Tribunal que aquela garantia constitucional não compreende, em processo civil, o direito a um duplo grau de jurisdição.
É o que se retira, entre outros, dos acórdãos nºs 638/98, 202/99 e 415/01 in Diários da República, II Série, de 15/5/99, 6/2/01, e 30/11/01, respectivamente.
Do primeiro, respigam-se os seguintes trechos:
'7. O artigo 20º, nº 1, da Constituição assegura a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos». Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos. Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição? A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida
(mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32º. Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão nº
65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão nº
202/90, id., vol. 16, pág. 505). Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer. Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que «o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos» (cfr., a este propósito, Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº 340/90, id., vol. 17, pág. 349). Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados Acórdãos nº 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos nº
359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), nº 24/88,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e nº 450/89, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307).
(...)
9. Não existe, desta forma, um ilimitado direito de recorrer de todas as decisões jurisdicionais, nem se pode, consequentemente, afirmar que a garantia da via judiciária, ou seja, o direito de acesso aos tribunais, envolva sempre, necessariamente, o direito a um duplo grau de jurisdição (com excepção do processo penal).'
É esta jurisprudência que aqui se reitera e torna a pretensão da recorrente manifestamente infundada.
Com efeito, sem questionar, no plano do direito infraconstitucional, a interpretação feita no despacho recorrido, certo é que ela não faz incorrer a norma do artigo 312º do CPC em inconstitucionalidade, por violação do artigo 20º nº 1 da CRP ou de qualquer outra norma ou princípio constitucional.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se:
a) Não conhecer do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alíneas c) e f) da LTC;
b) Negar provimento ao recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, por ser manifestamente infundado
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.'
2 – Notificada desta decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, nos seguintes termos:
'G..., Lda, R. nos autos em epígrafe, notificada da aliás douta decisão sumária, com a qual não se conforma vem desta reclamar para a conferência nos termos do art. 78º-A nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional.'
Na sua resposta o Exmo Magistrado do Ministério Público sustenta que a reclamação deve ser julgada manifestamente improcedente.
Cumpre decidir.
3 – No Acórdão nº 293/2001 deste Tribunal, escreveu-se:
'A reclamação prevista no artigo 78º-A nº 3 da Lei nº 28/82 carece de ser fundamentada, com a exposição das razões por que se discorda da decisão sumária reclamada'.
No caso, como resulta da transcrição integral da reclamação, a reclamante nada disse sobre os fundamentos da sua impugnação.
E não se vendo razões que infirmem a decisão sumária reclamada, nada mais resta do que confirmar o decidido..
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 14 de Março de 2002- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa