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Processo n.º 140/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A Associação Academia do .., inconformada com a decisão da Direcção Regional do Centro do Serviço de Estrangeiros que a condenou pela prática de sete contra-ordenações, previsto e punido pelo artigo 198.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, na coima única de €31.276,00, interpôs recurso de impugnação da mesma, nos termos do artigo 59.º, do Decreto-lei n.º 433/82, para o Tribunal Judicial de Pombal.
O Tribunal Judicial de Pombal, por decisão de 9 de Junho de 2010, condenou a arguida pela prática de sete contra-ordenações, previsto e punido pelo artigo 198.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, em cúmulo jurídico, na coima única de €10.000,00.
A arguida recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 6 de Outubro de 2010, negou provimento ao recurso.
Notificada deste acórdão, a arguida apresentou requerimento em que arguiu a nulidade do mesmo e, subsidiariamente, requereu o seu esclarecimento, reforma e correcção.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 15 de Dezembro de 2010, indeferiu o requerido.
A arguida invocou a nulidade deste acórdão, a qual não foi conhecida pelo Tribunal da Relação de Coimbra por entender estar esgotado o seu poder jurisdicional quanto à matéria dos autos, e, simultaneamente, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«Dando cumprimento ao plasmado nos n.ºs 1 e 2 do art. 75º-A da LTC, refere-se que o presente recurso versa desde logo sobre duas questões concretas e objectivas: 1) da inconstitucionalidade da interpretação da norma legal em causa (art. 198º nº 2 da lei 23/2007); e II) da inconstitucionalidade da omissão de pronúncia e ao conhecimento integral do recurso apresentado!
Tais questões foram sendo sucessiva e validamente suscitadas quer na defesa apresentada no dia 24 de Dezembro de 2009 (maxime ponto II, arts. 8º a 12º), impugnação judicial apresentada no dia 9 de Março de 2010 (maxime ponto II arts. 21º a 34º e conclusões 5 a 10), no recurso interposto no dia 18 de Junho de 2010 para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra (maxime ponto IV b), arts. 97º a 143º e conclusões NN a GGG), resposta apresentada no dia 26 de Julho de 2010 após douto parecer do Ministério Público (maxime ponto III, fls. 3) e requerimento de invocação de nulidade e pedido de esclarecimento apresentado igualmente perante o mesmo Tribunal no dia 20 de Outubro de 2010 (maxime fls. 5 e 6).
Como fundamento do recurso aponta-se o entendimento sufragado quer na douta decisão administrativa, quer na douta sentença de primeira instância, douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra e resposta do mesmo, novamente por acórdão, ao requerimento.
Ora, tal coima será variável consoante o número de trabalhadores contratados, entendendo-se desde já, diversamente do que se mostra referido na douta notificação e na decisão, que a aplicação de tais coimas deverá ser feita por escalões, à imagem do sistema fiscal, tendo-se por inconstitucional o entendimento segundo a factualidade é unicamente enquadrável numa única alínea da norma legal sem distribuição pelas alíneas anteriores até à perfeição contabilística e sem curar de obter outros elementos que não o número de infracções!
Todavia, enquanto as primitivas decisões afastavam a inconstitucionalidade, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra limitou-se a alegar ausência de percepção da questão e clareza da lei (fls. 26 do primitivo acórdão), em termos que se nos afiguram violadores dos princípios da igualdade, culpa, proporcionalidade e dever de fundamentação, bem como das garantias dos recorrentes.
Certo é que não se pronunciaram pela inconstitucionalidade e continuaram a aplicar tal norma de forma literal, em violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e interpretação das leis, em nome de obediência pensante, sendo violador, desde logo, dos arts. 9º CC e 13º, 18º, 32º (maxime nºs 1 e 10, 202º nº 2, 203º a 205º da CRP, para além de diversas normas legais consagradas de tais direitos e princípios, sejam nacionais ou com consagração e assento em diversos textos de Direito internacional.
E tal questão afigura-se, não só relevante como essencial para a boa decisão da causa principal, uma vez que em causa estão direitos, liberdades e garantias da recorrente, constitucionalmente tutelados, e sempre a moldura do concurso, nos termos da legislação aplicável, resulta da soma do valor parcelar de cada coima, pelo que, a serem tidas por integrante das alínea a) da norma legal as 4 primeiras, sempre o limite máximo terá de ser substancialmente corrigido e em consequência, encontrada nova coima única!
E relativamente ao conhecimento integral do recurso, verifica-se erro notório na determinação da moldura do concurso, o qual foi alegado em todas as peças processuais apresentadas, sempre sem que tenha sido conhecida tal questão.
E a essencialidade da mesma prende-se com a determinação da coima única tendo por consideração um limite máximo mais baixo bem como para efeitos de custas processuais, uma vez que havendo procedência parcial do recurso, sempre não haveria lugar ao pagamento das mesmas, nos termos do nº 1 do art. 513º CPP.
Tem-se assim por inconstitucional, em violação do art. 32º nº 1 CRP, o entendimento segundo o qual o conhecimento do recurso se basta com as questões essenciais sendo despicienda a análise das questões que eventualmente não alterem a decisão em si, uma vez que além das condenações na parte-crime, não se pode olvidar a parte relativa às custas, sendo um direito dos arguidos o conhecimento integral dos recursos (e tendo tal decisão repercussão processual) e a uma fundamentação adequada!
Por vezes o grande erro na aplicação e interpretação da lei reside numa obsessão pela sua literalidade, sem cuidar da sua teleologia e integração sistemática, sendo certo que a essência do princípio da igualdade que não consiste em tratar tudo por igual sob pena de, por paradoxal que pareça, gerar manifesta e clara desigualdade, mas sim em tratar de forma igual o igual e de forma diferenciada o desigual.
Razão pela qual, nos termos do art. 78º LTC deverá o mesmo ter efeito suspensivo e subir nos próprios autos, sendo certo que em sede de alegações se corporizará os fundamentos do presente recurso.
Destarte,
Requer-se, mui respeitosamente a V/ Exas., a procedência do presente requerimento, a verificação da apontada nulidade, revogação da condenação em custas bem como a apensação processual.
Caso assim não entendam V/ Exas., mui respeitosamente e sempre com o V/ mui douto suprimento, se interpõe para o Tribunal Constitucional o competente recurso de decisão negativa de inconstitucionalidade, o qual deverá ser admitido, com todas as demais consequências legais.
Assim decidindo, fará V/ Exa., como sempre, a costumada, JUSTIÇA!»
A Recorrente apresentou as respectivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
“A. Com o presente recurso não pretende o recorrente colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer o direito de “manifestação de posição contrária”, traduzido no direito de recorrer, consagrado na alínea i) do nº1 do art. 61º CPP e no nº.1 do art. 32º CRP.
B. A possibilidade vertida no douto despacho de não conhecimento da segunda questão subjacente ao presente recurso mostra-se violadora dos direitos da recorrente, uma vez que desconsidera por completo a decisão surpresa resultante da ausência de cognoscibilidade prévia do teor do douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, bem como os institutos do convite ao aperfeiçoamento, ferindo de morte um direito constitucional e fazendo tábua rasa na metódica de restrição de direitos fundamentais em nome de uma concordância prática.
C. Refere a disposição legal em causa (art. 198º nº 2 da Lei 23/2007) que “quem empregar cidadão estrangeiro não autorizado a exercer uma actividade profissional nos termos da presente lei” fica sujeito à aplicação de uma coima, a qual, por variável consoante o número de trabalhadores contratados, deverá ter na sua base de aplicação a progressividade por escalões, à imagem do sistema fiscal, por preenchimento.
D. Id est, a provar-se que de facto haveria o cometimento de 7 contra-ordenações, nada legitimaria que sem mais se aplicasse por cada uma delas o montante previsto na alínea b) mas sim que em relação a quatro delas se aplicasse o montante da alínea a) e só em relação às três seguintes se aplicasse o da alínea b), nunca se tendo dito que seriam duas nos termos da alínea a)!
E. Entendimento diverso, no sentido de a coima a aplicar a todas as contra-ordenações resultar unicamente do seu número globalmente considerado, afigura-se-nos inconstitucional (à imagem diga-se da própria norma legal ao não distinguir consoante se trate de pessoas colectivas ou individuais!), por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, dado que a existência dos escalões minora tais violações!
F. Pese embora se trate de contra-ordenações praticadas em concurso, cada uma delas terá individualidade e singularidade próprias, não podendo ser tomadas por iguais como “farinha do mesmo saco”, consistindo a essência do princípio da igualdade em tratar de forma igual o igual e de forma diferenciada o desigual e não em tratar tudo por igual sob pena de (por paradoxal que pareça!) gerar manifesta e clara desigualdade.
G. Em sede de motivação teve-se o ensejo de deixar exemplos práticos inequivocamente relevantes e pertinentes, começando-se por questionar qual a razão justificante para que quem tenha a sorte de ser fiscalizado em dois dias consecutivos e se veja com 4 trabalhadores em situação ilegal em cada dia seja menos punido que a ora recorrente-!
H. Ora, tal situação não será muito diferente da verificada nos autos, defendendo-se um preenchimento por lotes, por escalões: preenchido o primeiro lote de 4, as restantes seriam distribuídas pelo(s) lote(s) seguintes até o(s) completar(em).
I. Mas pense-se ainda numa outra situação, para se percepcionarem os reais perigos imanentes a tal interpretação: uma entidade empregadora é controlada no mesmo dia e à mesma hora em dois locais diferentes onde se mostravam empregados seus a prestar trabalho, sendo que num haveria 4 trabalhadores em situação irregular e no outro três.
J. Além da existência de contratação, onde se mostra a diferença relativamente à situação dos presentes autos a ponto de justificar que pelo emprego do mesmo número (7) de trabalhadores seja unicamente a entidade patronal condenada pelas coimas mais leves-!
K. Por vezes, o grande erro na aplicação e interpretação da lei reside numa obsessão pela sua literalidade, sem cuidar da sua teleologia e integração sistemática, corporizando as normas contra-ordenacionais uma intromissão do estado na esfera patrimonial dos cidadãos, sendo a devida interpretação de tais normas de primacial importância.
L. Todos os preceitos constitucionais integram normas que fornecem os parâmetros de interpretação recta do direito que lhe está infra ordenado, devendo assim lançar-se mão do princípio da interpretação conforme a Constituição da República Portuguesa.
M. Ninguém duvida que igualmente na base do sistema fiscal se mostra subjacente a ideia de aplicação de imposto agravado em função dos rendimentos obtidos bem como a dissuasão da preterição da (des)igualdade fiscal, não impedindo a aferição do tributo num regime de escalões progressivos, não sendo a progressividade mais do que a densificação do conceito de justiça proveniente da igualdade material, princípio base de todo o Direito, pressupondo um conceito de democraticidade: a lei contra-ordenacional é igual para todos.
N. Não terá presidido unicamente à previsão da norma legal ora em análise unicamente o número de trabalhadores ilegais, de forma isolada, mas sim, em conjugação com demais critérios, afigurando-se igualmente inconstitucional a consideração unicamente de um número desacompanhado de qualquer outro critério, como seja a dimensão, o número geral de trabalhadores, o volume de facturação, etc.
O. A orientação interpretativa levada a cabo pela entidade administrativa, confirmada nas doutas decisões recorridas, tem diversos problemas correlacionados com os casos de fronteira, ou seja, os valores que se mostram nos limites de cada um dos escalões, dado que as entidades patronais que tiverem o azar de ser fiscalizadas em infracção com 5, 11 ou 51 cidadãos estrangeiros não autorizados ao exercício de actividade profissional ficarão incomensuravelmente prejudicadas face a quem tenha respectivamente 4, 10 ou 50.
P. E pense-se que a diferença de culpa entre elas, em tais casos, será de apenas uma contratação, assumindo valores incomportáveis caso sejam todas elas calculadas sobre um montante diverso, nada justificando que o número igual de contratações não seja tratado de forma igual com acréscimo do desigual!
Q. Para mais quando, tal como está redigida a lei, uma entidade patronal com 100% (que por sorte sejam só 4, 10 ou 50!) de trabalhadores nessas condições sempre sairá beneficiada face a outras em que o número seja residual face à globalidade de trabalhadores mas por infelicidade sejam 5, 11 ou 51, bastando pensar na punição de uma pequena empresa com 4 trabalhadores, todos ilegais, comparativamente com uma multinacional com 10.000 trabalhadores e em que 5 estavam em violação da lei...
R. A existência de escalões serve desde logo para minorar tais desigualdades, assim como para respeitar o princípio da proporcionalidade, uma vez que quatro das contra-ordenações são tratadas pela lei de forma igual e a quinta e seguintes, até à décima, de forma igual entre si mas desigual face às 4 primeiras!
S. Mostram-se assim violadas as normas vertidas no Código civil relativas à interpretação, desde logo, o plasmado nos três números do art. 9º, não podendo haver um apego cego à letra da lei, devendo considerar-se igualmente os elementos histórico, sistemático e sobretudo teleológico.
T. E nos termos do defendido, atentas as regras da punição do concurso, seriam as quatro primeiras fixadas no limite mínimo vertido na alínea a), as remanescentes três nos termos da alínea b) e a soma de todas constituiria o limite máximo do concurso com o limite mínimo a ser o da alínea b).
U. Analisadas as doutas decisões proferidas, mostram-se as mesmas eivadas do vício da omissão de pronúncia e desconsideração da apreciação global do recurso, como desde logo ressalta do perpetuar do lapsus calami na determinação do limite máximo do concurso, em violação do art. 19º RGIMOS, tal como se havia alegado, sem que o Tribunal se tenha vindo pronunciar, o que sempre constituía nulidade nos termos da alínea c) do art. 379º CPP, não reconhecida após a sua expressa alegação.
V. Tal limite vertido nas doutas decisões corresponde ao máximo admissível, para efeitos de redução caso a soma das coimas concretamente aplicadas resulte superior, o que não é o caso por a soma das coimas concretamente aplicadas se cifrar em € 31.276,00 (curiosamente o valor da primitiva condenação).
W. Pelo que terá sempre de ser este o limite máximo da moldura do concurso, havendo que interpretar cum grano salis os nºs 1 e 2 do art. 19º RGIMOS, constituindo o nº 2 um limite inultrapassável face ao teor do nº 1, que todavia, sempre terá de ser respeitado quando inferior: no caso de serem 10 as contra-ordenações, o limite máximo da moldura do concurso seria € 44.680,00 mas a coima nunca poderia ser superior a € 33.500,00!
X. Entende-se que a fixação da moldura das coimas se mostrará eivada de um vício ao nível da actualização: atento o teor do art. 208º da Lei 23/07 e tendo em consideração as taxas de aumento do salário mínimo para 2008 e 2009 (respectivamente 5,7% e 5,6%), mostram-se os valores errados sem que tenha merecido qualquer consideração tal questão.
Y. Assim, por se não mostrar conhecido o recurso na sua plenitude, tem a recorrente por precludidos os seus direitos, de recurso, acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, conjugado com dever de não aplicação de normas inconstitucionais e fundamentação decisória, com assento constitucional nos arts. 20º, 32º nº 1, 204º e 205º CRP.
Z. Tem-se assim por inconstitucional o entendimento de que em sede de recurso, admitido pelo art. 32º nº 1 in fine, CRP e alínea i) do nº 1 do art. 61º nº 1 CPP, se mostra o Tribunal ad quem com ampla margem de discricionariedade a ponto de cindir e não analisar parte da questão recursória, uma vez que com a nova redacção em matéria der custas, tal questão é deveras pertinente e tem efeitos práticos assinaláveis.
Normas jurídicas violadas: nomeadamente arts. 61º nº 1 i), 379º nº 1 c) e 513º nº.1 CPP; 1º, 8º, 9º, 19º nº 1 DL 433/82; 9º CC; 198º nº 2 a) e b), 204º nº 2 e 208º da Lei 23/2007; 13º, 18º, 20º, 32º nº 1, 204º e 205º CRP.
Destarte,
e sempre com o mui douto suprimento de V/ Exa., deve o presente recurso ser declarado procedente, com a declaração das duas apontadas inconstitucionalidades subjacentes à interpretação das normas legais em causa (arts.198º Lei 23/2007 e 61º nº 1 i) CPP), com a posterior determinação da coima aplicável a cada contra-ordenação reformulação da moldura do concurso, com fixação da coima única em observância dos princípios da igualdade, culpa e proporcionalidade, tendo por parâmetro a situação económico-financeira actual, corrigida no seu limite mínimo, sob pena de subversão dos mais elementares princípios jurídicos.
Tudo conjugado com conhecimento integral das questões alegadas.
V/ Exas. todavia, como sempre, farão a costumada e almejada JUSTIÇA!”
O Ministério Público apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
“1º
Por não ter sido adequadamente suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, não deve ser conhecida a segunda questão colocada no requerimento de interposição do presente recurso, relativa à omissão de pronúncia.
2º
A norma do n.º 2 do art.º 198.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, ao graduar o montante abstracto da coima de cada uma das contra-ordenações em função de um critério objectivo, o número total de trabalhadores empregados em situação ilegal, não afronta a Lei Fundamental, nomeadamente, os princípios constitucionais da culpa, da proporcionalidade e da igualdade.
3º
Na verdade, a estabelecida diferenciação da moldura abstracta das coimas, funda-se na maior ou menor gravidade da infracção, considerada segundo o enunciado critério objectivo, não se revelando inadequada, desproporcionada ou arbitrária.
4º
Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.”
Fundamentação
1. Do não conhecimento parcial do recurso
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
A suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade implica, no plano formal, que o recorrente tenha cumprido o ónus de clara, precisa e expressa delimitação e especificação do objecto do recurso, envolvendo ainda uma fundamentação, em termos minimamente concludentes, com indicação das razões porque se considera ser inconstitucional a “norma” que pretende submeter à apreciação do tribunal, indicando e deixando claro qual o preceito ou preceitos cuja legitimidade constitucional se pretende questionar.
A Recorrente fez constar do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que pretende ver apreciadas “duas questões concretas e objectivas”, sendo a segunda delas, e que ora interessa, a “da inconstitucionalidade da omissão de pronúncia e ao conhecimento integral do recurso”, sustentando ser inconstitucional, “em violação do art. 32.º n.º 1 CRP, o entendimento segundo o qual o conhecimento do recurso se basta com as questões essenciais sendo despicienda a análise das questões que eventualmente não alterem a decisão em si, uma vez que além da condenações na parte-crime, não se pode olvidar a parte relativa às custas, sendo um direito dos arguidos o conhecimento integral dos recursos (e tendo tal decisão repercussão processual) e a uma fundamentação adequada”.
Esta questão nunca foi suscitada pela Recorrente perante o tribunal recorrido.
Ora, a questão de inconstitucionalidade deve ser suscitada antes de se mostrar esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre tal questão, na medida em que o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal recorrido sobre a questão de inconstitucionalidade que é objecto do recurso.
Só em casos muito particulares – em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar tal questão antes de ser proferida a decisão recorrida, ou tendo tido essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de inconstitucionalidade, ou em que, por força de preceito específico, o poder jurisdicional não se tivesse esgotado com a prolação da decisão final – é que será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
Admitindo que, no presente caso, a questão de constitucionalidade poderia ser suscitada num incidente pós-decisório, por respeitar a uma interpretação que fundamentava uma decisão desse tipo de incidentes, a Recorrente deveria tê-lo feito no requerimento de esclarecimento, reforma e correcção do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Outubro de 2010, antecipando a possibilidade de tal requerimento não ser atendido, uma vez que não se pode considerar insólita ou inesperada a decisão que o indefere, não podendo a mesma ser considerada uma decisão-surpresa.
A Recorrente não estava dispensada de suscitar esta questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, pelo que, tendo-o apenas feito no requerimento de interposição de recurso, tal procedimento é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus exigido pelo artigo 72.º, n.º 2, da LTC.
Além disso, acrescenta-se que também não se mostra preenchido um segundo requisito essencial ao conhecimento do mérito do recurso e que decorre da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, na fiscalização concreta – a exigência que o critério normativo que se pretende que o tribunal fiscalize constitua ratio decidendi do acórdão recorrido.
Com efeito, a Recorrente invoca que é inconstitucional o “entendimento segundo o qual o conhecimento do recurso se basta com as questões essenciais sendo despicienda a análise das questões que eventualmente não alterem a decisão em si”.
Ora, da leitura quer do primeiro acórdão proferido em 6 de Outubro de 2010, que conheceu do objecto do recurso, quer do segundo acórdão proferido em 15 de Dezembro de 2010, que indeferiu a arguição de nulidade, por omissão de pronúncia, nunca se perfilhou tal entendimento.
No primeiro dos acórdãos, relativamente à questão de constitucionalidade colocada pela Recorrente nas alegações de recurso, referiu-se apenas que não se entendia o raciocínio do Recorrente, sendo a lei clara, pelo que “não se vê como o preenchimento de lotes ou, os escalões do IRS, tem influência na distinção das contra-ordenações”. E, no segundo acórdão perante a arguição de omissão de pronúncia, a mesma foi indeferida com o argumento que “o Tribunal pronunciou-se sobre todas as questões levantadas”.
O Tribunal recorrido nunca assumiu que não conhecia da questão colocada pela Recorrente nas suas alegações de recurso e muito menos que o não fazia porque “o conhecimento do recurso se basta com as questões essenciais sendo despicienda a análise das questões que eventualmente não alterem a decisão em si”.
Não tendo, pois, o referido critério normativo sido adoptado pela decisão recorrida, a apreciação da sua constitucionalidade não tinha qualquer efeito útil no processo, pelo que tal circunstância também obstaria ao conhecimento do mérito do recurso.
Por estas razões mostra-se vedado ao Tribunal Constitucional o conhecimento do mérito do recurso nesta parte.
2. Do mérito do recurso
A Recorrente pretende ver sindicada a constitucionalidade da interpretação da norma do artigo 198.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, segundo a qual “a factualidade é unicamente enquadrável numa única alínea da norma legal sem distribuição pelas alíneas anteriores até à perfeição contabilística e sem curar de obter outros elementos que não o número de infracções”.
É o seguinte o teor do referido preceito legal:
“Exercício de actividade profissional não autorizado
1 — […]
2 — Quem empregar cidadão estrangeiro não autorizado a exercer uma actividade profissional nos termos da presente lei fica sujeito, por cada um deles, à aplicação de uma das seguintes coimas:
a) De € 2000 a € 10 000, se empregar de um a quatro;
b) De € 4000 a € 15 000, se empregar de 5 a 10;
c) De € 6000 a € 30 000, se empregar de 11 a 50;
d) De € 10 000 a € 90 000, se empregar mais de 50.
3 — […]”
A decisão recorrida confirmou a condenação da Recorrente pela prática de sete contra-ordenações, previstas na alínea b), do n.º 2, deste artigo, com fundamento no facto de aquela empregar sete cidadãs estrangeiras não autorizadas a exercer uma actividade profissional, nos termos da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho.
Entendeu-se que a determinação da moldura legal aplicável a cada uma das contra-ordenações cometidas pela Recorrente, resultava do número, globalmente considerado, de cidadãs estrangeiras não autorizadas a exercer uma actividade profissional empregues pela arguida, não se utilizando um método progressivo por escalões, de acordo com o qual o número de cidadãos estrangeiros em situação ilegal seria dividido em tantas partes quantas as que correspondessem ao escalão em que coubessem, aplicando-se as molduras mais elevadas, não à totalidade das contra-ordenações, mas apenas àquela parte que excedesse o limite máximo do escalão anterior.
Assim, tendo-se apurado que a arguida empregava sete cidadãs estrangeiras sem autorização para exercer uma actividade profissional, condenou-se esta pela prática de sete contra-ordenações previstas na alínea b) do n.º 2 do artigo 198.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, e não por quatro contra-ordenações previstas na alínea a), do mesmo número, relativas às quatro primeiras cidadãs estrangeiras, e por três contra-ordenações previstas na referida alínea b), relativas às três últimas cidadãs estrangeiras.
A Recorrente defende que esta interpretação normativa ao não aplicar o critério de progressividade por escalões que vigora no sistema fiscal, o qual mais não é do que a densificação do conceito de justiça proveniente da igualdade material, e ao considerar apenas o número global de trabalhadores ilegais, de forma isolada, desacompanhado de qualquer outro critério, como seja a dimensão da empresa, o número geral de trabalhadores, ou o volume de facturação, viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da culpa.
Importa, pois, apreciar a constitucionalidade da interpretação normativa seguida pela decisão recorrida, à luz dos apontados parâmetros constitucionais.
Em primeiro lugar há que ter em consideração que as diferenças existentes entre a ilicitude de natureza criminal e o ilícito de mera ordenação social obstam a que se proceda a uma simples transposição, sem mais, dos princípios constitucionais aplicáveis em matéria de definição de penas criminais para o espaço sancionatório do ilícito de mera ordenação social.
Neste sentido, escreveu-se no Acórdão 336/2008, desta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
«No plano infraconstitucional, à semelhança do que sucede em direito penal, o direito de mera ordenação social português também repudia a responsabilidade objectiva, pois, segundo o disposto no n.º 1, do artigo 1.º, do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO), na redacção do Decreto-lei n.º 244/95, “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima” (sublinhado acrescentado).
Todavia, não obstante este ponto de contacto, existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contra-ordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.
É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contra-ordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146).
Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).
E por isso, se o direito das contra-ordenações não deixa de ser um direito sancionatório de carácter punitivo, a verdade é que a sua sanção típica “se diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal, mesmo da pena de multa criminal (…) A coima não se liga, ao contrário da pena criminal, à personalidade do agente e à sua atitude interna (consequência da diferente natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela contra-ordenação), antes serve como mera admoestação, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas; e o que esta circunstância representa em termos de medida concreta da sanção é da mais evidente importância. Deste ponto de vista se pode afirmar que as finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização.” (FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 150-151, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
Daí que, em sede de direito de mera ordenação social, nunca há sanções privativas da liberdade. E mesmo o efeito da falta de pagamento da coima só pode ser a execução da soma devida, nos termos do artigo 89.º, do Decreto-lei n.º 433/82, e nunca a da sua conversão em prisão subsidiária, como normalmente sucede com a pena criminal de multa.
Por outro lado, para garantir a eficácia preventiva das coimas e a ordenação da vida económica em sectores em que as vantagens económicas proporcionadas aos agentes são elevadíssimas, o artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 433/82 (na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 244/95), permite que o limite máximo da coima seja elevado até ao montante do benefício económico retirado da infracção pelo agente, ainda que essa elevação não possa exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido, erigindo, assim, a compensação do benefício económico como fim específico das coimas.
Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social.»
Por estas razões, o legislador ordinário, na área do direito de mera ordenação social, goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis, devendo o Tribunal Constitucional apenas emitir um juízo de censura, relativamente às soluções legislativas que cominem sanções que sejam manifesta e claramente desadequadas à gravidade dos comportamentos sancionados. Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, neste campo, há-de gozar de uma confortável liberdade de conformação, ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade.
Anteriormente ao regime em vigor, esta contra-ordenação era punida pelo Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, que, na sua redacção inicial, previa a aplicação de uma só coima de 40.000$00 a 200.000$00, independentemente do número de trabalhadores estrangeiros em situação ilegal (artigo 144.º).
O Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro, veio alterar a redacção deste preceito, passando a prever diferentes molduras para o sancionamento desta contra-ordenação, conforme a dimensão da empresa empregadora, correspondendo a cada trabalhador nessas condições uma contra-ordenação. Assim, o n.º 2, do artigo 144.º, passou a dispor o seguinte:
“Quem empregar cidadão estrangeiro não habilitado com autorização de residência, autorização de permanência ou visto de trabalho, solicitado nos termos do presente diploma, fica sujeito, por cada um deles, à aplicação de uma das seguintes coimas:
a) Tratando-se de microempresa, de 300.000$00 a 750.000$00;
b) Tratando-se de pequena empresa, de 500.000$00 a 1.350.000$00;
c) Tratando-se de média empresa, de 830.000$00 a 2.360.000$00;
d) Tratando-se de grande empresa, de 1.400.000$00 a 4.900.000$00.”
O Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, veio alterar mais uma vez a redacção do artigo 144.º, do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, incluindo no primeiro escalão também as pessoas singulares e fixando as coimas em euros.
Este preceito passou então a dispor:
“Quem empregar cidadão ou cidadãos estrangeiros não habilitados com autorização de residência, autorização de permanência ou visto de trabalho, solicitado nos termos do presente diploma, fica sujeito, por cada um deles, à aplicação de uma das seguintes coimas:
a) Tratando-se de pessoa singular ou microempresa, de (euro) 2000 a (euro) 3740,98;
b) Tratando-se de pequena empresa, de (euro) 3.000 a (euro) 7.500;
c) Tratando-se de média empresa, de (euro) 5.000 a (euro) 12.500;
d) Tratando-se de grande empresa, de (euro) 7.500 a (euro) 27.500.”
Segundo a Exposição de Motivos da Proposta de Lei do Governo (n.º 93/X) que esteve na origem do regime de coimas constante do artigo 198.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, que revogou o Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, visou-se agravar a moldura das coimas, fazendo-as depender do número de trabalhadores empregues e não da dimensão da empresa, de forma a torná-lo mais dissuasivo da exploração do trabalho ilegal.
Neste regime, actualmente em vigor, quantos mais cidadãos estrangeiros não autorizados a exercer uma actividade profissional forem empregues, maior é a moldura legal da coima prevista para a utilização de cada um desses cidadãos.
Em primeiro lugar, constata-se que a previsão de diversos escalões, com diferentes molduras da coima não é feita de um modo arbitrário, pois a gravidade da infracção está directamente ligada ao número de cidadãos estrangeiros em situação ilegal que se empregue. Quanto mais são os cidadãos estrangeiros empregues pelo arguido nestas condições, mais grave se apresenta a contratação de cada um, pois revela uma prática cada vez mais generalizada, acentuando a habitualidade do comportamento contra-ordenacional.
Em segundo lugar, esta opção legislativa não impede que na fixação concreta da coima a aplicar ao arguido intervenham outros factores para além do número de pessoas contratadas naquelas condições.
Na verdade, importa ter em atenção que o número de trabalhadores em situação ilegal é apenas relevante para a determinação da moldura abstracta da coima aplicável (sendo que, em qualquer das hipóteses, estamos perante uma coima fixada entre um limite mínimo e máximo e não perante uma coima abstracta fixa).
Determinada a moldura da coima aplicável (através da subsunção dos factos a uma das alíneas previstas no artigo 198.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho), então haverá que fazer apelo aos critérios para determinação da medida concreta da coima, designadamente, os previstos no artigo 18.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro (R.G.C.O), o qual estabelece que “A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação”.
Além disso, estando em causa um concurso de contra-ordenações, a coima será apenas uma, resultando o seu limite máximo da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso, o qual não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das coimas concretamente aplicadas a essas infracções, correspondendo o limite mínimo à mais elevada das coimas concretamente aplicadas (artigo 19.º, do R.G.O.C.). E na graduação desta coima única, entre estes limites, voltarão a ser ponderados todos os factores que possam relevar para a aplicação duma sanção adequada ao comportamento do arguido, numa visão global.
Nestes termos, fixando-se uma moldura abstracta da coima entre um montante mínimo e um montante máximo e sendo aplicável uma coima única a um concurso de contra-ordenações, é perfeitamente possível fazer intervir outros critérios que não apenas o número de trabalhadores abrangidos pela infracção para graduar a coima a aplicar, tendo em atenção as específicas circunstâncias concretas do responsável, adequando a coima aplicada às diferentes situações casuísticas, o que permite estabelecer diferenças entre casos distintos e atender à culpa do arguido.
Nem se poderá também dizer que da interpretação normativa sindicada resultem particulares problemas correlacionados com os “casos de fronteira”, ou seja, no exemplo dado pela Recorrente, com as quantidades de trabalhadores estrangeiros que se situem nos limites de cada um dos escalões, sendo certo que, em matéria sancionatória, quer penal, quer contra-ordenacional, existirá sempre este tipo de problemas, sendo inúmeras as situações em que a própria ilicitude da conduta está dependente de valores quantitativos.
Por um lado, só o facto da moldura da coima não ser fixa, permite ao julgador atender a que o caso se situa nessa zona de fronteira de escalões. Mas, para além disso, verifica-se que o legislador, sabiamente, estabeleceu os valores máximos da coima em cada escalão em montante mais elevado que os valores mínimos do escalão seguinte, o que permite ao julgador adequar mais facilmente o montante da coima à gravidade das infracções nos chamados “casos fronteira”.
A Recorrente faz apelo, como meio de garantir a igualdade na aplicação do artigo 198.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, ao princípio da progressividade por escalões que vigora em matéria fiscal, sustentando que este não é mais do que a densificação do conceito de justiça proveniente da igualdade material, princípio base de todo o Direito.
Vejamos, antes de mais, em que se traduz esta progressividade.
Segundo o artigo 104.º, n.º 1, da Constituição, “o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”.
Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, pág. 1099, da 4.ª Edição Revista, da Coimbra Editora) esta norma constitucional atribui particular relevo ao imposto sobre o rendimento pessoal “enquanto instrumento privilegiado de realização dos objectivos extrafiscais do sistema fiscal, que têm a ver com a igualdade económica dos cidadãos, não sendo por acaso que o único objectivo do imposto constitucionalmente destacado seja justamente «a diminuição das desigualdades». Daí que ele não possa deixar de ser único e progressivo. A unicidade quer dizer que todos os rendimentos pessoais devem ser englobados num único imposto, de forma a tomar em conta o seu montante global. A progressividade quer dizer que a taxa deve ser tanto maior quanto mais elevado for o rendimento global.”
Assim, a progressividade do imposto visa adequá-lo ao rendimento efectivo de cada agregado, uma vez que determina que a parte de imposto pago aumenta à medida que o rendimento aumenta: neste sentido, a progressividade opõe-se à proporcionalidade. Deste modo, determinada a matéria colectável do imposto, devem ser aplicadas as taxas do artigo 68.º, do Código do Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares, as quais se encontram previstas em intervalos de valor (escalões), para respeito do princípio constitucional da progressividade (vide, a este propósito, Saldanha Sanches, em “Manual de Direito Fiscal”, pág. 288 e 334, da 3.ª Edição, da Coimbra Editora, e Casalta Nabais, em “Direito Fiscal”, pág. 55 e seg., da 5.ª Edição, da Almedina).
Assim, o sistema de progressividade hoje adoptado não é o da progressividade global (com toda a matéria colectável a ser tributada à taxa mais elevada que à situação couber), mas o da progressividade por escalões, de acordo com o qual a matéria colectável concretamente apurada é dividida em tantas partes quantas as que corresponderem ao leque de taxas em que couber, aplicando-se a taxa mais elevada, não à totalidade da matéria colectável, mas apenas àquela parte que exceder o limite máximo do escalão anterior, evitando-se assim a possibilidade de, a um rendimento bruto superior, corresponder, uma vez pago o imposto, um rendimento líquido inferior.
Estas considerações não são, no entanto, transponíveis para a interpretação de normas contra-ordenacionais, não sendo idênticos os princípios subjacentes ao direito fiscal e ao direito sancionatório penal ou contra-ordenacional.
Se a regra da progressividade por escalões se justifica por um imperativo de justiça, perante a existência de diversas taxas fixas que se aplicam a determinados escalões de rendimentos, essa aplicação já não tem a mesma força justificativa quando não se está perante a previsão de escalões com diferentes valores de coimas fixas, mas sim perante escalões com diferentes molduras de coimas, com amplos espaços de intervalo entre os seus limites mínimo e máximo, nos quais, em cada escalão, o limite máximo é sempre mais elevado que o limite mínimo do escalão seguinte.
Este regime, por si só, permite ao julgador adequar perfeitamente a coima a aplicar à gravidade da conduta do arguido, à sua culpa e às demais circunstâncias que relevem para uma fixação justa da coima, não se revelando necessário, para atingir este fim, a adopção da regra da progressividade por escalões.
Em conclusão, os princípios da culpa, da proporcionalidade e da igualdade não proíbem a interpretação normativa sindicada, sendo que não se vislumbra a incidência negativa de outra norma ou princípio constitucional.
Deste modo, deve ser julgado improcedente o recurso interposto, nesta parte.
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
- não se conhece do recurso, na parte em que se questionava a constitucionalidade da interpretação justificativa de uma omissão de pronúncia;
- julga-se o recurso improcedente na parte em que se questionava a constitucionalidade da interpretação do artigo 198.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho.
Lisboa, 12 de Julho de 2011
*
Custas do recurso pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98 (artigo 6.º n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de Julho de 2011. – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.